terça-feira, 26 de maio de 2015

Também morre quem atira (ou esfaqueia, envenena etc)

HÁ QUEM DIGA QUE TIRAR A VIDA DE OUTREM SOMA "MAIS VIDA" PARA SEU PRATICANTE, COMO SE ACREDITAVA NO ANTIGO CANIBALISMO ANTROPOFÁGICO.

Na sociedade desigual brasileira em que o poder reacionário e as atividades criminosas usam o homicídio para eliminar pessoas consideradas "incômodas", há a ilusão de que aqueles que tiram a vida de outrem tornam-se eternas e invulneráveis, mesmo contraindo para si debilidades e outros riscos.

Pode não ser uma relação direta, mas num país atrasado como o Brasil, os homicidas parecem viver na ilusão de que, ao tirar a vida dos outros, "fortalecem" suas vidas somando para si a (s) "vida (s)" que exterminaram.

É uma ilusão cujo sentido tanto pode ser encontrado no antigo canibalismo antropofágico das tribos indígenas, em que "devorar o outro" garantia a absorção, pelo devorador, das caraterísticas pessoais e da força existentes nas vítimas, quanto nas pontuações obtidas em jogos eletrônicos violentos, mas existente também nas premiações do mundo do crime.

Só que os homicidas não sabem que constituem num silencioso grupo de risco da sociedade atual, cuja vulnerabilidade, altíssima, é subestimada pela mídia, que dá a falsa impressão de que, mesmo sendo um ato socialmente condenável, assassinar alguém garante ao criminoso segurança por toda a vida.

Não é bem assim. Como diz o trecho final do sucesso de O Rappa, "Hey Joe", "também morre quem atira". Por uma curiosa coincidência, a música é uma versão da homônima composição de Billy Roberts, consagrada por Jimi Hendrix Experience, cuja letra é um recado para um feminicida conjugal em fuga.

Tirar a vida do outro é o mais extremo ato egoísta que um indivíduo pode fazer, e que, por incrível que pareça, faz seu criminoso altamente vulnerável. Isso se deve a inúmeros fatores, e pode-se destacar do ineditismo de certos atos homicidas até as pressões emocionais que o criminoso terá que suportar pelo resto da vida.

No primeiro caso, o ineditismo de tirar a vida de alguém, como ocorre em casos como o feminicídio conjugal, em que homens aparentemente inofensivos tiram a vida de suas mulheres diante de uma discussão de nada, cria uma tensão emocional que libera no organismo uma substância, a adrenalina, que em doses excessivas pode influir, mais tarde, em doenças cardíacas.

No segundo caso, as pressões emocionais, de todos os lados, criam no homicida, principalmente aquele que não está na cadeia e se expõe a uma sociedade complexa na qual se insere na sua vida livre, um conflito de sensações e sentimentos que também abala seriamente a consciência e o organismo.

Em muitos casos, a má alimentação, o uso de drogas ilícitas, fumo e álcool, a ingestão excessiva de remédios e mesmo o nervosismo ao dirigir automóveis e motos pode representar um perigo para o homicida, que constantemente é pressionado pela revolta social que o atinge diretamente, em especial na sua impunidade.

O ódio extremo e a repercussão de um ato com efeitos irreversíveis cria um mal-estar emocional que abala os organismos dos homicidas, os fazem envelhecer rapidamente e sua vulnerabilidade é agravada pelo fato de que eles não costumam ligar para as graves doenças que, com o tempo, acabam contraindo, como o câncer e o infarto.

Grupos de pistoleiros geralmente usam automóveis em péssimo estado de conservação para cometerem crimes. Fogem em disparada ignorando curvas e obstáculos, e potencialmente podem sofrer um desastre de carro fatal, da mesma forma que pequenos aviões sem conservação sofrem também seus trágicos desastres aéreos.

Mas se um pistoleiro está na garupa de uma moto e atira em alguém, a fuga do veículo em altissima velocidade o faz vulnerável a uma queda no meio do caminho, com a moto em movimento, e, como se não bastasse o impacto doloroso da queda, o risco do pistoleiro morrer atropelado por um outro veículo em alta velocidade é altíssimo.

Os homicidas em geral não admitem tragédias. Cometem o ato de tirar a vida de outrem protegendo os interesses feridos de seus grupos ou sistemas de valores. Só que eles ignoram que não são deuses a definir o final da vida de outrem, e, dependendo dos casos, homicidas podem tanto serem "marcados para morrer" do que as vítimas que friamente eliminam.

Os pistoleiros de aluguel e capangas do jogo-do-bicho, por exemplo, não costumam ter uma grande expectativa de vida. Em sua maioria, morrem antes de completar 60 anos de idade, seja por conta de doenças, seja porque também são assassinados, no caso de disputas entre grupos criminosos rivais.

Os descuidos à saúde, o nervosismo das circunstâncias vividas, os conflitos e tensões de toda espécie e as revoltas vindas de outras pessoas abalam tanto a mente de um homicida que dificilmente ele, mesmo no esplendor da impunidade, possa ter uma vida muito longa, tranquila e saudável.

O moralismo "espírita", seguindo outros conceitos moralistas vigentes no país, é que trata o homicida como um "guardião ilícito" (ou seja, indesejável, mas aceitável) tanto de valores conservadores ou privilégios de poder diversos como, no caso do "espiritismo", de supostos reajustes morais ou os ditos "resgates espirituais" das vítimas, "culpabilizadas" pela moral "espírita", como no machismo, no coronelismo e na ditadura militar.

O próprio "espiritismo" prefere classificar o suicídio como "mais cruel" do que o homicídio e, com sua perspectiva penitenciária da vida material na Terra, prefere que os homicidas vivam longamente para "expiar" pelos seus erros, quando a prática mostra que a longevidade deixa a maioria dos homicidas viciados em suas paixões e vaidades pessoais e no desespero vão de salvar a reputação de suas condições meramente materiais.

Não é preciso pensar em pena-de-morte (prática deplorável e grotesca) nem em atentados ou na "justiça com as próprias mãos" para eliminar os homicidas. Eles, paradoxalmente, criam uma dupla tragédia: a tragédia "à vista" de suas vítimas e a tragédia "a prazo" contra eles mesmos.

Isso porque o homicídio, eliminando a vida da vítima, interrompe a realização de seus projetos de vida, de seus planos e, em muitos casos, de missões de transformação social. Em âmbito coletivo, o genocídio de povos judeus pelo nazismo abalou completamente as culturas de origem judia da Europa Central, conforme relatou o historiador Eric Hobsbawm.

Daí que o homicida atrai contra si todo tipo de pressão moral, que nem a impunidade o deixa imune. Pelo contrário, em muitos casos a impunidade torna-se perigosa, porque o homicida, dependendo do caso, pode também ser morto por um desconhecido, embora apenas o ritmo frenético da sociedade e de seus conflitos de valores já sejam muito fortes para o coração de um assassino.

Uma pessoa como Mark Chapman, o assassino de John Lennon, embora solicitasse várias vezes a liberdade condicional, deveria agradecer seus condenadores, porque a vida fora da cadeia, para ele, diante do fato que os Beatles têm muitos fãs exaltados, poderia representar a morte de Chapman, que teria levado de um beatlemaníaco mais desesperado outros dois tiros de revólver.

Um fato curioso é que Charles Manson, outro psicopata que deveria agradecer à prisão perpétua por ter chegado aos 80 anos de idade (fato quase impossível para um tipo como ele, de passado junkie), teve que encarar a consciência de sua tragédia depois que uma ex-namorada afirmou que se casaria com ele só para construir um mausoléu, assim que ele falecesse.

Até um feminicida conjugal pode ser morto por outro alguém, se caso esse estranho sentir um fascínio pela mulher morta pelo marido e, revoltado, decidir correr atrás dele e matá-lo. Na sociedade complexa de hoje, reações desse tipo podem existir, principalmente quando injustiças e impunidades acontecem, revoltando a sociedade ainda mais.

Tirar a vida do outro é um ato bastante arriscado, porque não se trata apenas de prejudicar alguém, mas de causar um prejuízo permanente e irreversível à vítima. Isso cria reações diversas e mesmo o organismo humano tem limites, e um homicida torna-se, na verdade, mais vulnerável a doenças e acidentes do que uma pessoa dotada de um caráter inofensivo.

Isso contraria muitas visões, independente de serem relacionadas a impunidade ou punibilidade de quem tira a vida dos outros, de que os homicidas "têm mais sorte" para lidar com doenças, imprudências no trânsito ou ameaças diversas.

A verdade é que eles sofrem com a reação da sociedade aos seus atos extremos, já que não raro a indignação contra eles é intensa e também violenta, pela irritabilidade que acontece em outras pessoas.

Daí o fato que os homicidas são um grupo de risco, e são eles mesmos que produzem a tragédia lenta que poderá ceifá-los antes da velhice plena. Matando os outros, eles se matam aos poucos, e a solução é, independente do tempo de vida que consigam alcançar, esperar começar uma nova encarnação respeitando a vida e a vontade do próximo.

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