sábado, 9 de maio de 2015

A pós-modernidade e a atividade de risco da mediocrização sócio-cultural

A FUNQUEIRA VALESCA POPOZUDA E A ASSISTENTE DE PALCO DOS TORNEIOS UFC, ARIANNY CELESTE.

O que faz a pós-modernidade de hoje exaltar a mediocrização sócio-cultural? Por que o mundo decaiu tanto nos últimos anos? Por que o Brasil, tomado de decadência social profunda, é encarado ingenuamente por muitos como se estivesse vivendo o "melhor de todos os seus momentos"?

Não somente o Brasil, mas o resto do mundo, tornou-se propício para a prevalência de interesses e de um contexto social, cultural, político e econômico que protege os facínoras e estimula a ascensão dos medíocres.

Como uma meritocracia às avessas, os tempos atuais oferecem todo tipo de oportunidade para ascensão e permanência de pessoas que expressam qualquer tipo de mediocridade ou aberração sócio-cultural, estabelecendo verdadeiras atividades de risco, porque sua reputação é construída a partir disso e livrar-se dela torna-se uma tarefa bastante complicada.

Para quem não sabe, meritocracia é uma ideologia em que o mérito trazido por critérios hierárquicos prevalece como condição de supremacia social e poder de decisões e até de formação de opinião ou de promoção de um inconsciente coletivo.

Do contrário que muitos acreditam, a mediocrização sócio-cultural não contraria a meritocracia. Pelo contrário, são os detentores da meritocracia que promovem, estimulam e protegem a mediocrização sócio-cultural.

O caso do "funk carioca" é um bom exemplo disso. A ascensão do ritmo nos últimos dez anos se deu pela propaganda travestida de reportagens, documentários, monografias e outros recursos discursivos sofisticados vinda de grupos articulados de intelectuais, produtores culturais, jornalistas, cineastas e celebridades em geral.

Uns expressavam a meritocracia porque haviam cursado pós-graduação universitária e passaram a integrar influentes elites acadêmicas. Outros, porque tornaram-se jornalistas e cineastas badalados pelo establishment midiático. obtém prestígio e poder dentro de sua classe. Sem falar das celebridades, como atores, músicos, esportistas e apresentadores que exercem o poder pela fama.

A própria meritocracia não prescinde a mediocridade. Até pelo fato de que facilmente subcelebridades, artistas medíocres, ou gente relacionada a valores morais duvidosos e atrações discutíveis como reality shows e torneios de UFC, se ascendem com muita facilidade e acreditam que poderão assumir algum "aprimoramento sócio-cultural" depois.

É o caso de uma geração que fez sucesso com música brega entre os anos 1980 e 1990, de Michael Sullivan ao Grupo Molejo, passando pelos famosos Só Pra Contrariar, Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo, João Paulo & Daniel e Grupo Soweto (que lançou o cantor Belo).

Todos eles estiveram em algum instante assumindo a mediocridade artística, o comercialismo musical mais fútil e desprezavam qualquer tipo de cultura de qualidade. Mas, depois que começaram a fazer sucesso, tentaram mudar de postura e se autopromoverem às custas da MPB que nunca haviam se interessado em fazer ou apreciar e até a ridicularizaram severamente.

NÃO QUER, NÃO QUER, MAS QUANDO TEM VANTAGEM NO MEIO...

É aquela coisa. Para seguir uma causa, fulano não quer, recusa-se a fazer, insiste que não vai e ainda ridiculariza quem segue essa causa. Mas, quando a causa gera vantagens, o mesmo fulano tenta aderir e até ser dono dessa causa, e quer ter sobre ela o vínculo permanente que em outros tempos ele achava uma estupidez assumir. E esse vínculo se dá sem a natural competência para a causa.

Outro exemplo é uma emissora de rádio carioca como a Rádio Cidade, que nunca teve o rock como sua causa. Ela surgiu em 1977, quando outra emissora, a Eldo Pop, especializada em rock, estava no auge (apesar de seu idealizador, Newton "Big Boy" Duarte, ter falecido prematuramente naquele ano). E continuou pop quando outra rádio de rock, a Fluminense FM, foi da ascensão ao auge, nos anos 1980.

Só depois a Rádio Cidade cismou em ser "rádio de rock", se promovendo às custas do fim da Fluminense FM, mas sem ter qualquer competência para tal. Não tem competência nem histórico e nem trajetória, mas quer ter o vínculo permanente com uma cultura rock da qual radialistas e ouvintes não têm a menor ideia do que é (e ainda têm coragem de esculhambar nomes como Led Zeppelin, Who e Smiths e já xingaram Renato Russo de "ultrapassado").

Hoje a Fluminense FM tem exposição em sua homenagem, a Maldita 3.0, além de portal na Internet com o mesmo nome. Uma rádio com personalidade e estado de espírito próprios, com trabalho autêntico e fortemente vital pôde apresentar um histórico limpo e verdadeiro que já gerou um livro, A Onda Maldita, do seu idealizador, Luiz Antônio Mello, hoje responsável pela Coluna do LAM.

E a Rádio Cidade que nunca quis ser rádio de rock (o nome "Cidade" é cafona demais para uma rádio de rock) terá que homenagem para seus 40 anos, em 2017? Será que apelará para a vaga lembrança feita em 1997, em ocasião dos seus 20 anos, quando se limitou a dizer que foi a rádio que tocou "Rapper's Delight", do Sugarhill Gang, que com todo o seu valor não foi uma das músicas mais tocadas pela rádio?

Mas, para o Brasil em que Fernando Collor, filhote da ditadura militar, veste a capa de "esquerdista", faz sentido que Chitãozinho & Xororó, Alexandre Pires, Belo e Michael Sullivan queiram estar vinculados à MPB que desdenhavam e a Rádio Cidade do pop ensolarado de 1977 se aproveite da memória curta e da desinformação dos mais jovens para fazer cara feia e vestir a camiseta preta que não cabe na sua estrutura, no seu nome nem na sua história.

E AS PESSOAS?

Todo mundo erra e é capaz de mudar de posturas. Mas não é comum, e é difícil que seja, que pessoas possam assumir uma postura de início e, pouco depois, tenham a segurança de adotar uma atitude inversa. Para o contexto brasileiro, isso é muito raro de acontecer sem que, por trás disso, haja alguma dose de pretensiosismo, tendenciosismo e pedantismo.

Mas isso se dá no establishment sócio-cultural do Ocidente, como um todo. Podemos falar, neste caso, tanto no exemplo brasileiro da funqueira Valesca Popozuda quanto no da norte-americana Arianny Celeste, assistente de palco de torneios UFC.

As duas estão associadas a universos de vulgaridade extrema, como o "funk" e as lutas de MMA (mixed martial arts, ou misto de artes marciais), que atraem um público extremamente machista. As duas alimentam esse mercado e construíram a reputação em torno desse público machista, tendo inclusive estimulado seu imaginário de fantasias sexuais com suas posturas "sensuais".

Só que Valesca e Arianny tentam fugir desse estereótipo, sob a proteção midiática. Elas aderem e depois querem romper com o esquema. Fazem sucesso às custas do imaginário machista e tentam romper com esse mesmo machismo, numa atitude contraditória que revela o risco de assumir valores e procedimentos associados à mediocrização sócio-cultural.

Como os "pagodeiros" e "sertanejos" que nunca estavam aí para a MPB e hoje se acham os "maiores emepebistas do país" através de sua canastrice musical, as musas do machismo tentam renegar o mesmo universo da qual construíram seu sucesso e prestígio.

E esse tendenciosismo chega ao ponto de Valesca Popozuda, que explorava uma "sensualidade" típica de mulheres-objeto do mais grotesco entretenimento machista, ser vista como "militante feminista" por uma campanha acadêmica e midiática tão engenhosa que pegou desprevenida até a atriz e cineasta Ellen Page, lésbica militante.

Da mesma forma, mas com diferenças de contexto, Arianny Celeste é empurrada pela blindagem midiática para ser "musa dos nerds", em alusão a um tipo de pessoa, o nerd, dotada de muita inteligência mas de hábitos considerados desajeitados e excêntricos e que, curiosamente, é vítima das humilhações impostas pelos machistas que apreciam torneios de MMA/UFC.

Só que essa troca de posturas não corresponde a uma autoconsciência ou autocrítica, nem a um arrependimento verdadeiro. Como em outros exemplos. o que existe é um deslocamento de uma postura para outra bem oposta por efeito das conveniências.

FAZ SUCESSO COM UMA COISA, PARA DEPOIS ASSUMIR OUTRA

Pessoas se promovem às custas de uma causa menor ou medíocre, e depois se apropriam de causas opostas a seus interesses originais, em troca de alguma vantagem ou autopromoção. Culturalmente, isso vai do pop convencional ao brega mais rasteiro, que promovem pessoas ou instituições que depois tentam migrar para causas a eles opostas, sem ter arrependimento ou autocrítica à experiência anterior nem mostrar competência ou identificação natural à "nova" causa.

Num país machista como o Brasil, onde até pouco tempo atrás os feminicidas saíam da prisão pela porta da frente e ainda podiam conquistar novas namoradas com facilidade, faz sentido apostar no "feminismo" que os machistas querem representado por Valesca Popozuda ou levar a sério a ideia de que a gringa Arianny Celeste que respalda lutas de valentões seja a "musa dos nerds". Com esse "feminismo", Doca Street e Pimenta Neves podem morrer tranquilos.

O problema é que o sistema de valores que existe na sociedade neoliberal dos últimos 25 anos estimula as pessoas a se autoafirmarem através das piores qualidades ou dos piores meios de expressão e sucesso. Depois, tentam se afirmar com uma postura oposta à que fizeram achando que basta fazer sucesso para mudar de atitude como quem faz reforma de uma casa.

No "espiritismo" brasileiro, isso se torna evidente. Os "espíritas" brasileiros sempre se recusaram a reconhecer Allan Kardec, preferindo agradar os católicos e adaptar seus dogmas e ritos, e só tardiamente, nos últimos 40 anos, passaram a bajular o professor lionês sem no entanto apreciar corretamente seu pensamento.

Isso é mal. E banaliza a própria possibilidade de adotar mudanças de atitude, algo que existe mas não é para qualquer um. Isso porque as "mudanças de atitude" estimuladas pelo sistema de valores dominantes são aquelas em que as pessoas primeiro se afirmam pelo pior e tentam melhorar sem ter competência natural para isso.

Tudo vira uma questão de conveniências, de autopromoção, de pretensiosismo, pedantismo, tendenciosismo. Nada se torna natural nem espontâneo e tudo se torna forçado e falso, além do fato de que a "nova" postura frequentemente é assumida longe da essência da causa tardiamente apropriada.

E isso em nenhum momento garante a integridade de uma pessoa ou instituição, até pela facilidade com que se acredita poder fazer uma coisa, fazer sucesso com ela e depois tentar algo completamente diferente, mesmo sem competência nem identificação natural para isso. Por mais "correta" que possa parecer, tais mudanças de atitude não refletem aprendizado, mas sim a incoerência.

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