sábado, 23 de janeiro de 2016

Imobilidade urbana e o passe nada livre


As manifestações estudantis contra o aumento das passagens de ônibus, em São Paulo e em outras capitais, apela para os mesmos clichês das mesmas manifestações: causas simplórias e imediatas, e a infiltração de oportunistas mascarados que trazem desordens e servem de isca para a repressão policial.

O Movimento Passe Livre tem seu valor,
os estudantes não aguentam usar o dinheiro de seus pais e, em certos casos, o deles mesmos, para pagar tarifas de ônibus mais caras. A cara e a coragem de se unirem e se organizarem é saudável, mas a pauta de reivindicações é que está presa no pragmatismo.

Nas mídias sociais e nas rodas de debates, uma parcela da sociedade começa a perguntar por que os estudantes não lutam para combater uma medida aparentemente inócua e menor que está por trás de muitos problemas que atingem os sistemas de ônibus no país: a chamada pintura padronizada nos ônibus.

Sim, parece tolo afirmar que uma simples pinturinha seja a raiz de tantos problemas, mas a verdade é que ela torna-se o véu de muitas coisas ruins que já existiam no sistema de ônibus, além de outras coisas ruins que o simples ato de colocar diferentes empresas de ônibus sob uma mesma pintura acaba trazendo.

A pintura padronizada tornou-se a "lona" do circo da corrupção político-empresarial do transporte coletivo, da mesma forma que o estabelecimento circense é definido por sua lona caraterística.

Ela simboliza a imagem imposta pelas secretarias de Transportes, municipais ou estaduais, visando vários critérios, como consórcios, zonas, regiões, tipos de ônibus etc. Diante desses critérios, se diferentes empresas de ônibus tendem a ter a mesma pintura, uma única empresa de ônibus pode ter até dez diferentes pinturas.

Muitos aspectos trazem o caráter nefasto de amarrar ônibus na camisa-de-força da imagem do "poder público". E isso traz diversas desvantagens que motivam os aumentos das passagens, o alto custo e a alta burocratização dos sistemas de ônibus.

O fato em que logotipos de prefeituras ou de governos estaduais se destacam sobre o nome de cada empresa mostra que houve intervenção estatal, por mais que as autoridades desmintam. E isso corrompe a natureza operacional dos sistemas de ônibus, uma concessão pública para prestação de serviços de particulares na qual o poder público concede as linhas mas fica com o monopólio de imagem.

CONCENTRAÇÃO DE PODER E DESRESPEITO À LEI

Quem questiona a pintura padronizada nos ônibus - medida cujo repúdio da população cresce a cada ano - acusa as autoridades de contrariar as leis, violando artigos constitucionais, da Lei de Licitações e do Código de Defesa do Consumidor.

Segundo tais pessoas, não é respeitado o princípio de livre iniciativa empresarial (a empresa vira "funcionária" de prefeituras ou governos estaduais), a licitação acaba mais "escondendo" as empresas do que mostrando, o que contraria a finalidade de transparência, e os consumidores acusam as autoridades de usar a desculpa de ônibus mais longos e refrigerados (considerados mais confortáveis) para forçar o apoio à pintura padronizada.

Há também uma crise de representatividade e atribuições por trás. Embora as autoridades digam que o "novo sistema de ônibus" (inspirado na "filosofia" do político ditatorial Jaime Lerner, espécie de "Roberto Campos" do urbanismo) mantém e "só aperfeiçoa" as antigas relações de concessão de serviço de ônibus, nota-se que a figura do secretário de Transportes passou a concentrar mais poderes.

Na prática, o secretário de Transportes, municipal ou estadual, deixou de ser um fiscalizador do sistema, como deveria ser, para ser um dublê de administrador, agindo com autoritarismo e poder centralizado, como se confundisse as funções de vigilância com as de chefia, que sabemos não serem a mesma coisa.

PINTURA PADRONIZADA NOS ÔNIBUS DO RIO DE JANEIRO - Empresas de ônibus ficaram todas iguais.

Mas o pior aspecto, que é o que deveria despertar as preocupações do Movimento Passe Livre, está em muitos transtornos que a pintura padronizada traz, que vão além até mesmo de uma simples confusão de passageiros comuns a respeito de que ônibus pegar para ir ao trabalho ou instituição de ensino.

O fato de diferentes empresas de ônibus se submeterem a uma mesma pintura traz muito mais do que confusão, algo praticamene inevitável num contexto de correria do dia a dia. Pessoas preocupadas em trabalhar, estudar e pagar as contas precisam dobrar a atenção para não pegar o ônibus errado, mas isso é apenas um aspecto entre tantos negativos que a pintura padronizada traz à população.

No Rio de Janeiro, que tardiamente impôs a medida - decisão autoritária do hoje decadente grupo político do prefeito carioca Eduardo Paes - , demonstrou muitos desastres a respeito de tal arbitrariedade.

Linhas trocaram de empresas. Empresas circulam em linhas de outras. Empresas mudam de nome sucessivamente. Empresas ruins com a mesma pintura de empresas boas. A corrupção político-empresarial aumentou, os passageiros não conseguem mais reconhecer as empresas porque elas ficaram todas parecidas e, com isso, os empresários acabam intervindo até na máquina eleitoral, pela promiscuidade que secretários de Transporte e empresários podem ter com a pintura padronizada que praticamente "partidariza" o sistema de ônibus com o logotipo do governo (municipal ou estadual).

Tudo isso é feito sem que a população, já tonta com a "sopa de letrinhas" das letras de consórcios e números de frotas - que diferença faz um D53509 e um D58609, ou um B28504 e B25604 para quem vive na correria, mais preocupado em pagar uma conta com o talão certo no banco correto e com o dinheiro exato? - que representam o hoje tragicômico sistema de ônibus do Rio de Janeiro.

As promessas de "maior transparência" se revelaram grandes mentiras. A licitação, em vez de permitir mostrar as empresas concessionárias, as escondeu. Nem o fato de algumas cidades permitirem a exibição de pequenos logotipos ou autorizar a exibição dos nomes das empresas em letreiros digitais resolve o problema. Pois, na correria e, quando vistos de longe, os ônibus continuam sendo todos iguais, e o risco de alguém pegar um ônibus errado é altíssimo.

MAIS BUROCRACIA E CUSTOS

Mas a coisa não para por aí. No caso de uma única empresa de ônibus, que serve um município, serve outro, atua em várias zonas de um mesmo município e precisa transferir carros semi-novos de um serviço para outro, também surgem aspectos que deveriam despertar a revolta dos estudantes.

Primeiro, porque, quando as empresas poderiam exibir suas identidades visuais, o processo era mais barato e simplificado. A repintura não era necessária (apenas opcional) e bastava pintar algumas partes do ônibus para substituir o código numérico de uma linha intermunicipal, por exemplo, para uma linha municipal. E bastava apenas registrar tudo na documentação da empresa, e o carro era rapidamente transferido, voltando a circular sob um novo número.

Com a pintura padronizada, o método ficou mais demorado e caro, prejudicando os passageiros que querem maior agilidade na renovação de frota. A repintura torna-se obrigatória, o que representa maior gasto com plotagem ou tinta. A transferência de carro tem maior burocracia porque, além da documentação da empresa, tem que se apresentar à prefeitura ou governo estadual para transferir a documentação, que envolve mudança de consórcio, de natureza de serviço e tudo o mais. Mais documentos, mais custos, o que influi severamente no reajuste das passagens.

Outro aspecto negativo é a poluição visual. Quando havia diversidade visual, a empresa tinha suas cores próprias e bastava apresentar seu logotipo e o número do carro, além da indicação da linha e poucos dados (figura do cadeirante, setas de entrada e saída e citação de velocidade máxima).

Com a pintura padronizada, o nome da empresa se "perde" porque tem o logotipo da cidade ou do Estado, tem o logotipo da paraestatal que administra o sistema, o logotipo do consórcio, o logotipo do tipo de serviço, não bastasse a "sopa de letrinhas" que tem o código do consórcio e o número da frota. Em muitas cidades, o ônibus é emporcalhado com até quatro logotipos, cuja exibição faz os passageiros de ônibus pirarem na hora de escolher o ônibus para embarcar.

Juntando ainda a esses tantos aspectos negativos, há o fato de que as empresas de ônibus se desleixam, porque, sem exibir suas respectivas identidades visuais, também não podem estabelecer relações de consumo com os passageiros, que é o processo de oferecer um serviço e cobrar uma tarifa para isso.

Como agora a secretaria de Transportes é que manda e a imagem, mesmo usando desculpas "técnicas" como consórcio, tipo de ônibus e zonas de bairros, é deste órgão, a empresa perdeu responsabilidades administrativas e, por isso, reage sem exercer a devida manutenção de frota, porque agora a imagem que a empresa exibe não é da mesma, mas a do "poder público", que na prática é mais um poder privado, só que estatal, de agentes políticos dotados de seus interesses particulares.

Por isso é que até empresas de ônibus antes consideradas exemplares - como, no Rio de Janeiro, as empresas Alpha, Braso Lisboa, Real e Matias - estão com as frotas sucateadas e apresentando até goteiras no teto. No raciocínio das empresas, se elas agora exibem a imagem do governo (no caso, a Prefeitura), então é o "poder público" que tem que arcar com a manutenção das frotas de ônibus.

Há mais aspectos negativos. Como é o "poder público" que decide pela renovação das frotas, empresas passam a demorar mais na substituição de carros mais antigos. A Viação Acari, também do Rio de Janeiro, tinha o histórico de ter uma frota com vida útil de no máximo três anos. Atualmente, com a pintura padronizada que "rachou" a empresa em dois consórcios (Internorte e Transcarioca), a vida útil simplesmente dobrou.

O aspecto mais prático de que a pintura padronizada é nociva para a população está no caso da extinta empresa Turismo Trans1000, da Baixada Fluminense. A possibilidade da empresa exibir sua identidade visual permitiu que passageiros denunciassem seu serviço irregular e sua frota velha, sucateada e só "renovada" com outros carros velhos. Se a pintura padronizada tivesse valendo para a ligação Baixada X Rio, seria muito mais difícil denunciar, pois a Trans1000 teria as mesmas cores de, por exemplo, a Viação Nossa Senhora da Penha, que conta com um serviço infinitamente melhor e ritmo ágil na renovação da frota.

Portanto, a imobilidade urbana dos sistemas de ônibus que valem em várias capitais e regiões de cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Niterói, Recife, Florianópolis e Belo Horizonte requer ao Movimento Passe Livre uma mudança na sua pauta de reivindicações.

Afinal, será um "passe nada livre" defender tão somente o congelamento das tarifas ou a concessão de gratuidade para estudantes, se ninguém pensar em combater a pintura padronizada, que traz uma série de prejuízos para a população e agrava os problemas já existentes nos sistemas de ônibus.

Aceitar que essa simples medida, a pintura padronizada, carro-chefe de uma série de arbitrariedades, corrupções e burocracias que encarecem o transporte coletivo e fazem os passageiros pagarem mais caro pelos ônibus errados e até por baldeações (como a tentativa da secretaria de Transportes carioca em extinguir as ligações diretas entre Zona Norte e Zona Sul), seja mantida, é dar um "passe livre" para a imobilidade urbana que representa a perpetuação de um "passe nada livre" vivido pelos que vem e vão das casas ao trabalho e aos estudos e vice-versa.

Enquanto isso, certos governos já "renovam" a pintura padronizada, mudando apenas a estampa, como quem quisesse "mudar" para permanecer o mesmo. Enquanto isso, a demagogia sem freio das autoridades empurra essa obsessão em esconder as identidades visuais das respectivas empresas de ônibus, trazendo mais confusão, mais problemas e mais custos para a população. É hora do movimento estudantil amadurecer e pensar em todos esses aspectos.

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