quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A sociedade com medo


A julgar pela baixa visibilidade e pela adesão pequena e instável de páginas na Internet com conteúdo bastante questionador, e pelo conteúdo "água com açúcar" dos livros que lideram as vendas no mercado literário, nota-se que o Brasil tornou-se um país de pessoas com muito medo.

Pessoas evitando amizade com aqueles que "criticam demais" as coisas. Pessoas evitando ler livros cujo conteúdo questiona o "estabelecido". Pessoas deixando de ler páginas da Internet que derrubam dogmas ilógicos e absurdos, porém socialmente consagrados. Pessoas que se dizem "evoluídas" e "de boas energias" que têm surtos de raivas diante de várias questões lançadas por outrem sobre a vida.

Esse quadro é muito diferente do que ocorre no Primeiro Mundo. Em vários aspectos. Lá, overdose de informação é considerada um grande mal que sobrecarrega as mentes das pessoas e impede a melhor assimilação do conhecimento. Aqui, ela é desculpa para a "liberdade de informação" da grande mídia.

A indústria do entretenimento alerta para a mediocrização cultural e os mecanismos fraudulentos de promover a fama de gente com pouco ou nenhum talento, com intelectuais sérios questionando isso e sendo respeitados por muitos. Aqui, todo esse quadro é tido como "maravilhoso" e mesmo acadêmicos, jornalistas e intelectuais consagrados acham que defender gente com pouco talento é "combater o preconceito", uma tese comprovadamente improcedente.

Mas a situação é aberrante até quando se refere a homicidas famosos. Uma jovem moça se fez de namorada de Charles Manson, conhecido psicopata que comandou uma chacina em 1969, para alertar que ele, com mais de 80 anos, está no fim de sua vida (sim, homicidas também morrem). Ela disse que namorava ele para lhe dar de presente um mausoléu para expor o cadáver embalsamado do assassino da atriz Sharon Tate.

Aqui, fala-se que é "preconceito" e "calúnia" dizer que velhos homicidas também adoecem e morrem. Alertar que homicidas que ingeriram remédios em excesso ou, no passado, fumaram demais e consumiram cocaína, estão no final da vida quando atingem a casa dos 80, causa muita revolta (!) em vários setores da sociedade, que pede para "respeitarmos os velhinhos" em vez de supor doenças que "não existem" (embora, no fundo, estejam provavelmente em estágio bem avançado).

E por que tantas coisas acontecem? É porque o Brasil construiu um sistema de valores conservador, que começa a perder sentido nos tempos atuais, um "país" que foi "construído" a partir da Marcha da Família Com Deus pela Liberdade, em 1964, que criou paradigmas moralistas, culturais, tecnocráticos, políticos e midiáticos que hoje sofrem um perecimento avançado. Admitir isso cria mal estar e muitas pessoas preferem boicotar amigos mais questionadores do que mudar de opinião.

A "fuga em massa" para os "livros para colorir" e outras obras literárias "água com açúcar", desde o "youtuber" que "filosofa" sobre masturbação até a velha auto-ajuda religiosa, para as canções de amor, para as comédias teatrais insossas e inócuas, para a mesmice popularesca da TV aberta, fora os memes e vídeos "divertidos" no WhatsApp, refletem essa sociedade marcada pelo medo de hoje.

QUEM TEM QUE CEDER SÃO OS MAIS ARROJADOS

O Brasil é um país bastante conservador. Em várias situações da vida, a sociedade exige que os mais arrojados é que cedam de seus pontos de vista, que não sigam adiante na sua compreensão do mundo. Que "não andem muito para a frente" e deem alguns "passos para trás", se querem receber alguma consideração ou oportunidade.

Hoje, mesmo num contexto democrático, está muito difícil se livrar de paradigmas apodrecidos que só tiveram sentido nos anos 1970, época dos governos militares dos generais Emílio Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979).

Naqueles tempos, havia uma ilusão de "equilíbrio social" que garantia a "paz sem voz" de uma sociedade abastada que queria manter seus privilégios e benefícios e uma grande maioria que "se virasse" diante de tantos infortúnios. Como se manter desigualdades sociais fosse "equilíbrio" e estabelecer um "meio-termo" entre censura e liberdade, à maneira conservadora, fosse um "nível ideal" de expressão democrática.

Muitos textos, principalmente religiosos, sempre apelam para as pessoas mais arrojadas "mudarem seus pensamentos". Sempre ceder em prol do "estabelecido", aceitando um conceito conservador, mesmo que este seja em verdade obsoleto. Daí os apelos de "aceitação", "conformação", "silêncio" e tantas outras castrações "saudáveis" ao pensamento.

Não se trata de conter neuroses e abusos. Afinal, a sociedade conservadora não consegue resolver os contrastes entre o mais moralista e o mais fútil. A sociedade do fanatismo religioso é a mesma da permissividade extrema do "funk". O Brasil de Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro é o país de Solange Gomes e Mulher Melão. Não há o verdadeiro equilíbrio, o "equilíbrio" corresponde, na verdade, a uma aceitação de contradições que trazem sossego para uma minoria de privilegiados.

Pessoas privilegiadas não podem ceder. Os conservadores só cedem quando as conveniências e as pressões da vida pedem. Mas não costumam ceder de verdade, mesmo quando direitistas históricos ou convictos de repente posam de "esquerdistas sinceros" em busca de vantagens pessoais aqui e ali.

O medo da "boa sociedade", que contamina setores de classe média ou mesmo parte das classes populares, torna-se expresso na grande mídia, nas redes sociais e nas ruas. O "fim da infância" do Brasil faz a sociedade ter medo de abrir mão de velhos dogmas, antigos paradigmas e velhos costumes.

Daí que contextos conservadores e supostamente "moderados", como os do governo de Castello Branco (1964-1967), Médici e Geisel e os governos civis derivados dessa visão conservadora, de Fernando Collor (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), são desesperadamente defendidos no momento em que sofrem um grande desgaste.

A sociedade, na medida em que reage com medo aos questionamentos diversos, se refugiando na recreação virtual do WhatsApp, ou no desprezo a pessoas que lhes são "estranhas", demonstra profunda insegurança, e isso também afeta os religiosos, que perdem a antiga supremacia num momento em que a competição religiosa se torna mais acirrada.

E SE CHRISTOPHER HITCHENS FOSSE BRASILEIRO?

O Brasil se apega ao seu "mofo" numa casa prestes a cair. Tanto acostumada com o "cheiro de bolor" trazido pela ditadura militar, que criou um mau hábito do Brasil nunca abrir mão do conservadorismo mesmo quando ocorrem mudanças e novidades, a sociedade agrava sua insegurança e seu alarmismo, sem saber aceitar a atual situação.

O arrivismo dos incompetentes que vai além de uma simplória "corrupção política" trazida pela grande mídia, indo pela mediocrização cultural que domina mais reservas de mercado, pelo conformismo social diante das irregularidades da vida, se culmina com a ilusão de que, com mais misticismo, as pessoas terão melhorias de vida.

As pessoas têm muito medo de ver totens serem derrubados de uma hora para outra, ficando inseguras diante da falta de referenciais de "sucesso" e "prestígio". Imagine Luciano Huck, Fernando Henrique Cardoso, Ivete Sangalo e Jaime Lerner deixarem de ser os "deuses" da adoração humana comum?

Até pouco tempo atrás, internautas no Twitter tratavam o medíocre cantor de axé-music, Saulo Fernandes (genérico vocal de Rogério Flausino, do já não muito conceituado Jota Quest), como se fosse um "deus", colocando o prenome Saulo entre os trend topics (temas mais populares) do portal das mídias sociais.

A religiosização é um mal que existe sobretudo na região Sul e Sudeste, em que o deslumbramento da fé é "exportado" até para medidas e ícones sem relação litúrgica. A programação de rock da FM carioca Rádio Cidade, que demonstra ser incompetente para o gênero, é vista com histeria divina pela sua minoria abastada de ouvintes. Mas até a pintura padronizada nos ônibus de várias cidades faz um simples logotipo de prefeitura ser alvo de "fanatismo divino".

A histeria religiosa nesses fenômenos não-religiosos se dá quando o menor risco da Rádio Cidade tocar um pop mais descompromissado, ser visto por seus ouvintes como uma catástrofe. Da mesma forma, liberar para diferentes empresas de ônibus de São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte, ou mesmo o Rio de Janeiro, a exibir as respectivas identidades visuais causa traumas em muita gente. Há quem prefira perder a mãe do que ver se encerrar a pintura padronizada nos ônibus de tais cidades.

E, dentro do âmbito religioso, imaginemos se tivéssemos uma pessoa influente como teve Christopher Hitchens até cinco anos atrás, nos EUA e Reino Unido (se bem que, postumamente, Hitchens continua influindo na sociedade de hoje). Imaginemos Hitchens sendo brasileiro e investigando as irregularidades de Francisco Cândido Xavier.

O mito de Chico Xavier até chegou a ser combatido. Houve um processo judicial, e pessoas como Attila Paes Barreto, Milton Barbosa e Osório Borba fizeram alertas sobre as fraudes literárias cometidas pelo "médium" de Pedro Leopoldo. Não faltou oportunidade para matarmos o mito de Chico Xavier no seu nascedouro, cortando um mal pela raiz.

Mas em dado momento o medo prevaleceu e a complacência com Chico Xavier, motivada por razões materialistas - o apego a uma imagem MATERIAL de um caipira humilde, depois acrescida do paradigma do idoso doente, que nunca iriam sugerir a de um farsante espertalhão - , e a mistificação prevaleceu sobre a lógica e o bom senso.

Se hoje um Christopher Hitchens aparecesse para recuperar os questionamentos hoje esquecidos de um Paes Barreto e um Borba, chamando Chico Xavier de "anjo do umbral", a sociedade brasileira reagiria com seu natural horror moralista, apegado, repetimos, a estereótipos meramente materiais do "velhinho humilde e frágil", "demonizando" Hitchens e dizendo que ele estava "obsediado" e agindo por "calúnia e difamação".

Os chiquistas demonstram-se dotados de apetites medievais para a fé religiosa que professam, e eles preferem que Chico Xavier seja admirado à revelia de provas, enquanto cobram provas excessivamente rigososas para quem quiser questionar seu mito. E, o que é pior, quando as provas são apresentadas, mesmo com fartura e rigor lógico, os chiquistas não aceitam e as julgam como "maledicentes". Nem Franz Kafka descreveria tamanho surrealismo.

O medo da sociedade está em fazer perder um modelo de país, de vida social, de valores políticos, econômicos, culturais e técnicos, faz com que pessoas deixem de seguir blogues, boicotem amigos, acusem indevidamente fulano e sicrano - a histeria anti-PT é um exemplo disso - e que tentem abraçar os valores e os totens apodrecidos que não querem largar.

Daí que o medo faz as pessoas fugirem para as coisas "agradáveis", entre o bonapartismo psicótico de Jair Bolsonaro e o erotismo obsessivo e forçado da Mulher Melão, entre as "doces mensagens" de Chico Xavier e os comentários raivosos dos Revoltados On Line, entre o "silêncio da prece" e as xingações públicas das trolagens, entre o acobertamento de empresas de ônibus pela pintura padronizada e a ostentação plena dos uniformes de times de futebol.

É um Brasil que não se resolve e não quer se resolver. Que abomina a lógica e o bom senso, quando eles ameaçam totens e dogmas consagrados, por mais reacionários e inúteis que sejam. Um país que confunde contradição com equilíbrio e que está mostrando suas aberrações mais profundas.

É um país em que um rapaz que escreve mal, como o reacionário Kim Kataguiri, é contratado como colunista da outrora sofisticada Folha de São Paulo. Também, é o Brasil do medíocre Merval Pereira que integra a Academia Brasileira de Letras. Um país que prefere se apegar ao obscurantismo religioso do que abrir as mentes para discutir novos problemas.

Um país que aceita a ilógica das religiões que põem a fé sobre a razão (mesmo a "espírita" age assim) e que aceita, em pleno século XXI, que mulheres façam suas carreiras apenas mostrando seus corpos, como reles objetos.

Um país que fica entre a vulgaridade do "funk" e o roquinho de guitarras monocórdicas e vocais sonolentos que impera numa Rádio Cidade sem história nem tradição para o rock, mas que a fé religiosa, "exportada" para fora do âmbito litúrgico, quer que permaneça representando o gênero.

Afinal, não há lógica, não há competência, não há história, só pretensões, abusos, contradições e tantos absurdos. Só que questioná-los é, no Brasil apegado ao conservadorismo, correr o risco de perder amigos, seguidores na Internet, oportunidades de trabalho e aceitação da sociedade em geral. Um país velho se sente ofendido quando lhe dizem para abandonar seus entulhos. Triste.

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