sábado, 13 de fevereiro de 2016

O Brasil viciado


O Brasil não consegue se desapegar de seus vícios. Até agora, as únicas propostas dadas pela sociedade para os muitos problemas brasileiros são o aumento da religiosidade - espécie de "mundo da fantasia" dos adultos - , o escapismo para livros "água com açúcar" (obras de besteirol, livros religiosos e ficções de aventuras) e o repúdio ao Partido dos Trabalhadores.

Todas propostas inócuas, que não atingem as zonas de conforto de uma população que ainda está presa aos últimos entulhos da ditadura militar, em que valores que envolvem do machismo à hierarquia familiar, do neoliberalismo à fé religiosa, são praticamente os mesmos de 1974, época em que o país vivia a mudança dos governos dos generais Emílio Médici e Ernesto Geisel.

Os paradigmas continuam os mesmos da época. O pragmatismo econômico da Era Médici continua valendo hoje, através de um crescimento econômico ancorado em incentivo ao capital privado e, sobretudo, estrangeiro, e à realização de projetos de grande porte ou de valor duvidoso.

Houve a fracassada Transamazônica, naquela época. A usina hidrelétrica de Belo Monte já era um projeto da Era Médici e está em andamento hoje. A transposição do Rio São Francisco também segue a lógica tecnocrática da época. E mesmo o sistema de ônibus implantado em várias capitais e regiões de cidades segue a lógica ditatorial de Jaime Lerner e seus ônibus padronizados.

ATÉ ÍDOLOS MUSICAIS REMETEM A PERIÓDOS POLÍTICOS CONSERVADORES

Na música brasileira, críticos musicais badalados sonhavam em manter ou reforçar o quadro de separatismo em que a MPB e o antigo patrimônio musical das classes populares é isolado no gosto pessoal das elites acadêmicas e financeiras mais rigorosas.

O povo deixava de ter seu próprio patrimônio musical, passando a ter como "sua cultura" um engodo que mal consegue misturar pastiches de ritmos brasileiros com pop estadunidense e que especialistas chamam de brega-popularesco, ou seja, uma categoria musical surgida com os primeiros ídolos cafonas (bregas) e que se consolidou com o poder radiofônico e mercadológico que a apoia.

Não por acaso, o recente revival de ídolos "populares" da "nossa música" reflete essa inclinação da sociedade brasileira em apreciar governos conservadores. O resgate de nomes musicais esquecidos e o contexto em que eles fizeram sucesso demonstra essa inclinação conservadora da sociedade e da intelectualidade associada.

Numa pesquisa realizada em páginas da Internet e sítios da grande imprensa, os ídolos musicais revalorizados tiveram suas ascensões em governos conservadores: quase toda a ditadura militar (exceto o governo Figueiredo, quando o brega liberou o caminho para o Rock Brasil) e os governos José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.

O conservadorismo social e o apego à mediocridade sócio-cultural e a má digestão de valores novos, como o feminismo e a causa LGBT, além de um mercado de trabalho que discrimina justamente quem tem talento mas não parece ter "jogo de cintura" (os patrões agora preferem funcionários comediantes do que gente criativa para o trabalho), simbolizam essa situação.

O feminismo é ainda condicionado aos limites estabelecidos pelo machismo, num Brasil que tem medo de ver feminicidas morrerem. A emancipação feminina sempre encontra uma barreira na sociedade machista que define qual tipo de mulher que deve ser solteira ou não.

De um lado, mulheres siliconadas que tratam o corpo como uma mercadoria erótica, se "sensualizando" de maneira ininterrupta, forçada e repetitiva, em que até sentar diante do pôr-do-sol é desculpa para a "musa" exibir roupas curtas e "caprichar" no decote. Mulheres que não têm medo de expressar o papel caricato e pejorativo da mulher solteira, vista pelo "sistema" como uma vadia que só quer saber de "mostrar demais" o corpo ou se envolver em curtição e noitadas.

De outro lado, mulheres dotadas de inteligência e opinião, que sabem opinar por conta própria, que se vestem de forma discreta e possuem bons referenciais culturais, têm que estar vinculadas, até mesmo quando nem precisam disso, com maridos que, de preferência, exerçam algum cargo de comando ou liderança.

A causa LGBT é trabalhada pela intelectualidade cultural mais badalada de maneira caricatural. Gays vestidos de drag queens fazendo falsetes e caras e bocas. Feministas temperamentais de seios de fora com o corpo pintado de frases de efeito, como um panfleto humano. Detalhes sensacionalistas que pouco colaboram para a compreensão da diversidade sexual e afetiva do país.

BRASIL SÓ ENTENDE O NOVO DESDE QUE NÃO ROMPA COM O VELHO

O Brasil não consegue compreender o novo, que sempre é assimilado sem romper com o velho. Até na cultura jovem do rock, implantou-se uma "rádio de rock" mantendo o nome e a estrutura profissional de uma emissora de pop convencional (estilo que nada tem a ver com o rock), a carioca Rádio Cidade que completará 40 anos em 2017 renegando sua própria origem pop e insistindo num perfil rock caricato feito por gente que não entende do gênero.

O país anda viciado, preso em velhos paradigmas. O Brasil tem um dos piores sistemas de comunicação do mundo. Nos EUA, com todo o comercialismo voraz da indústria cinematográfica, lá se pode questionar até o próprio comercialismo. O monopólio de empresas é questionado até em desenhos da poderosa Warner Bros, como a fictícia ACME da série Looney Tunes.

Aqui, mesmo as desigualdades sociais das classes populares não podem ser questionadas. O cinema brasileiro é sempre obrigado a mostrar uma "periferia sofrida, mas feliz", As redes de televisão impõem até os hábitos, as escolhas, os vestuários e até as gírias que as pessoas devem usar.

A gíria "balada", por exemplo, parece ter vindo da "novilíngua" da Oceânia, o país fictício e tirânico do livro 1984 de George Orwell. tamanha a falta de embasamento e contexto social do termo, que vagamente define desde festa de DJs a jantar entre amigos. Chegou perto: a gíria foi criada por Luciano Huck e popularizada pela Rede Globo e pela reacionária Jovem Pan (conhecida pejorativamente como Klu Klux Pan).

As pessoas deixam de ter seu caminho e até os livros mais vendidos e as peças de teatro mais vistas segue esse país viciado: os livros oscilam quase sempre entre uma "mensagem positiva" religiosa e um relato "divertido" do besteirol da moda. As peças de teatro, entre comédias brasileiras americanizadas e franquias de estórias infantis da Disney (até no Teatro da UFF, em Niterói, foi programada uma dessas franquias).

O mais espantoso nesse quadro de crise de valores, de crises sociais diversas, é que as pessoas acabam reagindo da pior maneira: recusando-se a admitir essa crise. Deixam de seguir blogues, rompem com amigos, despejam comentários irritados do tipo "não é bem assim", tentando fazer crer que tudo está às mil maravilhas.

Para todo efeito, Wesley Safadão é o novo Tom Jobim e a nova Garota de Ipanema tem o perfil da Mulher Melão. Se você questionar isso, é "preconceituoso", "chato", "pessimista", perderá amigos, não terá seguidores da Internet e seu ingresso no mercado de trabalho é dificultado o máximo.

Também, com o mercado se espelhando mais no Pânico na TV para procurar um profissional ideal, achando que aprender uma habilidade profissional é mais fácil do que contar piadas para colegas, com os gerentes de recursos humanos fazendo malabarismos e usando desculpas para evitar contratar profissionais "talentosos demais" (que depois tirariam antigos patrões de seus cargos altos), qualquer frescura é feita para não se aceitar alguém para o emprego.

No Rio de Janeiro, o fanatismo pelo futebol carioca e por um dos quatro times (Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo) é a medida das relações sociais e, pasmem, é pretexto para assédio moral em muitos ambientes de emprego. Parece absurdo, mas não torcer por um desses times e nem gostar de futebol é motivo potencial para alguém ser discriminado por amigos e colegas de trabalho.

Pais de família presos a velhas hierarquias familiares e homens de meia-idade que não conseguem mais trazer grandes lições de vida também refletem essa situação terrível, em que a crise de valores é algo tão grave quanto as epidemias de dengue, zyka e chikunguya pelo mosquito aedes aegypti.

Afinal, são gerações que também se acostumaram com a normalidade forçada da Era Médici e Era Geisel, e que fazem parte do inconsciente coletivo que, de uma forma ou de outra, quer recuperar esses momentos políticos como cães que correm atrás do próprio rabo.

DIFÍCIL PROGRESSO

E assim fica difícil o Brasil se progredir. Foi moleza derrubar o legado da Era Vargas ao longo dos tempos, seja durante a ditadura militar ou mesmo no período de FHC. Derrubar paradigmas de um país que tentava se progredir foi fácil, causando retrocessos profundos que causam efeitos até os dias atuais.

Difícil é romper com a normalidade forçada e os valores pragmáticos trazidos por esses dois governos militares - o pragmatismo econômico e tecnocrático da Era Médici e o minimalismo sócio-cultural da Era Geisel. Valores que perecem mas cuja noção de obsolescência muitos se recusam a admitir e até se irritam quando convidados a assumir tal realidade.

Dessa forma, o Brasil vê suas antes potenciais chances de se tornar desenvolvido se distanciarem cada vez mais. O progresso brasileiro, antes uma possibilidade trazida pela condição virtual de país emergente, torna-se hoje uma utopia difícil de se realizar, com o país no pódio entre os mais ignorantes do mundo.

Já se fala até mesmo da saída do Brasil dos BRICs, já que outros países começam a crescer mais rápido como potência, como a Coreia do Sul e a Tailândia. O velho Brasil que não quer se livrar de velhos entulhos morais, econômicos, políticos, administrativos e culturais terá que assistir quieto à ascensão de outros países ao desenvolvimento em vários aspectos. E nem para "coração do mundo" o Brasil servirá, diante desse quadro tão viciado.

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