terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Machismo impede sociedade e mídia de se "despedir" de velhos feminicidas


A sociedade brasileira ainda é machista. E muito, muito moralista. Diante de tantas e tão diversificadas tragédias humanas, uma que a sociedade se recusa a admitir é a do feminicida, sobretudo de motivação conjugal, e dotado de algum status quo mais favorável.

Nas conversas de rua e até em mídias sociais, começam as especulações que conhecidos feminicidas idosos estão no final da vida, e podem falecer pelos efeitos naturais de intenso tabagismo e cocaína, ou de overdoses de remédios.

Até aí, nada demais, se não fosse a reação da sociedade, mesmo de homens e mulheres que parecem "modernos", que definem esses rumores como "ofensivos" e "discriminatórios". O mais aberrante disso é que, se em vez de feminicidas fossem descritos músicos de rock pesado, a reação mudava da indignação para a euforia.

O Brasil vive o ocaso do machismo. Ele ainda resiste, tanto pela violência feminicida de estupradores ou de cônjuges masculinos que se julgam "traídos" - até um inocente pedido de divórcio é visto por certos maridos ciumentos como "traição" e motivo para a pobre mulher ser exterminada - , de um lado, e do erotismo forçado e obsessivo das chamadas "musas populares" e siliconadas.

Em ambos os casos, a mulher é vista como objeto. No caso do moralismo da "honra machista", ela é o troféu de machistas abastados e bem-sucedidos, que não estão acostumados com contrariedades. Eles esquecem de amar suas mulheres, apenas se envaidecem de exibir seus "prêmios" em eventos sociais e, quando elas reclamam, eles compram bombons ou fazem outras gentilezas materiais, mais como regra de etiqueta.

Quando elas, porém, deixam de cumprir o papel de submissas e pedem a separação de seus maridos, namorados ou noivos, eles estranham e, tomados de raiva, vão logo perguntando: "está se envolvendo com alguém"? Aí pinta a briga e a vingança homicida e, depois, a fuga dos criminosos, antes definidos como "passionais".

Depois da prisão e do julgamento, vários deles foram beneficiados pelas brechas da lei, que os condenou a prisão, teoricamente, em regime semi-aberto, porque, com o tempo, eles são dispensados até de se apresentar aos delegados para dizer onde estão.

Nos anos 1980 e 1990, vários feminicídios de motivação conjugal ocorreram, como que em epidemia. Basta um caso famoso de impunidade para inspirar práticas semelhantes. Foi uma guerra unilateral na qual centenas de milhares de mulheres acabaram perdendo, e os homens, em tese, sempre triunfantes. Entre 1977 e 2014, o número de mulheres mortas por seus companheiros atinge níveis comparáveis a de missões de guerra.

Desde que um conhecido playboy da alta sociedade - cujo tabagismo inveterado, combinado ao então consumo intenso de álcool e cocaína, deixava os amigos aflitos - cometeu um homicídio contra sua namorada, no final de 1976, o machismo vingativo tornou-se conhecido pela sociedade e fez ceifar vidas de muitas mulheres que poderiam contribuir para o progresso social do país, de alguma forma.

Infelizmente, apesar da revolta do movimento feminista contra muitos casos de impunidade que beneficiaram esses criminosos, a surreal tradição moralista no Brasil permitiu também a impunidade social, quando aquele que foi livre da condenação criminal, apesar do crime que cometeu e de sua gravidade, passa a ser visto com simpatia pela sociedade.

A tragédia passa a ser vista como um processo unilateral vivido pelas mulheres, em muitos casos, com base na visão preconceituosa de que a vítima é a "culpada", porque "fez por merecer", como "gritar pro marido", "largar o conforto da vida conjugal" etc.

"COSTELA DE ADÃO"

E isso sem falar de que a mulher, de acordo com a visão machista mais radical, é vista como "coisa" e a própria mídia contribui para isso. Até na forma de abordar o estereótipo da mulher solteira e da mulher que "deve permanecer casada" a grande mídia trabalha numa campanha sutilmente depreciativa e preconceituosa.

A mulher que "pode ficar solteira" é aquela mulher que se entrega ao entretenimento obsessivo, à curtição e ao sensualismo compulsório. Quanto "mais sensualizar", menos obrigação terá de ter um marido ou namorado. Já a mulher que desenvolve diferenciais culturais e intelectuais precisa viver sob a "sombra" do marido, por mais que possa às vezes aparecer sozinha em eventos sociais.

A mulher se transforma numa "coisa", baseada no mito católico da "costela de Adão", e quando em certos casos ela deixa de se sujeitar ao jugo machista do cônjuge, ele reage a mata, seja com tiros, facadas, estrangulamento ou outro tipo de agressão mortal.

E é compreensível que os feminicidas que deixam a cadeia para viver um "ostracismo tranquilo" recebam mais condescendência da sociedade do que os familiares das vítimas, que têm que conviver com um drama irrecuperável, enquanto os algozes "merecem mais sossego".

Afinal, na sociedade moralista e machista, a mulher é uma "coisa", o homem é que é um "ser". O homem é que é "humano", ele é que "tem princípios", "decisões", é um "ser pensante" e "tem emoções" e "vontades" que "devem ser respeitadas".

E, quando é um homicida de elite, abastado ou rico, e que comete crimes com base em bandeiras moralistas como a "legítima defesa de honra", então ele cometeu um "mal necessário" ou mantém uma respeitabilidade insólita mesmo quando seu ato é visto como "abominável".

E, combinando com a postura "divinizada" do homem de status, isso se torna mais grave. Os feminicidas conjugais, quando ricos e prestigiados, acabam sendo tratados como coitadinhos que deixaram copos de vidro se quebrarem, e não como homens que eliminaram vidas de forma cruel e irrecuperável.

FEMINICIDAS E SUAS PRÓPRIAS TRAGÉDIAS

O grande problema que muitos ignoram é que quem tira a vida dos outros produz sua tragédia pessoal. E, no caso da violência machista, especialistas afirmam que não é prática de um machista em geral, violento ou não, cuidar de sua saúde.

No caso de pessoas com alguma formação moral e sócio-cultural, que sabem do risco que é tirar a vida de outrem, a sensação de contrariar todas as advertências de nunca cometer esse ato e acabar cometendo traz um misto de ansiedade, catarse e raiva que abalam o organismo que, através desse "desafio", sofre um efeito devastador. Para pessoas assim, tirar a vida de uma pessoa tem, no organismo, um efeito comparável a de consumir crack pela primeira vez.

Muitas das tragédias feminicidas são motivadas por álcool e drogas. Os homens que eliminam suas mulheres são bastante temperamentais, e, se perdem a cabeça diante de um simples pedido de encerrar uma relação conjugal, tendem também a ser vulneráveis quando dirigem carros percorrendo longas distâncias. Se usam cocaína, heroína, não é a "defesa de honra" que os poupará de uma overdose fatal.

Conta-se que infarto, câncer e acidentes de trânsito são causas potenciais de mortes de feminicidas conjugais. Recentemente, dois jovens que mataram namoradas morreram, durante a fuga, em acidentes de carro, um em Florianópolis, em 2014, e outro em Brasília, em 2015. Outro feminicida conjugal de 57 anos morreu de acidente vascular cerebral, em São Paulo, também em 2015.

Como todo alguém que fuma demais, que sofre problemas cardíacos, que ingere remédios demais, que contrai vírus HIV, que se atrapalha na direção de um carro diante de uma manobra arriscada, os feminicidas têm tanto risco de sofrerem os efeitos trágicos de qualquer pessoa com tais deslizes, a "defesa de honra" não é desculpa para fazê-los menos vulneráveis que os outros homens.

No entanto, a tradição moralista acha ofensivo e preconceituoso falar, nas rodas pessoais ou nas mídias sociais, que um feminicida mais velho está no final da vida, mesmo quando no passado, recente ou não, ingeriu nicotina em excesso e cocaína ou tomou uma overdose de remédios com tarja preta.

"Deixem o cara viver em paz", é o que costumam reagir os moralistas, que agem assim de forma perigosa. Pois a defesa do "sossego" de pessoas que tiram a vida em nome da "honra" machista ou, fora do femincídio, do extermínio do latifúndio contra ambientalistas, sindicalistas e similares, pode esconder preconceitos e neuroses sociais cruéis, que em vários países impulsionaram a ascensão política de fascistas.

Sem perceber que, morrendo, os feminicidas tenderão a uma reencarnação melhor, recomeçada do "zero", acreditam que eles possam recuperar seus atributos materiais - a chamada "boa reputação" social - prolongando demais a vida, mesmo mediante riscos de graves doenças. Mas o que está em jogo é a "recuperação" de atributos que, de qualquer maneira, desaparecerão com a morte, como sobrenomes ilustres, participação no controle de empresas, prestígio nas colunas sociais etc.

É o mesmo país em que kardecianos autênticos mas um tanto frouxos acreditam que possa se voltar às bases originais de Allan Kardec mantendo Chico Xavier no seu pedestal, como um velho ocioso e dispendioso sendo mantido numa casa de família, sem servir para coisa alguma. Há quem acredite que o Brasil possa avançar no feminismo mantendo velhos feminicidas "arrastando" numa velhice inútil e dolorosa.

O Brasil tem esse cacoete de pensarmos o novo e mantermos o velho. Não nos livramos do bolor que está no alto da parede. Pensamos em novidades mantendo o entulho no porão. Com 30 anos de redemocratização, boa parte dos "heróis" e "ídolos" brasileiros são pessoas que fizeram sucesso na ditadura militar, sejam arquitetos, cantores, dançarinas, políticos que viraram radialistas etc. Muitos brasileiros ainda pensam o país como se estivéssemos sob o governo do general Geisel.

Daí que nem para dar adeus a velhos machistas seus seguidores fazem. Nem os moralistas, nem a grande mídia, conseguem cogitar que feminicidas também morrem. As mesmas pessoas que ficam resignadas quando atores e músicos de grande talento anunciam que estão gravemente doentes, consideram "ofensa" e "desrespeito" anunciar que feminicidas também podem ter enfermidades graves.

O que os feminicidas sofrem não se compara com os sofrimentos das famílias das mulheres mortas. E por que é ofensivo dizer que um feminicida de 80 anos pode estar com câncer, ou admitir que feminicidas podem morrer de infarto até antes dos 50 ou 60 anos, se suas mulheres foram mortas com muito menos idade?

Os moralistas tentam definir como "sofrimentos demais" as tristezas desses machistas vingativos. Mesmo assim, não ignoram a outra tragédia, que mata aos poucos esses mesmos machistas. Não se admite sequer que eles possam deixar testamentos, que possam se despedir da sociedade, que possam também ser "finados" e desaparecer do convívio material de alguém.

Com essa omissão moral, a sociedade moralista remete ao mesmo vício do Brasil insistir no "novo" sem romper com o "velho". Preferem um feminismo que não supere o machismo e que mantenha os velhos machistas intatos como velhos adornos que as pessoas não querem se livrar. Há muito medo de boa parte da sociedade brasileira em mudar de verdade o nosso país.

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