ALMAS GÊMEAS - Ascensão de Francisco Cândido Xavier se deu de forma tão desonesta quanto a de seu conterrâneo Aécio Neves. E mais: Chico Xavier e Aécio Neves se admiraram mutuamente.
Quando se questiona o mito de Chico Xavier, muitos, revoltados - e com a irritação que parece inconcebível para gente que se afirma "possuir energias elevadas" - , perguntam "Quem foi que disse isso? Quem?", com uma fúria intolerante de tal forma que nem mesmo quando o interlocutor revela quem disse a pessoa se revolta e não dá crédito.
Pode ser o maior jornalista investigativo, o intelectual mais comprometido com a coerência, um pensador que se preocupa com a ética e o bom senso, que a pessoa que defende o "médium" não se convence. Chega-se ao ponto de que nem mesmo os insuspeitos Jesus Cristo e Allan Kardec podem questionar o mito de Chico Xavier, que se tornou o "dono da verdade" no Brasil.
Chico virou um ídolo religioso ao qual se dirige um fanatismo preocupante, um deslumbramento movido por apelos emotivos bastante perigosos, que partem de um conjunto de apelos manipuladores das mentes humanas, chamado "bombardeio de amor", uma técnica muito perigosa na qual se produzem falsos sentimentos, na verdade meras sensações extasiantes, que simulam estados de serenidade, alegria ou comoção, que facilmente se convertem em raiva na menor adversidade.
A imagem desse ídolo religioso, poucos admitem, foi fruto de uma trajetória arrivista, que pode ser seguramente comparada com a trajetória política do tucano Aécio Neves, mineiro como foi o "médium" Chico Xavier. Aécio é marcado pelo envolvimento em vários escândalos de corrupção. Para complicar as coisas, Aécio e Chico nutriram admiração mútua, quando se encontraram, no final da vida do religioso, que sempre sonhou com um político, nos moldes de Aécio, governando o país.
Essa imagem foi construída por um engenhoso discurso que se deu em duas longas etapas. A primeira, através do presidente da Federação "Espírita" Brasileira, Antônio Wantuil de Freitas, espécie de "empresário" de Xavier, que o moldou à semelhança de um popstar religioso.
SUPOSTO PORTA-VOZ DE LITERATOS MORTOS
Desenvolvendo um apelo mais sensacionalista do que conhecemos nos últimos anos, Wantuil promoveu Chico Xavier como um paranormal "extraordinário", desenvolvendo a imagem surreal do caipira de baixa instrução que "mantinha contato" com intelectuais e literatos mortos e por isso impunha uma imagem sobrenatural de "porta-voz das altas inteligências humanas".
Só que esse mito, trazido a partir de um problemático livro, Parnaso de Além-Túmulo, de 1932, revelou-se falho desde o começo. O referido livro, uma coleção de poemas supostamente atribuídos a autores já falecidos e que já pegava mal com o título, uma referência ao já superado movimento literário de Parnasianismo - em 1932, dez anos após a Semana de Arte Moderna, o movimento modernista, que "sepultou" os parnasianos, já estava consolidado - , tinha problemas graves de estilo.
Um aspecto muito estranho se constata: o livro teve reparos em cinco edições. Suposta obra da "espiritualidade superior", o livro não poderia passar por alterações em cinco edições por tanto tempo, em 23 anos. Além disso, a obra passou por polêmicas severas e graves, com a justa indignação dos movimentos literários, que conhecem mais do que ninguém os estilos pessoais dos autores envolvidos.
As paixões religiosas tentam desqualificar intelectuais como Osório Borba e Malba Tahan, ao desqualificar as "psicografias" de Chico Xavier, mas esses intelectuais têm razão, uma vez que as falhas de estilo, nas quais se observa as divergências estilísticas entre o que os falecidos autores deixaram em vida e o que se produziu de "espiritual" atribuído a eles, não bastasse a queda de qualidade que reduz as "psicografias" a paródias e pastiches.
Em seus últimos anos de vida, o escritor maranhense Humberto de Campos havia escrito um artigo irônico em duas partes no Diário Carioca, resenhando o livro poético lançado pelo "médium". Humberto recomendava a Chico Xavier não investir em obras do além, para que os mortos não possam concorrer com os vivos, tirando o ganha-pão destes.
A usurpação de Humberto pelo "médium" traz indícios de revanche. O estilo culto, descontraído e, por vezes, irônico, acessível, ágil e laico de Humberto desapareceu, pois nas "psicografias" o estilo que surgiu sob o nome do famoso autor maranhense era outro. Era um estilo mais melancólico, com narrativa pesada, texto prolixo, alternando entre apelos igrejistas e conteúdo moralista severo, que só raramente guarda semelhanças, e ainda assim em níveis de pastiche, ao autor maranhense.
Essa apropriação não só manteve a revolta dos intelectuais e literatos como levou o "médium" para o banco dos réus. Mas a seletividade da Justiça daquela época - não muito diferente das turmas do STF, Ministério Público etc dos dias de hoje - preferiu se apegar ao prestígio religioso do réu e julgou a ação "improcedente", dando a impunidade necessária a Chico Xavier, abrindo caminho para uma perigosa ascensão pessoal.
Ela é perigosa porque é movida por apelos emocionais muito traiçoeiros, que travam a razão e corrompem a percepção, e Wantuil fez de tudo para promover seu pupilo às custas de muito sensacionalismo. Um incidente sombrio se deu entre o julgamento do caso Humberto de Campos, 1944, e a "parceria" Malcolm Muggeridge / Rede Globo que reinventou o mito do "médium" mineiro no final dos anos 1970.
Esse incidente se relaciona ao sobrinho Amauri Xavier Pena, morto misteriosamente em 1961, com apenas 28 anos incompletos. Viciado em álcool, ele no entanto morreu estranhamente mais cedo do que tendem a morrer viciados dessa natureza. Normalmente alcoólatras morrem na faixa dos 35 anos, e isso quando também ampliam seu vício para o uso de drogas como cocaína, tendo sido o caso mais famoso, então, com o jazzista Charlie Parker, morto aos 34. Não há indícios de que Amauri tenha usado drogas pesadas.
Tendo denunciado as fraudes do próprio tio, Amauri foi alvo de uma campanha caluniosa antes de ser internado num sanatório "espírita". Há indícios de que ele teria sofrido agressões no sanatório e, depois de "liberado", teria morrido envenenado. Oficialmente, a FEB deu um comunicado dizendo que o jovem "morreu de hepatite", mas suspeita-se que alguém colocou em uma bebida tomada pelo jovem um remédio que provocasse intoxicação hepática grave.
Era um episódio muito sombrio no qual os "espíritas", de propósito, tentaram criar uma narrativa confusa. Até o sobrenome foi trocado, de Amauri Xavier Pena para Amauri Pena Xavier, quando se sabe que ele era sobrinho do "médium" por parte de mãe, tendo portanto sido Xavier Pena (Pena era o sobrenome do pai) e não Pena Xavier. Inventou-se até que ele falsificava dinheiro, uma das inúmeras inverdades feitas para difamar e ofender o jovem, vindos de quem diz "condenar" tais atitudes.
NARRATIVA DE NOVELA "GLOBAL"
Chico Xavier estava ligado a ações fraudulentas envolvendo suposta materialização - que, registradas propositalmente em fotos de baixa qualidade, escondiam truques como mostrar modelos encapuzados vestidos de branco com as fotos impressas dos mortos coladas na área da cabeça, além do uso de gazes, muito usadas em enfermarias, para forjar falsos hectoplasmas - e falsas psicofonias, não fosse suficiente a produção de obras fake tidas como "espirituais".
Em muitos casos, Chico Xavier quase foi desmascarado, e isso mostra o quanto ele não merecia sequer um milésimo do crédito que até hoje, agora postumamente, recebe. Em 1944, ele era condenado por se promover às custas do prestígio de um escritor morto. Em 1958, foi denunciado por um sobrinho sobre as farsas "psicográficas". Em 1964, por se associar a uma farsante que criou um espetáculo ilusionista de "materialização". Em 1969, de consentir com o enriquecimento da cúpula da FEB com os lucros dos livros do "médium".
Isso lembra muito os escândalos recentes de Aécio Neves, que personificou o "herói brasileiro" que Chico Xavier sonhava já em 1952. Aécio está envolvido em vários escândalos de corrupção: Banestado, Correios, Mensalão, Petrolão (propinas da Petrobras, alvo da Operação Lava Jato), compra de voos para reeleger Fernando Henrique Cardoso, construção com dinheiro público de aeroporto para uso pessoal numa cidade de Minas Gerais, e concessão de rádio a familiares.
É extremamente estranho que um ídolo religioso que muitos querem comparar a Jesus Cristo esteja envolvido em tantos escândalos. A tradicional falta de discernimento dos brasileiros tenta supor que o rol de confusões de um "médium espírita" servia apenas de armadilha contra um "homem de bem", quando se sabe que o verdadeiro homem de bem, honesto e coerente, tem uma vida sem escândalos e com o menor número de erros possível, e, destes, com menor teor de gravidade admissível.
Chico Xavier não pode ser enquadrado como pessoa honesta, coerente e de trajetória límpida e coerente. O discurso que tanto se fala dele de uma "trajetória humilde em favor do próximo" foi uma construção ideológica, uma fábrica de consenso armada por um discurso religioso montado durante a ditadura militar, num período de convulsões sociais próspero para se fabricar um ídolo religioso para incitar a comoção humana e o sensacionalismo da fé mística.
O discurso que atualmente prevalece "divinizando" o anti-médium mineiro foi montado nos anos 1970, ainda na Era Geisel, visando três finalidades:
1) PROMOVER COMOÇÃO POPULAR NUM MOMENTO DE CONVULSÕES SOCIAIS - A ideia é forjar um suposto pacifista que fosse alvo da emotividade coletiva, através de uma simbologia mística e religiosa tomada de sensações emocionais bastante exageradas, não raro sucumbindo à mais nauseante pieguice. Era uma forma de desviar a atenção aos problemas sociais em prol da idolatria, com níveis de morbidez, a um falso herói religioso, protegido pela emotividade cega dos seguidores.
2) DESVIAR A ATENÇÃO DIANTE DA ASCENSÃO DE ATIVISTAS SÓCIO-POLÍTICOS - Nessa época, estava em ascensão o líder sindical Luís Inácio Lula da Silva, o mesmo que, como ex-presidente da República, aguarda julgamento pela oitava turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), em Porto Alegre.
Símbolo maior das políticas progressistas do Brasil, Lula tentava ser neutralizado, como ativista político, pela promoção de figuras religiosas "ecumênicas", sendo que, neste contexto, a Legião da Boa Vontade e a Federação "Espírita" Brasileira foram patrocinadas pela ditadura militar para este fim. Chico Xavier, que nunca foi com a cara de Lula e apoiou Collor em 1989, foi o escolhido para ser o "ídolo religioso" a desviar a atenção dos brasileiros para as verdadeiras lideranças sociais.
3) NEUTRALIZAR A CONCORRÊNCIA COM OS PASTORES ELETRÔNICOS - A ideia também é neutralizar a concorrência dos chamados "pastores eletrônicos" que poderiam se tornar um poder político paralelo que não estava vinculado à ditadura militar, apesar de igualmente conservador.
Dessa forma, o "espiritismo" brasileiro passou a ser adotado pelas Organizações Globo, que deixou a antiga animosidade a Chico Xavier e reinventou seu mito, enfatizando menos os aspectos paranormais para dar maior destaque à sua "caridade", que na verdade consiste na prática paliativa e pouco eficiente do Assistencialismo, que "alivia a dor" mas não "cura de vez" a "doença" da pobreza, salvo em poucos casos pontuais, feitos "para inglês ver".
Aliás, falando em inglês, a reinvenção do mito de Chico Xavier se baseou rigorosamente no roteiro que o jornalista católico e ultraconservador, o britânico Malcolm Muggeridge, criou para Madre Teresa de Calcutá, no documentário Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), lançado em 1969. Madre Teresa era acusada de maus tratos, deixando os alojados nas casas das Missionárias da Caridade em condições sub-humanas e era preciso promover uma imagem dócil da religiosa.
A década de 1970 era a retomada do ultraconservadorismo social, em reação à Contracultura e alguns governos progressistas dos anos 1960 (e, no caso do Chile, entre 1970 e 1973). O aumento das guerras na América Central e no Oriente Médio e o fortalecimento das ditaduras era reflexo de uma necessidade da "civilização ocidental" de reforçar o poderio de setores ultraconservadores da sociedade.
Diante disso, o mito de Madre Teresa de Calcutá simbolizou um paradigma conservador de "caridade", o Assistencialismo - embora erroneamente denominado de Assistência Social e equivocadamente definido como "transformador de vidas" - , na qual se ajuda muito pouco os mais necessitados, preferindo ações paliativas que tragam benefícios relativos ou precários, enquanto se promove a imagem pessoal do ídolo religioso como um pretenso santo benfeitor.
O roteiro que "santificou" Madre Teresa antes do Vaticano parecia obra de cinema: a "filantropa" chegando a uma comunidade carente acolhida pela multidão, depois ela acolhe doentes prostados na rua, pobres carentes desesperados e, em seguida, carrega um bebê no colo. Em seguida, entra numa casa de "caridade" para visitar quartos com pessoas doentes e raquíticas, e ir para a cozinha ver crianças tomando sopa.
No final, a "filantropa" é convidada a sentar numa mesa plenária no salão principal da casa, e, respondendo a uma entrevista coletiva, divulga frases de efeito, dotadas de apelo religioso e de um forte conservadorismo moral, que passam a marcar a trajetória da religiosa e, portanto, vira uma pretensa "filosofia de vida" a ilustrar hoje os memes religiosos nas redes sociais, hoje reduto do mais neurótico conservadorismo social.
Chico Xavier recebeu o mesmo roteiro que Muggeridge fez para Madre Teresa, só que com narrativa típica de novela da Rede Globo. O roteiro foi "dissolvido" em noticiários como o Jornal Nacional e o Fantástico e várias edições do Globo Repórter, a partir dos últimos anos da década de 1970. Foi esse discurso que acabou criando a imagem "divinizada" que muitos acreditam ser do "médium".
Com isso, essa imagem se contagiou para outros "médiuns", como Divaldo Franco, em ascensão naqueles mesmos anos 1970, e João de Deus. E criou paradigmas de "caridade" e "bondade humana" que podem comover muita gente, mas são paradigmas falsos, tendenciosos e cujos efeitos sociais são, em verdade, inexpressivos. Se realmente funcionasse, essa "caridade" colocaria cidades miseráveis para padrões escandinavos de vida.
A memória curta, triste vício comum entre boa parte dos brasileiros, ocultou os aspectos sombrios da vida e carreira de Chico Xavier, que além de tudo isso defendeu o golpe militar e continuou apoiando a ditadura na sua fase mais repressiva. Além de tantas irregularidades, ele ainda defendia valores conservadores e fazia apologia ao sofrimento humano. É muito triste ver que até mesmo as esquerdas andam complacentes com uma figura dessas, de infeliz trajetória.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.