sábado, 28 de novembro de 2015

Suposto Allan Kardec foi o primeiro 'fake' do "movimento espírita"

DESCARAMENTO PURO - Edição de livro "pirata" com imagem de Allan Kardec.

Sabemos que as fraudes mais conhecidas cometidas sob o patrocínio da Federação "Espírita" Brasileira estão voltados sobretudo a Francisco Cândido Xavier e seus discípulos. Mas, nos primórdios da FEB, uma fraude em igual nível vergonhoso foi cometida, ainda no século XIX, constituindo no primeiro fake difundido pelo "movimento espírita".

Trata-se da usurpação do próprio nome de Allan Kardec, "evocado" para apoiar o roustanguismo defendido pela FEB, sob a alegação de que o mistificador Jean-Baptiste Roustaing, responsável pelo livro Os Quatro Evangelhos, seria apenas um "modernizador" e "complementador" do pensamento kardeciano, o que se comprovou ideia falsa que até envergonhou parte de seus seguidores.

O falso Allan Kardec havia difundido uma mensagem intitulada "Instruções de Allan Kardec aos Espíritas do Brasil", no Grupo Espírita Fraternidade, no Rio de Janeiro, em 05 de fevereiro de 1889, cinco anos após o surgimento da FEB e 21 antes do nascimento de Chico Xavier.

Trata-se de um Kardec irreconhecível, igrejista, prolixo, por vezes agressivo, que escreve jargões que o professor lionês nunca iria citar e que são próprias do imaginário de Roustaing, autor que, sabemos, foi reprovado pelo próprio Kardec. Note-se que o tom da mensagem está muito mais para um padre do que para um pedagogo, e o texto diverge completamente da linguagem kardeciana.

O texto é longo, com 11 páginas, das quais selecionaremos alguns trechos. A mensagem já começa com um tom igrejista e com sentimentalismo piegas, elementos estranhos às ideias e ao texto preciso de Allan Kardec:

Paz e amor convosco.

Que possamos ainda uma vez, unidos pelos laços da fraternidade, estudar essa doutrina de paz e de amor, de justiça e de esperanças, graças à qual encontraremos a estreita porta da salvação futura — o gozo indefinido e imorredouro para as nossas almas humildes.

Antes de ferir os pontos que fazem o objetivo da minha manifestação, devo pedir a todos vós que me ouvis - a todos vós espíritas a quem falo neste momento - que me perdoeis se porventura, na externação dos meus pensamentos, encontrardes alguma coisa que vos magoe, algum espinho que vos vá ferir a sensibilidade do coração.

O cumprimento do dever nos impõe usemos de linguagem franca, rude mesmo. Por isso que cada um de nós tem uma responsabilidade individual e coletiva e, para salvá-la, lançamos mão de todos os meios que se nos oferecem, sem contarmos, muitas vezes, com a pobreza da nossa inteligência, que não nos permite dizer aquilo que sentimos sem magoar, não raro, corações amigos, para os quais só desejamos a paz, o amor e as doçuras da caridade.

A estranha ênfase na caridade e na fraternidade, defendidas com paixão exagerada no vazio de ideias da referida "instrução", o pseudo-Kardec escreve muito para nada dizer, o que dá um tom evidente do texto como sendo não uma mensagem de um pedagogo aos brasileiros, mas o de um sermão de um padre católico impresso.

Corridos os séculos, desenvolvido intelectualmente o espírito humano, Deus, na sua sabedoria, achou que era chegado o momento de convidar os homens à meditação do Evangelho - precioso livro de verdades divinas - até então ensombrado pela letra, devido à deficiência da percepção humana para compreendê-lo em espírito.

Por toda a parte se fez luz; revelou-se à Humanidade o Consolador prometido, recebendo os
povos - de acordo com o seu preparo moral e intelectual - missões importantes, tendentes a acelerar a marcha triunfante da Boa-Nova!

Todos foram chamados: a nenhum recesso da Terra deixou de apresentar-se o Consolador em nome desse Deus de misericórdia, que não quer a morte do pecador - nem o extermínio dos ingratos - e sim os deseja ver remidos dos desvarios da carne, da obcecação dos instintos.

Sendo assim, a esse pedaço de terra, a que chamais Brasil, foi dada também a Revelação da Revelação, firmando os vossos Espíritos, antes de encarnarem, compromissos de que ainda não vos desobrigastes. E perdoai que o diga: tendes mesmo retardado o cumprimento deles e de graves deveres, levados por sentimentos que não convém agora perscrutar.

Observa-se, nessa declaração igrejista, cheia de "enrolação" de caráter religioso, e, portanto, diferente do que Kardec realmente escreveria se caso se dirigisse aos brasileiros, que o "alam cardeque" da mensagem em questão contraria o pedagogo ao definir o Evangelho como "livro de verdades divinas".

É bom deixar claro que o verdadeiro Allan Kardec, ao publicar O Evangelho Segundo o Espiritismo, chegou a pensar em publicá-lo usando o termo francês imitation, que tanto pode ser "imitação", mas deve ser entendido pelo sinônimo menos conhecido, "interpretação". Em outras palavras, Kardec questionava o Evangelho e o analisava como um cientista, buscando a lógica e não a fé.

Observa-se também o termo Revelação da Revelação, expressão que é o subtítulo do livro Os Quatro Evangelhos, de Jean-Baptiste Roustaing, o que contraria severamente a natureza da mensagem ser realmente de autoria de Allan Kardec, porque Kardec reprovou Roustaing, vendo na obra deste sérios problemas de metodologia e abordagem.

Ismael, o vosso Guia, tomando a responsabilidade de vos conduzir ao grande templo do amor e da
fraternidade humana, levantou a sua bandeira, tendo inscrito nela - Deus, Cristo e Caridade. Forte pela dedicação, animado pela misericórdia de Deus, que nunca falta aos trabalhadores, sua voz santa e evangélica ecoou em todos os corações, procurando atraí-los para um único agrupamento onde, unidos, teriam a força dos leões e a mansidão dos pombos; onde, unidos, pudessem afrontar todo o peso das iniqüidades humanas; onde, enlaçados num único sentimento - o do amor - pudessem adorar o Pai em Espírito e Verdade; onde se levantasse a grande muralha da fé, contra a qual viessem quebrar-se todas as armas dos inimigos da Luz; onde, finalmente, se pudesse formar um grande dique à onda tempestuosa das paixões, dos crimes e dos vícios que avassalam a Humanidade inteira!

Parágrafo igualmente igrejista, o falso Kardec apela para a exaltação do misterioso espírito Ismael, que constatamos não passar de um personagem fictício, fruto provavelmente de algum zombeteiro que se passou ou intuiu para os "médiuns" inventarem um "mentor espiritual" para o Brasil.

Além disso, soa estranha a "bandeira" que o "alam cardeque" exalta de Ismael - Deus, Cristo e Caridade - , por ser uma causa católica, e mesmo que a ideia de caridade esteja associada a qualidades positivas, nunca o professor lionês investiria nessa tríade, porque ele tinha coisas e tarefas muito mais importantes para fazer.

Observa-se também a citação do termo católico "em Espírito e Verdade", impróprio ao vocabulário kardeciano, mas típico da retórica igrejista trazida por Jean-Baptiste Roustaing. Os termos como "adorar o Pai", "levantasse a grande muralha da fé", "inimigos da Luz" parecem apelos sentimentais e piegas que não correspondem ao pensamento original do pedagogo francês.

Constituiu-se esse agrupamento; a voz de Ismael foi sentida nos corações. Mas, à semelhança das sementes lançadas no pedregulho, elas não encontram terra boa para as suas raízes, e quando aquele anjo bom - aquele Enviado de Deus - julgava ter em seu seio amigos e irmãos capazes de ajudá-lo na sua grande tarefa, santa e boa, as sementes foram mirrando ao fogo das paixões, foram-se encravando na rocha, apesar de o orvalho da misericórdia divina as banhar constantemente para sua vivificação.

Ali, onde a humildade devera ter erguido tenda, o orgulho levantou o seu reduto; ali, onde o amor devia alçar-se, sublime e esplêndido, até junto do Cristo, a indiferença cavou sulcos, à justiça se chamou injustiça, à fraternidade - dissensão!

Mas, pela ingratidão de uns, haveria de sacrificar-se a gratidão e a boa-vontade de outros?
Pelo orgulho dos que já se arvoraram em mestres na sua ignorância, havia de sacrificar-se a humildade do discípulo perfeitamente compenetrado dos seus deveres? Não!

Assim, quando os inimigos da Luz - quando o espírito das trevas julgava esfacelada a bandeira de
Ismael, símbolo da trindade divina; quando a voz iníqua já reboava no Espaço, glorificando o reino das trevas e amaldiçoando o nome do Mártir do Calvário, ele recolheu o seu estandarte e fez que se levantasse pequena tenda de combate com o nome - Fraternidade!

Tentando dizer pouco em muitas e muitas palavras, sempre no tom igrejista e piegas, o falso Kardec exagera na defesa da "fraternidade" como se ela fosse uma ideia solta, e, neste trecho, ele escreve com palavras agressivas, além de um texto rebuscado cheio de apostos - há a citação de Jesus como o "Mártir do Calvário" - cujo sentimentalismo é impróprio da escrita de Allan Kardec.

Observa-se o uso da expressão "espírito das trevas", que o pedagogo francês nunca utilizaria, por ele não acreditar na ideia do "umbral", o "inferno espírita". Descrever Ismael como "símbolo da trindade divina" é um duplo equívoco, porque Kardec nunca iria exaltar um estranho como Ismael e, cético, o fundador da Doutrina Espírita tinha dúvidas quanto ao valor da ideia da "santíssima trindade".

Certos de que acaso é palavra sem sentido, e testemunhas dos fatos que determinaram o levantamento dessa tenda, todos os espíritas tinham o dever sagrado de vir aqui se agruparem - ouvir a palavra sagrada do bom Guia Ismael - único que dirige a propaganda da Doutrina nesta parte do planeta e único que tem a responsabilidade da sua marcha e desenvolvimento.

Mas, infelizmente, meus amigos, não pudestes compreender ainda a grande significação da palavra - Fraternidade!

O estranho Allan Kardec apela, até com exagero, para os espíritas seguirem o "bom guia Ismael", e atribui a ele, e não ao próprio pedagogo francês, a missão de ser "o único que dirige a propaganda da Doutrina (Espírita) nesta parte do planeta e único que tem a responsabilidade da sua marcha e desenvolvimento". Se levarmos isso como recado de Kardec, então ele renega a própria obra.

Não é um termo, é um fato; não é uma palavra vazia, é um sentimento, sem o qual vos achareis sempre fracos para essa luta que vós mesmos não podeis medir, tal a sua extraordinária grandeza!

Ismael tem o seu Templo, e sobre ele a sua bandeira - Deus, Cristo e Caridade! Ismael tem a sua pequenina tenda, onde procura reunir todos os seus irmãos - todos aqueles que ouviram a sua palavra e a aceitaram por verdadeira: e chama-se Fraternidade!

Pergunto-vos: Pertenceis à Fraternidade? Trabalhais para o levantamento desse Templo cujo lema é: Deus, Cristo e Caridade?

Como, e de que modo?

Apelo igrejista, escrito em tons agressivos e apaixonados. Nada que possa se reconhecer como mensagem de Allan Kardec. A perda de tempo de enfatizar a palavra Fraternidade como uma palavra solta - apesar do pseudo-Kardec negar que seja "um termo" ou uma "palavra vazia", e a insistência em defender Ismael e seu Templo, assim como o tema igrejista "Deus Cristo e Caridade", fazem o texto ser bastante longo e chato, sobretudo nesse apelo bastante agressivo.

Eles não obedecem a diversas orientações, nem colimam objetivos diversos; tudo converge para a
Doutrina Espírita - Revelação da Revelação - que não lhes convém e que precisam destruir, para o que empregam toda a sua inteligência, todo o seu amor do mal, submetendo-se a uma única direção!

Outra apelação igrejista, na qual tem um detalhe: o "Allan Kardec" da mensagem contradiz a natureza do pedagogo francês, porque o próprio Kardec reprovou Roustaing, por apontar falhas diversas no trabalho deste, e nunca iria recorrer à defesa do próprio livro roustanguista reprovado, que usa o subtítulo "A Revelação da Revelação".

Para Kardec, bastava a revelação que ele recebeu quando elaborou seu trabalho, de maneira árdua e exaustiva. O que Allan Kardec fez os "espíritas" brasileiros não conseguem ter noção, pois o pedagogo francês tinha em mãos um assunto bastante complexo que ele procurou analisar com honestidade, cautela, atenção e um apurado senso de lógica e questionamentos.

O QUE DIZ ALLAN KARDEC

O livro que publicou a "instrução", A Prece Segundo o Evangelho, é uma fraude em todos os sentidos. A publicação é exclusivamente brasileira, datada de 1944, mas na sua ficha técnica usa como título original o mesmo de O Evangelho Segundo o Espiritismo.

Dois capítulos da tradução deste livro, por Guillon Ribeiro - dado não creditado em A Prece Segundo o Evangelho - , além das preces incluídas, se somam à "instrução", um capítulo sobre a "Casa de Ismael" (a sede da FEB, hoje filial fluminense localizada na Av. Passos, no centro do Rio de Janeiro), dando na tendenciosa publicação um caráter de "exclusividade".

O livro, porém, deve ser descartado. Ele não faz parte da bibliografia original de Allan Kardec e o próprio fato de incluir um fake já faz a publicação merecer o lixo. Nada desse livro tem condição de ser aproveitado, preferindo investir nos trabalhos de Kardec traduzidos por José Herculano Pires e parceiros, publicados em outras editoras.

O que desmascara de vez a "mensagem" do "Allan Kardec" da FEB é seguramente encontrado em O Livro dos Médiuns, em que o próprio Kardec, no Capítulo 24, Da Identidade dos Espíritos, recomenda muito cuidado na identificação dos espíritos, tarefa muito difícil e sujeita a armadilhas sérias e sutis.

Kardec, em suas palavras concisas e diretas, explica a complexidade do tema e selecionamos algumas passagens. Na questão 255, o professor lionês esclarece, neste parágrafo:

"Há sem dúvida a objeção de que um Espírito que tomasse nome suposto, mesmo que só para o bem, não deixaria de cometer uma fraude e por isso não poderia ser bom. É neste ponto que surgem questões delicadas, difíceis de se compreender, e que vamos tentar desenvolver".

Na questão 256, Kardec descreve o seguinte comentário:

"A situação é outra quando um Espírito de ordem inferior se enfeita com um nome respeitável para se fazer acreditar. E esse caso é tão comum que não seria demais manter-se em guarda contra esses embustes. 

Porque é graças a nomes emprestados, e sobretudo com a ajuda da fascinação, que certos Espíritos sistemáticos, mais orgulhosos do que sábios, procuram impingir as idéias mais ridículas".

Quanto a este último comentário, o tradutor José Herculano Pires traz a seguinte nota:

"Encontramos na bibliografia espíritas numerosos casos dessa espécie, tendo alguns conseguidos infiltrar-se em respeitáveis setores da divulgação doutrinária, ocasionando graves prejuízos à aceitação do Espiritismo por pessoas sensatas e ilustradas. A fascinação foi tratada no nº 239 do cap. Anterior. Como se vê ali, o Espírito mistificador paralisa a capacidade de julgamento do médium. O mesmo se dá com todas as pessoas a que se deixam envolver. Essa a razão por que idéias absurdas e ridículas se espalham nos meios doutrinários, defendidos por pessoas cultas, às vezes dedicadas ao movimento mas invigilantes e pouco atentas às advertências deste livro". 

Como se observa, o livro A Prece Segundo o Evangelho e uma das primeiras mensagens atribuídas ao espírito Allan Kardec divulgadas no Brasil se revelam grandes fraudes. A própria obra de Allan Kardec fornece subsídios seguros de que o livro e a mensagem feitos no Brasil sejam descartados por definitivo, sem que deles se tirasse proveito algum.

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