sábado, 21 de novembro de 2015

A tragédia de Mariana e a crise do Brasil

LAMA SE ESPALHOU POR UM BAIRRO INTEIRO DE MARIANA (MG), DESTRUINDO CASAS, DESABRIGANDO MULTIDÕES E CAUSANDO MAIS DE DEZ MORTES.

A tragédia de Mariana é considerada um dos piores desastres ambientais da História do Brasil, e também um dos piores desastres associados ao descaso de uma empresa, no caso a Samarco, uma das sócias da Vale (antiga Companhia Vale do Rio Doce), que não fez a manutenção necessária da barragem para conter o acúmulo de rejeitos deixado pela mineradora local.

Um bairro inteiro foi praticamente destruído. Até o momento da redação deste texto, onze mortos foi o saldo oficial divulgado. Multidões de desabrigados perderam praticamente tudo, com um prejuízo incalculável. A lama foi tanta que ela atravessou as fronteiras de Minas Gerais e pode se dirigir para o Oceano Atlântico, pelo Estado do Espírito Santo.

A tragédia simboliza o canto de cisne de uma época, vinda desde o "milagre brasileiro" da Era Médici, da tecnocracia prepotente, que se julgava com mais direitos e menos deveres, da supremacia da Economia privatista, do Estado concentrador de decisões, do poder empresarial ditando normas para a cultura e o entretenimento, dos projetos mastodônticos que vão de hidrelétricas e mineradoras de grande porte até grandes eventos musicais.

O Brasil cheio de pompa e ambição, um Brasil que maquiava, com espetáculos e projetos megalomaníacos, o atraso social que agora reage como uma explosão, está em crise, inaugurada com o fracasso da Copa de 2014 que incluiu até uma derrota por sete gols contra um, da parte da Seleção Brasileira de Futebol, cuja corrupção nos bastidores passou também a ser revelada ao público.

Mesmo em tempos democráticos e sob o governo do Partido dos Trabalhadores, a perspectiva do "milagre brasileiro" da Era Médici, do "Brasil grande", do espetáculo e da pompa em detrimento da qualidade de vida, da regra "informal" da opinião pública ficar em silêncio para favorecer o desenvolvimento econômico, resistiu durante muitos anos.

A ideia de um desenvolvimento feito às pressas, dando cobertura nova a bolo mofado, sob o silêncio da opinião pública e sujeito ao arbítrio dos tecnocratas, foi responsável por tantas realizações megalomaníacas nas quais o cidadão era só o espectador passivo do qual se esperavam aplausos.

Os desabrigados de Mariana são um dos aspectos sombrios desse desenvolvimento apressado, em que responsabilidades são o que os tecnocratas menos querem saber de si, e o poder privado faz o que quer e age quando quer. Um Brasil que ainda pensa como na Era Médici, copiando o desenvolvimentismo da época de Juscelino Kubitschek mas subtraindo deste o lado humanista.

Há também a truculência digital dos troleiros (trolls), jovens aparentemente modernos que se revelam retrógrados e estúpidos, ainda dotados de preconceitos sociais diversos que os fazem humilhar com comentários ou atitudes machistas, racistas ou fascistas contra aqueles que pensam diferente dos encrenqueiros virtuais ou que não compartilham de seu antiquado sistema de valores.

Até o transporte coletivo brasileiro está preso a paradigmas da ditadura militar - o sistema implantado no Rio de Janeiro há cinco anos, atolado em paradigmas ditatoriais da Era Médici e tendo atropelado a lei para impor aos passageiros trajetos reduzidos para forçar baldeação, dupla função de motorista-cobrador e pintura padronizada nas empresas para confundir os passageiros no seu esforço cotidiano de ir e vir. Uma "mobilidade urbana" que desmobiliza e complica as coisas.

A única coisa que mudou é a demagogia. O discurso demagógico há muito se transformou, deixando de lado a oratória rebuscada dos comícios da República Velha ou o monótono discurso solene militar do período ditatorial.

Hoje os demagogos adotam o discurso pseudo-intelectual contemporâneo (neste caso, se igualam aos rebuscados de 100 anos atrás, mas em outro contexto), e, em certos casos, até o palanque torna-se diferente. Mário Kertèsz, um dos maiores demagogos baianos, péssimo radialista, pior ainda como jornalista, usa o rádio e a revista como seu "palanque" midiático.

Mas mesmo nos palanques tradicionais da política, a demagogia muda. Eduardo Paes, o grande demagogo baiano, chega a ofender portugueses com o discurso de defesa da pintura padronizada nos ônibus e engana os suburbanos quando diz que a pequena praia no Parque Madureira é para "unir o povo carioca". Mas no seu discurso atrapalhado, mas engenhoso, já se hospedam em sua retórica jargões como "acessibilidade", "sustentabilidade" e "mobilidade".

A demagogia administrativa também foi um recurso dos técnicos da Samarco para tentar minimizar a culpa da empresa pelo rompimento da barragem. Os administradores são sempre "corretos", ou, quando erram, "cometem falhas naturais" e "dentro do esperado". Sempre surgem promessas como "realização de estudos", "garantias" de procedimentos a serem tomados etc.

Enquanto isso, a "boa sociedade" boicotava amigos, e as instituições se recusavam a dar emprego ou divulgação a trabalhos de quem tem o senso crítico afiado. Alarmistas, eles se apressavam a não dar ouvidos a "gente incômoda" que lhe mostra o reflexo forte da realidade, a não divulgar seus trabalhos na rede, a não lhes dar empregos, a não convidá-los para o reencontro de ex-colegas de escola etc.

Assustados com a ideia de crise, corriam as pessoas da "boa sociedade" para a "felicidade" virtual dos vídeos hilários na Internet (tipo "pato mordendo focinho de um leão" e "sogra levando tombo na borda da piscina"), dos selfies auto-reverentes e dos livros para colorir ou das brochuras de youtubers "filosofando" demais sobre tolices como espinha na cara.

A decadência da tecnocracia revela a catástrofe humana de uma cidade do interior mineiro, rural, com gente simples sofrendo, muito diferente da classe média feliz das mídias sociais, da "juventude rebelde" anestesiada pelas ondas pasteurizadas da Rádio Cidade carioca, do "ativismo" blasé de Luciano Huck, do futebol carioca "sempre vitorioso", da moçada irreverente que ri até de senhoras levando tombo para se esquecer daquele "chato insuportável" que mostra a realidade.

De que adianta uma grande mineradora que não cuida direito de seus dejetos e deixa ocorrer um desastre ambiental sem precedentes, uma catástrofe natural que dizima um bairro inteiro, com a lama dos rejeitos se comportando como se fosse a lava de um vulcão em erupção?

Mariana parece dar um recado a Belo Monte, embora seu projeto fosse outro, uma hidrelétrica, mas mesmo assim a trazer impactos ambientais negativos, a expulsar indígenas e interioranos em geral, a afetar a diversidade biológica e tudo o mais. E o recado também serve à transposição do Rio São Francisco, uma alteração brusca de seu curso natural, que só favorecerá latifundiários locais.

A grande mídia divulga o desastre, mas tenta minimizar os efeitos da tragédia. Ou, quando muito, a explora como se fosse um drama novelesco, sem que a responsabilidade de uma empresa fosse devidamente denunciada. E tenta trazer a "paz social" dominante, a "paz sem voz" que muitos acham "necessária" para garantir o desenvolvimentismo de fachada sem que viva alma desse um pio.

Enquanto as pessoas de Mariana continuam sofrendo depois de perderem suas casas e estabelecimentos diversos e verem seus amigos, familiares e vizinhos morrerem, a "boa sociedade" se recolhe feliz para mais vídeo-cassetadas, para mais youtubers falando e escrevendo bobagens e sob a certeza de que algum dos quatro times cariocas estará em bom desempenho num torneio. Acham muito ver Luciano Huck bancar o "benfeitor dos pobres" e acham que o país vai mudar com isso.

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