domingo, 22 de novembro de 2015

Rio de Janeiro e o medo do enfrentamento

A PASSEATA DOS CEM MIL, OCORRIDA EM 1968, SERIA MAIS INOFENSIVA SE FOSSE REALIZADA EM NOSSOS DIAS.

Questionar saiu de moda no Rio de Janeiro? O Sul e Sudeste, antes tidos como desenvolvidos, plurais e progressistas, sucumbiram ao conservadorismo do pensamento único? Por que contestar o "estabelecido" passou a trazer o risco de perder amigos e até ser boicotado nos meios sócio-culturais desses lugares, sobretudo na outrora Cidade Maravilhosa?

De repente, as vozes dissonantes se calaram ou são aconselhadas a ficarem caladas diante do projeto de "cidade de brinquedo" que se torna o Rio de Janeiro, com projetos mirabolantes que vão de encontro a princípios e finalidades culturais originais.

Entregue a uma plutocracia que intervém em setores que vão da mobilidade urbana à cultura popular, o Estado do Rio de Janeiro vive o "espetáculo" da "chuva de dinheiro", como forma de forjar uma imagem imponente que não é mais do que a caricatura do que o Rio veio a ser até meados dos anos 80.

Em muitos aspectos, nota-se o fechamento de espaços culturais, a decadência do sistema de ônibus, a degradação do espaço urbano, a segregação social que fecha a Zona Sul para os suburbanos, a imposição do fanatismo do futebol carioca como moeda corrente para as relações sociais e outros retrocessos que devem ser aceitos por causa dos interesses político-empresariais envolvidos.

De repente o Rio de Janeiro que era foco de resistência, reduto da vanguarda cultural brasileira, detentora de um glamour que conquistou o mundo, hoje tornou-se um cenário contrastante entre a cidade cruel das mortes diárias de inocentes pela violência, pelo descaso da saúde e pelos acidentes de trânsito (causadas até por BRTs) e a cidade de contos-de-fadas de políticos e tecnocratas.

Os problemas que ocorrem no Rio de Janeiro, acima dos níveis aceitáveis para uma metrópole pós-moderna, são minimizados. O glamour que está se perdendo é visto como intato. Mesmo as pessoas dotadas de boa formação cultural já começam a aderir ao conformismo infantil e a boicotar quem questiona e denuncia as armadilhas que estão por trás.

A RÁDIO DO "ROCK DE VERDADE", A RÁDIO CIDADE, APOSTA NUMA VISÃO CARICATURAL DA CULTURA ROCK, DESSAS QUE ACREDITAM QUE UM LAMAÇAL QUALQUER NOTA VENDIDO A PREÇO CARO É A "LAMA ORIGINAL DO ROCK IN RIO".

Internautas reclamam da discriminação que sofrem nas mídias sociais, quando descrevem problemas graves do Rio de Janeiro (Estado e capital), e põem o dedo nas feridas abertas. Até diante de um segmento marcado pela rebeldia, pela contestação e pelo enfrentamento, como a cultura rock, o conformismo e o preconceito discriminam os questionadores.

Houve gente que reclamou ser boicotada por amigos e ativistas, dentro do cenário de rock autêntico (alheio às distorções comerciais), só porque criticou a deturpadora da cultura rock no Rio de Janeiro, a emissora de FM Rádio Cidade (reduto de jovens conservadores que residem na Zona Oeste e de emergentes que ainda vivem na Zona Norte e Baixada Fluminense), uma atitude considerada bastante surreal e estranha.

Em outros tempos, era o mesmo público que era capaz de derrubar emissoras como a Estácio FM, só para zelar pela liderança da Fluminense FM, antiga rádio de rock de Niterói, mas, resignada com uma webradio que, por mais bem intencionada que seja, não pode ser sintonizada nas ruas por causa das restrições de ordem técnica e financeira das rádios da Internet, não quer questionar a supremacia da canastrona Cidade FM no segmento rock.

Pior: como quem pedisse para "respeitarmos a raposa que cuida do galinheiro". os roqueiros autênticos deixaram de fazer o papel de protagonistas, aceitando o domínio de uma rádio pop sem tradição no rock mas agora estabelecendo um quase monopólio de mercado. De repente, um segmento marcado pela contestação e pelo enfrentamento passou a aceitar a Rádio Cidade a ponto de discriminar quem contesta o poder desta rádio.

Algumas desculpas surgem: "nós temos nosso espaço, a Cidade tem o seu", "de repente a gente mostra o outro lado do rock, os caras ouvem a Cidade e depois aderem à gente", sem perceber que um dia os anunciantes darão preferência à rádio canastrona e as webradios e rádios comunitárias sofrerão dificuldades no mercado, ultimamente já não tão generoso com a cultura rock.

Esse é um entre tantos exemplos. Não há enfrentamento. É um quadro pior do que 1965, quando a ditadura militar se anunciou como definitiva e o povo não se intimidou (só se intimidaria depois, com o AI-5). Atualmente, o conformismo virou uma tirania, quase que uma etiqueta social a ser rigorosamente cumprida.

Hoje, se os contestadores não vão para a cadeia nem para as salas de tortura, eles perdem amigos, são boicotados em encontros de amigos, e, se são artistas ou escritores, não arrumam espaço para divulgar CDs e livros, por causa do "temperamento difícil".

Enquanto isso, a ideia de "respeitar a raposa que toma conta do galinheiro", a pretexto de ser uma "política da boa vizinhança" em diversos aspectos, contamina não só a cultura musical (rock e MPB, resignados com seus poucos espaços privativos, diante do mercado usurpado pela canastrice e pela caricatura), mas outros aspectos de ordem urbana, social, econômica, educacional etc.

A onda de conformismo - o mesmo vício que, lá fora, é questionado até por uma blogueira, Essena O'Neill, bem diferente dos "lokos" brasileiros e suas bobagens - tornou-se um problema no Sul e Sudeste, sobretudo no Rio de Janeiro, na medida que se tornou um sentimento a ser forçadamente adotado para o bem do faturamento do turismo e do crescimento econômico.

Nos últimos meses, as únicas manifestações ocorridas no Rio de Janeiro foram contra o deputado federal Eduardo Cunha, do PMDB carioca, só porque ele foi longe demais com seu reacionarismo, é denunciado em escândalos de corrupção e até as Organizações Globo passaram a se voltar contra sua prepotência.

Fora isso, o deslumbramento é generalizado. Há até quem se irrite quando é lembrado do fato verídico de que o secretário municipal de Transportes, Rafael Picciani, tem relações com o deputado Eduardo Cunha, e que as mudanças feitas nas linhas de ônibus cariocas têm caráter discriminatório (dificultam o acesso do povo da Zona Norte para a Zona Sul, agora usando dois ônibus) e condizem com o padrão segregatório das "pautas-bombas" do deputado federal.

Para todo o efeito, Picciani só mudou as linhas para "otimizar" (?!) o sistema, e fez "em favor do cidadão carioca". Mesmo as mentiras que Rafael Picciani publicou, dizendo que só 20% dos cariocas vai usar a baldeação e o trânsito irá fluir sem as linhas diretas Norte-Sul, são vistas como verdades porque o secretário veste a capa da "tecnicidade" e da "objetividade".

O Rio de Janeiro vive graves retrocessos e a ideia é que as pessoas deixem isso para lá e façam o papel de "pessoas felizes" no Facebook. Pior: ainda tem a obrigação social de ter que torcer para um dos quatro times cariocas (Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo) para ser socialmente aceito pelos cariocas, caso contrário a discriminação ocorre, até mesmo sem muita sutileza.

Aceitemos as decadências que acontecem no Rio de Janeiro em prol de uma utopia de crescimento econômico e outras causas pomposas. Para criarmos um falso glamour, aceita-se retrocessos diversos, seja o isolamento da MPB nos poucos espaços mal divulgados pela mídia, o rock restrito a espaços cada vez mais "marginais", diante de livrarias históricas se fechando, orquestras extintas e teatros entregues a espetáculos cada vez mais comerciais.

Ver que os cariocas e fluminenses passaram a vender suas almas para a "cidade de brinquedo" do Rio de Janeiro para turista ver é chocante. E ver que as pessoas que não compactuam com isso são vistas como "arredias", "chatas" e "insuportáveis" é muito grave. Uma prova de como isso simboliza o atraso é que essas pessoas ainda acreditam que dinheiro traz felicidade. Quanta gente ingênua...

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