quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

"Espiritismo" e a discriminação à razão humana

METIDO A SER "CIENTÍFICO", O "ESPIRITISMO" BRASILEIRO TENDE A CONDENAR O QUE DEFINE COMO "EXCESSOS" DO RACIOCÍNIO HUMANO.

O "espiritismo" brasileiro é uma doutrina marcada pela dissimulação e pelo falseamento. Há um grande malabarismo discursivo, há o ilusionismo pretensamente mediúnico, e um igrejismo falsamente científico que, de vez em quando, "criminaliza" o raciocínio humano.

Nas mídias sociais, houve um dado surreal de "espíritas" condenarem o "excesso de ciência" do pensamento de Allan Kardec. "Ciência demais", "excesso de raciocínio" e até a "criminalização" do próprio ato de pensar, quando ele pede provas e mantém o ceticismo até buscar o rigor da certeza e da coerência de uma ideia.

Um dos pontos que derruba essa fachada "científica" do "movimento espírita" é a ênfase que se tem no verbo "acreditar", em detrimento ao verbo "saber". Há um desequilíbrio, na doutrina brasileira, em relação aos três princípios que Allan Kardec lançou na Doutrina Espírita: Ciência, Filosofia e Moral.

Primeiro, porque o terceiro item, Moral, foi substituído por Religião. Segundo, porque o item Religião se sobrepôs aos outros dois, de forma que, se houver uma mistificação que distorce a realidade filosófica ou científica, os "espíritas" ficam na mistificação, por ela ser feita sob o pretexto do "amor", da "bondade", da "fraternidade" e da "caridade".

Com isso, criam-se distorções severas que as pessoas aceitam porque acham que confusões místicas e sentimentalistas podem promover o "equilíbrio" entre fé e ciência, como se contradição, confusão e obscurantismo fossem sinônimos de "moderação" e "bom senso".

A razão humana é discriminada. Os "espíritas" só aceitam a ciência quando ela se ajoelha diante da fé religiosa, ou quando suas atividades não interferem no terreno da mistificação. Se, por exemplo, as atividades científicas são feitas para estudar a cura da AIDS ou avaliar doenças que atingem a gravidez, por exemplo, ou para analisar a existência de novos planetas, a Ciência é bem vinda.

Mas se a Ciência passa a questionar os "milagres" e as "curas espirituais", pondo em xeque mitos religiosos bastante agradáveis, os "espíritas" logo a definem como maliciosa, perniciosa, "inquisidora", que é o que se faz para promover o raciocínio humano como bode expiatório para as confusões e crises vividas no âmbito religioso.

Aí, observa-se que o "espiritismo", que vemos ser tão inclinado nas crenças medievais herdadas pelo Catolicismo português, que forneceu as bases para a religiosidade brasileira, acusar de "medievais" aqueles que contrariam o "contexto harmonioso" da "fé espírita"

Se alguém contesta demais os mitos "espíritas", já que o "espiritismo" brasileiro, uma espécie de versão repaginada do Catolicismo português diante das primeiras modernizações da Igreja Católica - o que é grave, pois o "movimento espírita" aproveitou o que o Catolicismo começava a descartar - , os contestadores são logo chamados de "inquisidores".

Quem questiona é "inquisidor". Quem sofre demais é "romano". E quem acredita nestas acusações "espíritas" pensa que a religião "espiritualista" rompeu com a essência do Catolicismo medieval, que se tornou uma doutrina futurista etc etc.

Grande engano. O igrejismo "espírita" chega a ser mais entusiasmado que o do Catolicismo brasileiro. Sim, os "espíritas" se consideram mais católicos que os católicos. A citação de casos milagrosos, ícones religiosos e dogmas da fé chega a ser além da conta, principalmente através de relatos deixados por Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco.

Chico Xavier e Divaldo Franco sempre foram católicos fervorosos. Chico, então, era um adorador de imagens de santos e um rezador exemplar de terços e novenas. Mas Divaldo, mesmo com sua postura "professoral" e seus arroubos de pseudocientista, também é do tipo que adora se ajoelhar numa igreja e fazer o "senta-e-levanta" nas missas católicas. E ainda fala como padre.

A prática desmascara a teoria, os detalhes desmascaram o enunciado, o conteúdo simplesmente rasga a bela embalagem que o esconde. Assim, a postura supostamente "científica" do "espiritismo" se desmascara com sua essência igrejista, seu deslumbramento religioso que dá surtos extremos mesmo quando supostas façanhas científicas são citadas.

Daí que a falecida "espírita" Marlene Nobre, quando soube que uma revista científica - na verdade um periódico de segunda categoria - publicou um artigo de "cientistas espíritas" que teriam "provado" o suposto pioneirismo do "espírito André Luiz" nas descobertas sobre glândula pineal. Marlene trocava mensagens piegas com seus pares e todos tinham um entusiasmo tipicamente católico de quem comemora não um reconhecimento científico, mas um milagre religioso.

Coitado do Wolfgang Bargmann, biólogo que mal consegue ser conhecido na própria Alemanha. Ele, que identificamos ter sido um dos principais estudiosos da glândula pineal nos anos 1940, foi "passado para trás" por um fictício personagem de Chico Xavier, que em tolas descrições foi chamado de "pioneiro" por ter supostamente antecipado em seis décadas algumas das descobertas sobre a glândula, no livro Missionários da Luz, de 1945.

Mais risível foi atribuir a Chico Xavier e seus "amigos do além" - a mãe, Maria João de Deus, e um falso Humberto de Campos que escreve textos pesados com linguagem de padre - um suposto pioneirismo de até 80 anos em relação à descoberta de vida humana e água em Marte.

Um radialista carioca, destacado figurão "espírita", se deixou valer pelo prestígio fácil e pela reputação aparentemente inabalável de sua doutrina, o conhecido Gerson Simões Monteiro, inventou o factoide ignorando que cometeu uma grande gafe.

Afinal, muito antes de Chico Xavier nascer, já se discutia tudo que havia em suas "pioneiras revelações" sobre Marte: civilizações adiantadas, construção de canais, existência de vida humana, tudo isso estava na pauta dos debates científicos mais sérios, no século XIX e ainda com Allan Kardec vivo. O próprio amigo dele, Camille Flamarion, foi um dos estudiosos.

O que melhor sistematizou tais abordagens foi o astrônomo estadunidense Percival Lowell, que em três livros, lançados em 1895, 1906 e 1908 - portanto, até dois anos antes de Chico Xavier nascer (foi em 1910) - , analisou todos os elementos que os brasileiros acreditam terem sido "pioneiramente" lançados pelo "médium" brasileiro em livros de 1935 e 1939

As pessoas não conseguem perceber que o assunto da possibilidade de haver vida em Marte estava tão batido nos anos 1930 que a ficção científica já abordava a era espacial, em gibis e filmes, mesmo os de baixo orçamento, e até o criador de Tarzan, Edgar Rice Burroughs, também fez obras sobre o "planeta vermelho".

O Brasil comete gafes com seu nível de incompreensão, tão típico num país que, de vez em quando, tem dificuldades para entender o mundo. Distorções existem aqui e ali, e o Brasil é o paraíso tanto para especuladores financeiros, corruptos e ladrões estrangeiros quando de ídolos musicais decadentes que, quando chegam aqui, são tratados como "deuses".

As pessoas combinam deslumbramento fácil, zonas de conforto, juízos de valor e outros preconceitos tão arraigados que até mesmo uma parcela de intelectuais tidos como "desprovidos de todo tipo de preconceito", ao defender a chamada bregalização da cultura popular, estavam expressando uma série de preconceitos cruéis contra as classes populares, vistas de maneira caricatural e pejorativa.

O "espiritismo" vende a imagem de "vanguarda espiritualista", mas demonstra, na verdade, o contrário disso, sendo uma doutrina neo-medieval, uma espécie de versão de "baixo orçamento" da Cientologia, E mostra que seu compromisso não é com a busca do conhecimento, mas com a pregação de valores místicos e moralistas não muito diferentes que o Catolicismo havia feito.

Apenas existe uma mudança de contexto. Evidentemente o "espiritismo" não vai lançar hereges para fogueiras montadas em praça pública ou decapitar e enforcar os céticos. Mas a religião brasileira se apega à Teologia do Sofrimento - ideologia que defende que os sofredores permaneçam nas suas desgraças - até com mais apetite que o Catolicismo, sob o agravante de supor encarnações anteriores de pessoas aqui e ali.

E aí vemos que, no fundo, o "espiritismo" discrimina a razão humana. Em primeira instância, preferiu o pensamento igrejista de Jean-Baptiste Roustaing ao cientificismo de Allan Kardec. Só depois decidiu dissimular tais opções e defender um "roustanguismo sem Roustaing" e um "kardecismo com Chico Xavier" (Chico foi o Roustaing brasileiro), se consolidando com a tendência dúbia dos dias de hoje, quando membros essencialmente roustanguistas fingem "absoluta fidelidade a Kardec".

Por isso, falar é fácil. No harmonioso baile das palavras, pode-se lançar ideias que a prática desmente. A teoria e prática entram em conflito, mas o que é dito tenta prevalecer sobre o que é feito. O que é feito não pode ser explicado nem questionado.

Daí que o "espiritismo" fala que certos procedimentos "não precisam de provas", ou estão "acima de qualquer prova". Porque provar é fazer um atestado de coerência ou incoerência de algo, e isso pode desqualificar dogmas e ritos "espíritas", assim como derrubar a reputação de muitos de seus ídolos.

Mas se "acreditar", em vez de "saber", dispensa o exame e a busca de provas, porque "o amor em si prova tudo", a verdade que isso tudo não é demonstração de amor, mas de omissão, e, portanto, de desonestidade e recusa em assumir suas irregularidades diversas.

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