terça-feira, 1 de setembro de 2015
Quando a deturpação tenta se sobrepôr à original
O que tem a ver a cultura rock com Jesus? Jesus Cristo Superstar? Não. A peça de Andrew Lloyd Webber tem muito pouco a ver, mas as deturpações da Doutrina Espírita têm a ver num país em que a deturpação quer se sobrepôr às formas originais e o falso quer ser mais autêntico que o verdadeiro.
A "nova fase" da Rádio Cidade, emissora FM do Rio de Janeiro que "voltou" segurando a "bandeira do rock", tenta se "radicalizar" e, com uma programação feita para inglês ver, agora fala que "está mais rock'n'roll" e seu lema apela para o "Rock de Verdade", ideia tão marqueteira e falsa como qualquer lema de marca de refrigerantes e rede de lanchonetes.
Falou-se que a Rádio Cidade trata o rock como se fosse uma seita religiosa, criando até mesmo um "estado islâmico" de ouvintes que, há cerca de 15 anos, foram pioneiros entre os trolls que hoje aterrorizam a Internet e entre a mídia odiosa que hoje pede o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
O que é "rock de verdade" no país em que "espiritismo de verdade" tem pouco a ver com Allan Kardec, seu pensador original, e tem mais a ver com a deturpação popularizada por Chico Xavier. Ou com a visão aqui dominante de que a doutrina primitiva de Jesus Cristo e o Catolicismo medieval são a mesma coisa.
O que é "verdadeiro" para um país em que as pessoas acumulam pseudônimos nas mídias sociais? O que é "verdadeiro" num país de crise existencial como o Brasil? "Verdadeira" é a política investigada pela Operação Lava-Jato? "Verdadeiro" é o produto pirata, enquanto o produto autêntico precisa de recall por causa de um defeito de fabricação?
Sabe-se que a Rádio Cidade trata o público roqueiro de forma caricata, produzindo estereótipos feitos para atender aos interesses dos grandes empresários associados a eventos de rock, e isso inclui desde promotores de eventos (responsáveis por trazer os artistas do gênero) até anunciantes que cobram produtos com preços exorbitantes.
A Rádio Cidade, como outras similares (a 89 FM, paulista, é outro exemplo), não tem pessoal especializado em rock. Seus locutores parecem ter vindo de "sobras" não aproveitadas em FMs de pop adolescente, porque falam com a voz, o timbre, a dicção e as gírias de quem ainda se dirige para os fãs de One Direction e Justin Bieber, mesmo quando anunciam músicas de Iron Maiden e AC/DC.
A ideia é carregar num som que represente, para os jovens, uma catarse emocional para assim esvaziar o espírito de rebeldia para aspectos formais. O rapagão bonitão, por exemplo, incomodado por ser sósia do ator Zac Efron, têm a oportunidade de raspar o cabelo a zero e cultivar uma barba pontuda que lhe dê aspecto de "rebelde malvadão". E isso cobrindo seus braços de tatuagens.
A rebeldia se torna apenas um aspecto formal, de poses, roupas, gestos e estética visual, enquanto a personalidade, por trás de tudo isso, se torna conservadora, comodista, e, acima de tudo, consumista. É um público que aceita comprar roupas caras e pagar altos preços em lanches para o "bem" da "atitude rock", enquanto adota uma postura cética, mas resignada, em relação aos problemas da vida.
O público da Rádio Cidade é tão conservador quanto o da revista Veja. O mesmo em relação aos profissionais. Se a Rádio Cidade tenta apagar seus vestígios de Jovem Pan (que ocupava os 102,9 mhz antes da "volta"), tirando até o ex-produtor da rádio pop, Alexandre Hovoruski, da direção artística, não é por discordar da linha da emissora, mas por razões meramente estratégicas.
A Jovem Pan FM, sabe-se, virou uma espécie de versão radiofônica da revista Veja. O colunista Reinaldo Azevedo trabalha nos dois veículos. Seu ultrarreacionarismo é até compartilhado por outros veículos não tão abertamente histéricos, como a Globo e a Folha, mas também gera uma repercussão bastante negativa que pode afastar boa parte dos anunciantes. Daí os motivos estratégicos.
COMPARAÇÕES COM O CRISTIANISMO
Sabe-se que Jesus de Nazaré foi a personalidade mais deturpada do mundo. Ele havia sido um ativista que, numa ligeira comparação, era um misto de ativista social e cientista político, entre outras qualidades humanas de alguém dotado de inteligência refinadíssima, manifesta desde a infância.
Depois do falecimento, Jesus deixou seu legado para seus discipulos diretos, os apóstolos, e indiretos, seus admiradores mais dedicados, criando as bases de um movimento denominado Cristianismo primitivo, com base no sobrenome Cristo adotado após o famoso ritual de seu primo João Batista, oficialmente creditado como "batismo".
O grande problema é que, passada a condenação sumária - não houve o "famoso julgamento" de Pôncio Pilatos, ele mandou Jesus ser crucificado de forma imediata e rápida - , a aristocracia do Império Romano, através do imperador Constantino, decidiu se apropriar do mito do ativista judeu e montou um "Cristianismo" diferente do original.
Daí o Catolicismo que, em muitos aspectos, contrariou a essência original do pensamento de Jesus. As deturpações foram tão grandes que ninguém pode mais lembrar do Jesus histórico sem o risco de uma violenta reação de "cristãos" radicais. Na Idade Média, chegou-se ao ponto de usar o pretexto da caridade cristã para promover a carnificina das "cruzadas", milícias criadas pela Igreja Católica.
A deturpação causa tantos estragos que o ditado "mais realista que o rei" acaba se aplicando com o passar dos tempos. E não bastasse a deturpação do legado de Jesus pela Igreja Católica, a Doutrina Espírita também sofre o mesmo processo de violação da essência original de Allan Kardec através de uma série muito grande de valores estranhos e até contrários à doutrina do pedagogo francês.
No rock, a deturpação promovida pela Rádio Cidade e seu método medieval de promover a rebeldia juvenil tem como alvo neutralizar e desqualificar todo o trabalho árduo que tiveram rádios que realmente se identificaram com o gênero, como a Eldo Pop FM e, sobretudo, Fluminense FM.
É como se a Rádio Cidade declarasse que todo o trabalho de Luiz Antônio Mello, o jornalista que comandou a programação da Fluminense e hoje tem programas na webradio Cult FM, tivesse sido em vão. LAM, como é conhecido o jornalista, se sacrificou para criar e desenvolver o formato de rádio de rock, que não se resumia numa simples opção de repertório musical.
Com a prevalência da Rádio Cidade, que não tolera concorrência de mercado com outra FM - dizem que o fim da Kiss FM carioca foi pressão do forte lobby da emissora dos 102,9 mhz - , todo o trabalho de Luiz Antônio foi em vão, porque o exemplo da Fluminense acabou sendo inútil, porque, com a Cidade, basta uma rádio pop ter vitrolão roqueiro e fim de papo.
A Rádio Cidade é apenas uma rádio pop como qualquer outra. Durante anos teve sua linguagem calcada na Jovem Pan FM. Programas como Rock Bola e Hora dos Perdidos são claramente inspirados no Pânico da Pan e apostam até na inconsistente tese do futebol como "esporte rock'n'roll", já que 99% dos jogadores de futebol torce o nariz para esse gênero musical. Inclusive Neymar.
Como a equipe da Rádio Cidade não é especializada em rock - há denúncias de que locutores e até produtores esculhambam muitos artistas do gênero - , a emissora acaba adotando posturas preconceituosas para o público de rock, trabalhando um perfil de jovem roqueiro mais próximo de caricaturas que se vê até nas novelas da Rede Globo.
No entanto, o lobby da Rádio Cidade é fortíssimo e isso preocupa. Se seu pessoal não é envolvido naturalmente com rock - até o repertório musical é previamente montado pelas gravadoras e por paradas de sucesso específicas - , os donos da rádio estão associados até a empresas multinacionais, dólares são investidos para promover a emissora dos 102,9 mhz na sua atual fase.
Com isso, pensar em rádio de rock com personalidade, indo além do vitrolão, do mero aparato de tocar rock, tornou-se inviável. O trabalho de Luiz Antônio Mello corre o risco de ter sido em vão, porque, vendo o caso da Rádio Cidade, bastava pedir para uma rádio pop tocar só rock e ficava nisso mesmo. Sem estado de espírito, só um vitrolão roqueiro animado pelos festivos locutores pop de sempre.
E aí vem o lema "Rock de Verdade" que preocupa totalmente, porque o verdadeiro rock é coisa que a Rádio Cidade não se interessa por vontade própria. Recentemente, ela só tocou em seu programa de rock antigo bandas "difíceis" que rolavam na Kiss FM por tendenciosismo. E não iria colocá-las na programação diária, como a Kiss fazia em seu cardápio musical.
Esse é o perigo. A mediocridade tem dessas coisas. O cara não faz, não quer fazer, não aceita fazer e não adianta insistir, mas quando a coisa se comprova mais vantajosa, vai esse mesmo cara querendo fazer e querendo se vincular à mesma causa que, em condições naturais, ele se recusou radicalmente a fazer. Infelizmente, é uma atitude muito comum no Brasil.
Como Jean-Baptiste Roustaing e Chico Xavier na Doutrina Espírita, a 89 FM e Rádio Cidade querem abraçar a cultura rock levantando a bandeira do "Rock de Verdade" mas trabalhando estereótipos de novelas globais, numa conduta extremamente conservadora. No país em que a "verdade" está na publicidade da TV, isso faz sentido.
No fundo, esse papo de "Rock de Verdade" é mimimi de gerente de marketing. Isso porque as "rádios rock" apenas falam isso como apelação para turista ver, já que estamos próximos das Olimpíadas do Rio de Janeiro e o mercado turístico quer mostrar duas "rádios roqueiras" para os turistas ouvirem e consumirem com seus dólares nesse mercado movimentado pelos eventos do gênero.
Deturpadoras da cultura rock, a 89 FM, a Rádio Cidade e similares agradariam em cheio o imperador romano Constantino e o anti-médium mineiro Chico Xavier, se eles gostassem de rock. Até pela forma com que que essas "rádios rock" neutralizam e domesticam a juventude brasileira.
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