sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O rock e o egoísmo contra o esforço alheio

SEM TRADIÇÃO NEM EQUIPE ESPECIALIZADA EM ROCK, RÁDIO CIDADE SE PROMOVE EM CIMA DOS ÍCONES DO GÊNERO, COMO JOY DIVISION (FOTO).

Hoje é o dia do Rock In Rio, e a cultura rock não está fora desse contexto em que os retrocessos que ocorrem no Estado do Rio de Janeiro, fazendo-o tornar um dos Estados mais atrasados do país, só servem para a construção de um gigantesco parque de consumismo das elites, seja na capital, seja nas áreas nobres de algumas de suas principais cidades.

Se a "novidade" esperada para os próximos meses é a extinção ou redução de itinerários de linhas de ônibus, para dificultar o acesso direto das populações dos bairros suburbanos do Rio e dos municípios vizinhos à Zona Sul, uma clara prova que as autoridades que integram o PMDB carioca governam como se o Estado do Rio fosse a África do Sul nos tempos do apartheid, a cultura rock é promovida de maneira caricatural.

O caso da Rádio Cidade, emissora que o mercado impôs como "rádio de rock" - a emissora não tem equipe especializada, mas seu proprietário é aliado dos grandes empresários de eventos de ponta, por sua vez aliados de empresários de franquias que exploram trabalho escravo e cobram caro por serviços e produtos - , é ilustrativo diante dessa onda elitista que tenta criar um Rio de Janeiro de fantasia, feita para o consumismo e o turismo.

O aspecto do egoísmo está no fato da supremacia da Rádio Cidade - cujo lobby afastou uma concorrente que se dedicava melhor aos clássicos do rock e tinha gente ligada ao ramo - agora se impor como "paradigma oficial de rádio de rock", o que vai muito além de uma simples deturpação de formato, pois se trata da depreciação de todo um trabalho em prol de sua cultura, que simplesmente tornou-se desmoralizado e desperdiçado.

A Rádio Cidade, sabe-se, não surgiu como rádio de rock, nunca teve vocação natural para o gênero, não tem pessoal especializado no gênero, seus locutores são os mesmos de quando a rádio se chamava Jovem Pan, e sua grade de programação não chega a cobrir o básico da cultura rock, indo abaixo do mínimo aceitável. Pior: já nem mais lança bandas novas, já que agora depende de programas da Rede Globo de Televisão para veicular "novos talentos", quase todos de talento sofrível.

No entanto, é ela que "tem que ser rádio de rock" e fim de papo. Mesmo que o roqueiro no Rio de Janeiro seja reduzido a uma patética caricatura que bota língua para fora e faz sinal do demônio com as mãos. O que assusta é a acomodação até mesmo dos seguidores da Fluminense FM, felizes com o saudosismo muito bem-intencionado do projeto Maldita 3.0 e do consolo digital da webradio Cult FM, mesmo quando o carisma da Flu se reduzir a uma celebração nostálgica.

Eles acham que o FM está morto, e acham que uma webradio resolve o problema das deturpações em FM. Só que a Rádio Cidade também tem canais na Internet e ocupa fatias de mercado bastante estratégicas de forma que o rock se torna refém mercadológico da emissora, o que pode fazer com o que se conhece como rock autêntico - para diferenciar das deturpações comerciais associadas ao gênero - se reduza mais e mais a um bacanal de saudosistas.

LUIZ ANTÔNIO MELLO FEZ DA FLUMINENSE FM UMA RÁDIO DIFERENCIADA, QUE FUGIA DAS FÓRMULAS DO RADIALISMO POP HOJE MANTIDAS PELA RÁDIO CIDADE.

O problema mais grave é que o êxito comercial da Rádio Cidade - que pelas suas caraterísticas é comparada pelos roqueiros autênticos a uma espécie de "Eduardo Cunha da cultura rock" - pode pôr a perder todo o trabalho que Luiz Antônio Mello - jornalista que idealizou a Fluminense e hoje tem programas na Cult FM - realizou na emissora niteroiense (cujo prefixo 94,9 mhz hoje corresponde à Band News Fluminense).

Entre 1982 e 1985, Luiz Antônio comandou a programação da Fluminense e queria trazer um conceito de rádio de rock que fosse muito além do vitrolão. Seu projeto era desenvolver uma rádio com personalidade própria, fugindo de fórmulas de linguagem, locução, vinhetas e grade de programação das rádios pop convencionais.

O projeto foi um sucesso, mas não se ampliou devido a problemas financeiros. Mas o formato de rádio de rock foi vítima da natural hipocrisia de gente que nunca quer assumir uma causa, mas quando ela se revela vantajosa, correm atrás dela como se fossem seus donos, querendo a patente para si.

Aí, a partir da 89 FM de São Paulo, veio uma enxurrada de rádios pop ou popularescas que viraram "rádios rock" da noite para o dia, sem ter equipe especializada e tocando um repertório previamente decidido por gravadoras. O formato cresceu e, no Rio de Janeiro que teve a Fluminense FM, é agora definitivamente consagrado pela Rádio Cidade, a parasitar o rock desde 1995, com algumas interrupções.

Isso acaba desmoralizando o trabalho de Luiz Antônio Mello, desprezando todas as dificuldades que ele enfrentou. Isso porque muitos consideram que, se fosse para o radialismo rock terminar com o império publicitário da Rádio Cidade, a Fluminense FM não precisava ter existido, pois não valeria a pena tanta trabalheira para se fazer uma rádio diferenciada, se bastava apenas botar uma rádio pop qualquer nota para tocar "só rock".

No livro A Onda Maldita, Luiz Antônio havia escrito, sabiamente, sem saber do desastre que acabou prevendo: "Tínhamos uma verdadeira fobia de que uma Rádio Cidade, de repente, despejasse, com seus milhares de quilowatts, rock sobre o Rio. Estaríamos ferrados". Acabaram ferrados, com o crescimento da máquina publicitária da Cidade, consolidada nos últimos meses.

Surgem textos na Internet lembrando desse desprezo da Cidade FM às lições do trabalho de Luiz Antônio, conhecido como LAM, e isso vai além de questões acerca de divulgar bem ou mal a cultura rock. É um caso de egoísmo humano, de desprezo a um trabalho diferenciado, que se reduziu a pó, porque a Rádio Cidade simplesmente adota todos os elementos de trabalho radiofônico que a Fluminense FM queria evitar e até combater.

A Rádio Cidade tem uma grande de programação inspirada na Jovem Pan FM. Programas de humor, programa de "sucessos do momento", "mais pedidas", "músicas antigas" e "novidades", apenas camuflados num aparato "roqueiro". Não é uma grade de programação de rádio de rock, que aborda as variações do gênero e vai muito além dos "grandes sucessos" e da "música de trabalho". O estilo de locução, por sua vez, segue o estilo "gostosão" reprovado por LAM.

Outra crítica sobre a Rádio Cidade se refere à emissora não ter qualquer tradição histórica com o gênero, a partir do seu nome. A rádio surgiu em 1977 se consagrando no pop convencional, e só "aderiu ao rock" quando percebeu o potencial comercial do estilo, ou seja, quando havia "grana rolando". Sem tradição histórica nem pessoal especializado, a emissora apenas "força a barra" querendo criar para si uma reserva de mercado exclusiva ou, ao menos, dominante no rock.

Fora do âmbito roqueiro e, mesmo comparando com a situação do "espiritismo", a relação Fluminense FM x Rádio Cidade têm a mesma natureza da relação Allan Kardec x Jean-Baptiste Roustaing. E, vendo de fora o caso, nota-se que a Rádio Cidade faz um verdadeiro desrespeito ao trabalho difícil de um jornalista como Luiz Antônio, por jogar todas as lições dele no lixo.

Por isso, mais do que uma deturpação da cultura rock e da forma caricata com que a Rádio Cidade trata o público roqueiro, reduzido a um consumista submisso - sobretudo um "consumista do rock" - , é o desprezo que se tem a todo um trabalho de radialistas em prol da cultura rock no passado, assim como a ignorância de todo um histórico da cultura rock do Brasil e do mundo, já que mesmo nos momentos mais "radicalmente roqueiros", a Cidade FM sempre foi uma rádio comercial "só de sucessos".

O caso mostra o descaso que uma emissora e sua minoria de seguidores fanáticos (que encaram o rock como se fosse uma seita neopentecostal) tem com a verdadeira natureza de um estilo cultural e o desprezo que tem com as lições feitas há décadas por equipes de radialistas que tentaram ir além dos estereótipos associados ao rock. Jogar todo esse trabalho fora é demonstração de puro desprezo aos esforços do próximo.

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