sábado, 21 de março de 2015

Mais um texto que NÃO foi escrito por Humberto de Campos


A obsessão de Francisco Cândido Xavier por Humberto de Campos é um problema sério que pouco tentam admitir ou reconhecer. Uma coisa mórbida, quase que como uma revanche, depois que Humberto, em vida, fez críticas um tanto irônicas a Parnaso de Além-Túmulo, o livro de poemas forjado em 1932 por Chico Xavier e remendado cinco vezes em 23 anos.

Chico provavelmente não gostou dos comentários e decidiu se apropriar do nome de Humberto de Campos, num verdadeiro ato de exploração leviana do nome de alguém falecido. O exótico caipira de Pedro Leopoldo tornou-se uma figura sensacionalista que se converteu no atual mito de frases açucaradas que adoçam almas e envenenam vidas.

A obsessão rendeu um processo judicial que resultou em empate. Os juízes, em 1944, não entenderam o objetivo do processo (verificar se a autoria espiritual era verdadeira ou não) e, no zero a zero, os herdeiros de Humberto de Campos perderam pontos, impulsionando o mito de Chico Xavier, cujos amigos ainda xingaram os coitados dos familiares de Humberto de "usurpadores".

É certo que Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho é a consagração dessa apropriação, mas antes, com Crônicas do Além-Túmulo, de 1937, e Palavras do Infinito, de 1936, a obsessão de Xavier pelo escritor maranhense já mostrava o grau doentio que fez Chico Xavier perseguir outros mortos, numa exploração bastante mórbida e oportunista.

Uma amostra que se colheu de Palavras do Infinito comprova, por uma simples análise de conteúdo, que Humberto de Campos nunca teria escrito as obras que atribuem à sua autoria espiritual. Humberto nem estava aí para Chico Xavier, mas o "espiritismo" trata o escritor maranhense como se ele tivesse sido o mordomo do anti-médium de Pedro Leopoldo.

Infelizmente, Chico Xavier acabou virando "dono" de Humberto de Campos, mas nossa análise de conteúdo, feita com a mais pura objetividade analítica, mostra que o suposto "espírito" de Humberto de Campos escreve num estilo completamente diferente do estilo que marcou o escritor maranhense em vida.

No lugar dos textos cultos mas em linguagem coloquial e descontraída que Humberto nos trouxe em sua vida terrena, vemos um escritor choroso que narra como se tivesse sido um pároco de igreja ou algum sacerdote católico, em nada lembrando o autor de O Brasil Anedótico.

É como se um suposto médium hoje se apropriasse do nome de Caio Fernando Abreu para escrever poeminhas medíocres de cunho puramente religioso, que mais lembrassem as pregações midiáticas de um Padre Marcelo Rossi. Mas como Chico Xavier virou quase um "deus" para seus fanáticos seguidores, pouco importa apontarmos irregularidades, porque nesse caso Chico Xavier tem sempre um cantinho para sua falta de lógica.

Tem gente que até imagina se o religiosismo não foi colocado por Chico Xavier no nome de Humberto de Campos para poder zoar com o cara, que não está mais aí para reclamar. Eis o trecho do livro, de um religiosismo exagerado que nada nos faz lembrar do saudoso membro da Academia Brasileira de Letras:

JUDAS ISCARIOTES - O emocionante encontro de Irmão X com o Apóstolo

Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judéia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além descansa Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia, acolá está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa o Jordão silencioso, como se as suas águas mudas, buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.

Foi assim, numa destas noites que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.
Os espíritos podem vibrar em contacto direto com a história. Buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio das fatalidades que pesam sobre o empório morto dos judeus, não ouvem os homens os gemidos da humanidade invisível.
Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante.

– Sabe quem é este? - murmurou alguém aos meus ouvidos - este é Judas.

– Judas?!...

– Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho...

Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade de seu coração, ligaram-se para que eu o atravessasse, procurando ouvi-lo.

– O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariot? – perguntei.

– Sim, sou Judas – respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica.

E prosseguiu:

Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios...

– É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus?

– Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galiléia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sanedrim desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas idéias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade.

Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.

– E chegou a salvar-se pelo arrependimento?

– Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentido na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência...

– E está hoje meditando nos dias que se foram... - pensei com tristeza.

– Sim... Estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deus o seu destino... Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios redentores.

Quanto ao Divino Mestre – continuou Judas com os seus prantos – infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços em todos os padrões do ouro amoedado...

– É verdade - concluí - e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-lo.
Judas afastou-se tomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar morto.

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