quarta-feira, 21 de outubro de 2015

No Brasil, raciocinar é visto por muitos como um "mal"


Pode parecer surreal, mas o simples dom da espécie humana de raciocinar é amaldiçoado por uma influente parcela de brasileiros. A ideia de raciocinar de forma questionadora sobre diversas coisas rende um sério risco de perder amigos e ser visto como "chato e insuportável".

Infelizmente, existe a supremacia da estupidez sobre a coerência. Daí, por exemplo, a atitude irresponsável da trolagem na Internet, que ganha adesão imediata de um grande número de internautas. Quem questionar o "estabelecido" de repente é bombardeado por uma série de mensagens que, de início, são apenas irônicas e jocosas, mas depois viram sérias ameaças.

Segundo o falecido cineasta francês Claude Chabrol, "A estupidez é infinitamente mais fascinante do que a inteligência. A inteligência tem seus limites, a estupidez não". Sua frase, que o cineasta expressou como lamento, encaixa no contexto da mediocridade totalitária que atinge os brasileiros.

Sim, raciocinar é um "crime" e se, no Facebook, pessoas publicam memes de questionamentos mais profundos, seus seguidores - intitulados "amigos" - vão logo clicando a opção "Não quero ver isto", mostrando sua falta de paciência em aceitar a realidade dura em que vive.

E a relação França e Brasil não se limita pelo fato da declaração de Chabrol servir para definir o quadro brasileiro. A própria Doutrina Espírita, do pedagogo Allan Kardec, é surpreendentemente alvo dessa burrice não assumida no discurso, mas defendida de forma convicta na prática.

Observando vários fóruns na Internet, o cidadão médio que diz apreciar o Espiritismo fala que Kardec era "científico demais" e que o mal da Doutrina Espírita era esse "excesso de ciência" que a tornava incompreensível. Houve gente que criticava o fato de haver "razão demais" na doutrina kardeciana, e que a lógica não tinha as respostas para todas as coisas, mas sim a fé.

ORIGENS EDUCACIONAIS

É evidente que a origem disso tudo está pelo fato da religião se apresentar, nas infâncias das pessoas, de forma bem mais agradável do que a ciência. Isso acaba refletindo na fase adulta, mesmo quando as pessoas tentam usar da inteligência e de argumentos falsamente intelectualizados para justificar suas preferências pela fé e pelos mitos e dogmas.

O catecismo e outras formas de educação religiosa sempre mostraram a ideia de um paraíso a espera de quem morrer, assim como os mistérios e mitos da fé, com seus heróis, geralmente atraentes de alguma forma - mesmo que seja na imagem do "bom velhinho" de Chico Xavier - , e uma série de fantasias narradas de forma análoga a de contos de fadas.

Consta-se que a religião é uma espécie de "mundo da fantasia" que luta para exercer seu domínio sobre a realidade. Querendo ser "mais realistas que o rei", as religiões sempre põem a fé acima da lógica, usando o "mistério" como forma de ocultar contradições e aspectos improcedentes de suas doutrinas.

Já a ciência é sempre ensinada de forma um tanto tirânica e brutal. Um repertório de fórmulas de Física, Química e Matemática é empurrado sem que se explique as raízes filosóficas desses cálculos. A lógica torna-se um subproduto dessas ciências mal-ensinadas, e os alunos acabam tendo a má impressão de que o raciocínio lógico é sempre preso a um discurso prolixo e rebuscado e a fórmulas difíceis de serem usadas.

OS FALSOS INTELIGENTES

Só que, quando se chega à Universidade, as pessoas entram em contato com ambientes de reputação intelectual reconhecida, e aí procuram mascarar suas posturas conservadoras, seus preconceitos e suas neuroses de forma que tentam parecer "vanguardistas" e "progressistas" aos olhos dos outros.

E aí é que entra aquele discurso do internauta médio que acha que "não precisa raciocinar porque já nasceu inteligente". A inteligência é vista como se fosse num mercado em atacado. Quem absorve mais "informação" na Internet, é "muito inteligente", bastando apenas combinar uma capacidade mediana de argumentação e um senso de humor cáustico afeito a certo sarcasmo.

Claro que essa ideia de "inteligência" é um tanto duvidosa. Afinal, ver vídeos engraçados no YouTube também é "inteligência", assim como produzir blogues ofensivos contra alguém que contesta o "estabelecido". Mas a inteligência é muito diferente de uma mera caixa cerebral onde se consomem qualquer coisa vista nas redes digitais e isso pouca gente quer assumir.

Para piorar, existe um terrível cacoete, no Brasil, de pessoas que tentam argumentar sua estupidez usando arremedos de sabedoria. Tem-se desculpa para tudo, diz o anedotário popular, e isso se observa quando é constante a tendência de pessoas tentarem "filosofar" a sua mediocridade, para não dizer idiotice.

Tentam dizer que tal coisa é "medíocre" porque precisa atingir maior público, render mais dinheiro, porque o povo gosta, porque o Brasil vai crescer com isso e blablablá, blablablá. Acabam dando um tiro no pé, porque na tentativa de provarem que são "inteligentes", essas pessoas, aparentemente bastante influentes, acabam elas mesmas ficando chatas com esse discurso "cabeça".

A mediocridade sócio-cultural do "funk" já se serviu desse discurso "cabeça". Só que, do lado dos medíocres, quem "cabeceia" demais pelo "estabelecido" não é considerado "chato e insuportável". Até porque ninguém entende o que ele diz, só pesca algumas palavras e, se o discurso parece simpático, ninguém reclama. Se o "sistema" é favorecido com essa verborragia, tudo bem.

A burrice e a estupidez acabam se tornando convicções, defendidas com mãos de ferro não da forma discursiva, mas como práticas dissimuladas. São vistas como "nova lucidez" e acham que, por serem defeitos, são "mais humanos". "Errar é humano, insistir no erro é melhor ainda", é o que se resume do ideal desse status quo comportamental.

No "espiritismo", a burrice e a ignorância - sobretudo a ignorância que os ignorantes têm de sua própria ignorância - tornam-se blindagens para aceitar todo tipo de mistificação e deturpação. Diante dos bobos-alegres que se dizem "fiéis a Allan Kardec", mas preferem o igrejismo de Chico Xavier, não saber é um prato cheio para aceitar, sem queixumes, todas as confusões da doutrina brasileira que se afastou do pedagogo francês sem ao menos realizar uma ruptura formal com ele.

Uns chegam mesmo a reprovar o "excesso de lógica" de Allan Kardec. É a visão um tanto preconceituosa de que pensar traz insegurança e incômodo. No Brasil, é surreal mas constante o hábito de pessoas amaldiçoarem o ato de pensar, pela insegurança que este ato provoca ameaçando um sistema de privilégios comprometido com o desenvolvimento condicionado do país, com mais dinheiro do que qualidade de vida.

Até Chico Xavier dizia que o raciocínio questionador causava desunião. Ele sempre dizia para ninguém criticar, reclamar nem questionar. Os seguidores de Chico Xavier acham isso o máximo. Todos querem ser como a cadelinha que lambia o rosto do anti-médium.

Com piscinões de dinheiro, pistas exclusivas de lucratividade sem freio, grandes condomínios de granas investidos e hidrelétricas de dólares jorrando, o Brasil sempre sofreu a supremacia de uma visão em que o progresso do país depende do povo ficar com o bico calado. Fiquemos escravos da fantasia, e subordinemos a verdade às mentiras publicitárias, para não prejudicar a "chuva de dinheiros" a cair no país.

Faz sentido nosso país ser o "inferno astral" do humanismo. Não se pode ser humanista no Brasil. Afinal, ser humano é, sobretudo, usar livremente o raciocínio, e isso vai contra os desígnios da fé, que impõe limites ao ato de pensar. A espécie humana é dotada do dom particular de raciocínio, só que, infelizmente, esse dom é amaldiçoado por boa parte da população.

E ainda temos que acreditar que as pessoas que pensam assim são "as mais inteligentes"...

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