domingo, 26 de outubro de 2014

Kardequizar ou Catequizar?

DIVALDO FRANCO TENTOU SER "SIMPÁTICO" À CAUSA ANTI-ROUSTANGUISTA DE RECUPERAR AS BASES DE ALLAN KARDEC.

Torna-se um enigma aparente o fato de que o establishment do "movimento espírita" brasileiro ter adotado, nos últimos anos, a postura da "fidelidade a Allan Kardec" mesmo mantendo princípios lançados por Jean-Baptiste Roustaing, dando a crer que o roustanguismo é "fase superada" da história do "espiritismo" brasileiro.

Porém, as ideias de Roustaing estão muito mais vivas, só sendo descartados os pontos polêmicos de Os Quatro Evangelhos: o Jesus "fluídico", os "criptógamos carnudos" (reencarnação de humanos faltosos em micróbios e invertebrados) e a retrogradação do espírito na reencarnação, que contrariava as leis lógicas do progresso espiritual.

O que fez o "espiritismo" brasileiro adotar uma postura "fiel a Allan Kardec", mesmo mantendo quase todo o religiosismo de Roustaing só pode ser explicado pelos episódios ocorridos entre as décadas de 1970 e 1980, época dos falecimentos tanto do lado roustanguista (Antônio Wantuil de Freitas) quanto do lado kardecista (Herculano Pires e Deolindo Amorim).

Nessa época, as pressões contra a supremacia roustanguista da Federação "Espírita" Brasileira tornaram-se mais intensas, e provavelmente a gestão de Francisco Thiesen serviu de cenário para a intensificação desses conflitos.

Ainda estamos averiguando qual o episódio que tenha impulsionado as lideranças "espíritas" a adotarem um "roustanguismo light com Kardec", que é o que se vê hoje em quase todos os "centros espíritas" do Brasil, em que até mesmo Chico Xavier, que alegremente foi durante anos subordinado à orientação de Roustaing, e Divaldo Franco, membro da cúpula da FEB, passaram a "apoiar" os kardecistas.

No entanto, um episódio que se deve levar em consideração é, além das lutas das federações regionais contra o roustanguismo dos sucessivos comandantes da FEB, as supostas "aparições" de Adolfo Bezerra de Menezes, ex-presidente da entidade, clamando pela "fidelidade a Allan Kardec".

As supostas mensagens teriam como objetivo "reparar" até mesmo a inicial apropriação que os roustanguistas da FEB fizeram com Kardec, na fase "conciliatória" da entidade, antes de sua primeira crise (já com Afonso Angeli Torteroli se contrapondo a Bezerra de Menezes).

Essa fase "conciliatória" já tinha divulgado falsas mensagens de um patético "espírito Allan Kardec", inseguro e místico, falando como se fosse um padre de uma paróquia do interior, e com uma diferença de um século houve uma cisão em que surgiu uma corrente "kardecista" ainda dotada de ranço católico, não muito diferente do inseguro "Kardec" das profundezas das trevas roustanguistas:

"Rogo-voz, como verdadeiro amigo, me interrogueis sobre os pontos que por ventura não puderdes aceitar, para que eu, com os elementos de que disponha no vosso médium, me faça melhor compreender, ou seja por vós esclarecido".

Ou então, submetendo a razão apenas aos "desígnios" do Deus católico:

"A caridade que exclui a razão, a prudência e o bom-senso - a verdadeira caridade - é instintiva! Assim, pois, o bem deve ser feito indistintamente, seja qual for o terreno em que houvermos de o praticar. Mas, nem o próprio bem pode excluir a nossa razão, quando, tratando-se da justiça de Deus, pretendemos contrariá-la".

Essa mensagem, que destoa violentamente da honestidade intelectual de Allan Kardec, deturpa até mesmo sua objetividade e simplicidade. Afinal, o verdadeiro Kardec admitia que poderia ser até contestado, mas exigia coerência de argumentos e firmeza da lógica, dentro de um debate em que o raciocínio questionador não dava margens às mistificações.

O pseudo-Kardec dessa mensagem, dada na Sociedade Espírita Fraternidade pelo suposto médium Frederico Júnior entre 1888 e 1889, portanto nos primórdios da FEB, mostra-se não só inseguro mas defensor do "anjo" Ismael - associado à introdução das ideias roustanguistas no Brasil - e que preferia Os Quatro Evangelhos a sua própria obra de Codificação.

"DR. BEZERRA"

O médico, militar e político Adolfo Bezerra de Menezes (1831-1900) foi presidente da FEB entre 1889 e 1890 e entre 1895 até o momento de seu falecimento, por conta de um derrame (hoje se conhece como acidente vascular cerebral, AVC).

De formação católica, Bezerra conheceu a Doutrina Espírita através do atalho errado de Roustaing, mais confortável para dissidentes católicos do que o cientificismo de Allan Kardec que lhes é complicado e desagradável. Ele havia defendido Roustaing em vida, e de suas palavras são ilustrativas, como registra Vida e Obra de Bezerra de Menezes, de Sylvio Brito Soares (Ed. FEB):

"...Eis aí que já apareceu Roustaing, o mais moderno missionário da lei, que em muitos pontos vai além de Allan Kardec, porque é inspirado como este, mas teve por missão dizer o que este não podia, em razão do atraso da Humanidade...Roustaing conforma o que ensina Allan Kardec, porém, adianta mais que este, pela razão que já foi exposta acima. É, pois, um livro precioso e sagrado, o de Roustaing".

Evidentemente, seus argumentos acerca do livro de Roustaing, autoproclamado, em seu pretensioso subtítulo, "A Revelação da Revelação", são extremamente ridículos, mas constam dos estatutos da FEB que determina a leitura obrigatória de Os Quatro Evangelhos.

Mas eis que, desde os anos 1960 e 1984, mensagens psicografadas atribuídas a Bezerra de Menezes, divulgadas por Chico Xavier, Divaldo Franco e pelo capixaba Júlio Cezar Grandi Ribeiro (único, dos três, a se declarar não-roustanguista), "recomendavam" a "fidelidade" a Allan Kardec, em que pese o leve tom religiosista de seus argumentos.

Uma das primeiras mensagens nesse sentido se intitula "Unificação", que teria sido divulgada por Francisco Cândido Xavier em 20 de abril de 1963, e que supostamente soa como uma ruptura do anti-médium mineiro com o roustanguismo:

"O serviço de unificação em nossas fileiras é urgente mas não apressado. (...) É urgente porque define objetivos a que devemos todos visar; mas não apressado, porquanto não nos compete violentar consciência alguma. Mantenhamos o propósito de irmanar, aproximar, confraternizar e compreender e, se possível, estabeleçamos em cada lugar, onde o nome do Espiritismo apareça por legenda de luz, um grupo de estudo, ainda que reduzido, da Obra Kardequiana, à luz do Cristo de Deus.

(...)

Seja Allan Kardec, não apenas crido ou sentido, apregoado ou manifestado, a nossa bandeira, mas suficientemente vivido, sofrido, chorado e realizado em nossas próprias vidas. Sem essa base é difícil forjar o caráter espírita-cristão que o mundo conturbado espera de nós pela unificação.

É indispensável manter o Espiritismo, qual foi entregue pelos Mensageiros Divinos a Allan Kardec, sem compromissos políticos, sem profissionalismo religioso, sem personalismos deprimentes, sem pruridos de conquista e poderes terrestres transitórios".

Já outra mensagem, também carregada de retórica tipicamente religiosa, própria do Catolicismo, foi divulgada por Divaldo Franco na inauguração da Campanha de Estudo Sistemático da Doutrina na Federação Espírita Brasileira, em 27 de novembro de 1983:

"É instante de definição de tarefas. Estudemos o Espiritismo e melhor viveremos o Cristianismo. Penetremo-nos do conhecimento Kardequiano para melhor sentirmos a palavra viva de Jesus.

E como Allan Kardec prossegue, hoje como ontem o mesmo que será amanhã, já que foram apresentadas as sete notas musicais da divina sinfonia da vida, ao homem cabe utilizar-se delas no campo da Doutrina Espírita para compor as melodias que enriquecem a Terra de beleza, promovendo o espírito humano.

Segui, adiante, conscientes das vossas responsabilidades com Cristo e Kardec, no cérebro e no coração, edificando pelas vossas mãos a Humanidade melhor, num mundo mais feliz por que todos anelamos.

Cristo e Kardec estão erguendo o homem do caos em que jaz para os píncaros da imortalidade.

Saudamos neste esforço, quando a Federação Espírita Brasileira se prepara para celebrar o seu primeiro Centenário de tarefas com o Cristo e Kardec (...)".

O discurso é carregado de expressões eruditas e sentimentalistas de tal forma que não é difícil desconfiar das intenções de Divaldo e Chico, tão entusiastas das ideias de Roustaing, de repente virarem a casaca e defenderem uma "fidelidade a Allan Kardec" sem no entanto romper com o religiosismo espiritólico.

"Kardequizar é a legenda de agora" tornou-se o aparente princípio dessa corrente, mas nota-se até mesmo o jargão católico "Cristo de Deus". Kardec é defendido mais como líder religioso, e as apelações mais parecem de caráter sentimentalista que, na prática, nada contribuem para a verdadeira recuperação das bases doutrinárias do pedagogo de Lyon.

Não seria Kardequizar uma corruptela de Catequizar? E que propósito vieram os antigos roustanguistas a defender a "volta às bases de Kardec", se nada disseram a respeito da preocupação com seus ensinamentos, antes descrevendo vagamente as qualidades do professor francês?

Até que ponto eles defendem o "kardecismo"? Seria uma reação ao poder centralizado da FEB roustanguista? Seria para tentar agradar amigos divergentes como Herculano Pires e Carlos Imbassahy? Seria porque Roustaing pegou pesado demais na tese do Jesus "fluídico" que trai até mesmo muitas correntes católicas, sobretudo com relação ao martírio do mestre judeu?

A "adesão" de Divaldo Franco e Chico Xavier, entre outros, à "campanha por Kardec" parece mais tendenciosa que espontânea. O tal "O Amor de Jesus e a Verdade de Kardec" não parecem sugerir uma revalorização das teses espíritas originais, mas antes a apropriação de Allan Kardec e a ocultação de Jean-Baptiste Roustaing para adotar um roustanguismo light.

Ainda estamos estudando qual o fator definitivo disso, mas temos pistas que foram aqui descritas. A própria FEB já recomendava o estudo de Allan Kardec, desde que não confrontasse com a "essência" de Roustaing.

Com o tempo, apenas os pontos mais graves da ideologia roustanguista foram abandonados, mas a essência de Os Quatro Evangelhos foi preservada até hoje e o livro continua sendo publicado inteiramente, apenas deixando os "pontos polêmicos" inteiros mas sem qualquer apologia a respeito.

Atualmente, o "espiritismo" brasileiro se configura num roustanguismo moderado, em que o nome de Jean-Baptiste Roustaing é quase sempre evitado, dando a impressão de sua ideologia ser um caso superado.

Atribui-se as ideias roustanguistas, hoje, às adaptações feitas a partir de Chico Xavier e, tendenciosamente, às interpretações "moderadas" de Allan Kardec feitas através de traduções da FEB. Na essência, todo o catolicismo surreal de Roustaing foi mantido, sem os pontos escandalosos, mas fundamentados no misticismo sobrenatural e no moralismo religioso aliados a um grosseiro pedantismo pseudo-científico.

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