domingo, 6 de março de 2016

No Brasil, se deturpa até a cultura nerd

VINGANÇA DOS NERDS E SE BEBER, NÃO CASE - Respectivamente, o original e a deturpação da cultura nerd.

No Brasil, costuma-se deturpar tudo. Doutrina Espírita, radialismo rock, feminismo, mobilidade urbana, tudo tem seu sentido original desvirtuado em nome de uma "novidade" que é sempre dilapidada e distorcida para não romper com paradigmas velhos, o que dá ao "novo" um aspecto estranho em relação ao original e uma maior proximidade ao que está "velho".

É aquela coisa. Deturpa-se uma novidade para não ameaçar estruturas velhas, e aí a novidade acaba buscando mais proximidade com o sistema de valores que poderia romper do que à verdadeira novidade que surgiu lá fora. Vide o "espiritismo" que se fundamenta em valores antiquados trazidos pelo Catolicismo do Brasil colonial, de herança portuguesa e medieval.

Até a chamada "cultura nerd", termo que anda eventualmente em moda na grande mídia - sobretudo quando ocorrem eventos como o Campus Party, espécie de "primo pobre" do San Diego Comic Con - , é deturpada até eliminar toda a essência original.

E como surgiu o termo nerd? Em inglês, a palavra significa "lerdo". Originalmente, era uma gíria que os valentões da escola se referiam pejorativamente a tipos de rapazes desajeitados, embora muitíssimo inteligentes, que tinham problemas na vida amorosa e tinham uma vida quase reclusa.

Com a cultura contemporânea, vieram artistas e famosos que se tornaram conhecidos pelo estilo de vida nerd: Buddy Holly, a banda estadunidense Devo e o cantor britânico Morrissey. Embora o perfil de nerd seja marcado pelo jovem franzino de óculos com aros grossos, nem todo rapaz de óculos é necessariamente um nerd.

Aliás, filmes como Vingança dos Nerds (Revenge of the Nerds) descreveram e popularizaram o perfil do nerd e as humilhações que eles recebiam dos valentões da escola. O filme foi um dos mais populares dos anos 80.

Tempos depois, porém, o perfil nerd passou a ser deturpado, em menor escala nos EUA do que aqui no Brasil. O nerd passou a ser o fanfarrão que não gosta de fazer barba nem de ficar em forma, mas passa muito tempo na Internet e gosta de revistas em quadrinhos e seriados de ficção científica.

Filmes como Se Beber Não Case (The Hangover) já começavam a trabalhar uma visão deturpada do nerd, tirando dele alguns aspectos que lhes são próprios, como a dificuldade amorosa e o fato de viverem reclusos e solitários. O "nerd" passa a ser um fanfarrão "bem de vida".

E como o Brasil sempre toma gosto da deturpação, confundindo entender mal com ter originalidade, o conceito de nerd foi alterado de tal forma que hoje ele está mais próximo dos valentões que espancaram os verdadeiros nerds do que suas vítimas propriamente ditas.

Ser nerd, no Brasil, tornou-se algo anti-nerd. Um fanfarrão grosseiro, um brutamontes afeito a piadas grotescas, um garanhão que fala errado e comete pequenas gafes, um garotão que mais parece líder de turma e que se acha "nerd" só porque fica mais de quatro horas diante de um computador ou um smartphone.

A "nova definição", que como em toda deturpação sempre põe o "novo" em bases velhas, mostra um "nerd" à semelhança dos que antes humilhavam os nerds, e a grande mídia sentiu a onda ao colocar o truculento Rafinha Bastos (que, durante a gravidez da cantora Wanessa Camargo, fez comentários sexualmente levianos) como "nerd", na capa de uma revista da Editora Abril, a mesma que edita a ultrarreacionária Veja.

Para piorar, muitos praticantes de trolagem, de forma ao mesmo tempo arrogante e leviana, se autoproclamavam "nerds" só porque falavam palavrões, publicavam piadas, se comportavam como psicóticos nas mídias sociais etc. Psicopatas digitais que tentam se definir como o oposto que são, já se definiram como "alternativos" seguindo o mais rasteiro do mainstream e se autoproclamavam "esquerdistas" defendendo visões de extrema-direita.

Os próprios troleiros continuam fazendo bullying com os verdadeiros nerds (os que não podem mais serem definidos como tais) e impondo a eles papéis humilhantes: desejar mulheres fúteis (como as "boazudas" siliconadas), ver filmes de pancadaria, torcer por futebol e viver a vida só se embriagando, como alcoolistas.

O jogo das aparências, como também ocorre no Brasil, em que a forma deturpada tenta alguns clichês da expressão original para se passar por "autêntica" - como um produto falsificado que imita as caraterísticas do original - , também faz os falsos nerds tentarem alguns aparatos.

É aí que, por exemplo, alguns blogues supostamente associados à "cultura nerd" tentam falar de temáticas nerds, como colecionar bonecos de Star Trek dentro de embalagens, ver comédias juvenis no sábado à noite com um copo de achocolatado em pó e biscoitos recheados, ser perito em Ciências e falar em física quântica numa conversa entre amigos etc.

Só que aparências, neste caso, só acobertam a essência, que lhes é oposta. E é o que vemos no "espiritismo" brasileiro, em que tão confusamente se defende o "respeito rigoroso a Allan Kardec", no discurso, enquanto na prática o pensamento do pedagogo francês é desrespeitado o tempo inteiro.

E assim o Brasil confunde deturpação com originalidade, o que compromete a real compreensão das novidades de fora e um melhor condicionamento para adaptá-las à realidade nacional. Entende-se mal o que é de fora e não se entende o que ocorre aqui dentro, e, sem entender o nacional e o estrangeiro, assimila-se mal o que é de fora com a abordagem confusa do que se tem dentro. Com isso, o Brasil continua sendo antiquado mesmo quando tenta parecer novo.

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