O que realmente é a união? Sufocar as individualidades em torno de uma pretensa fraternidade, ignorar a complexidade social de hoje, eliminar as diferenças em prol de uma suposta igualdade? E que igualdade que queremos é a igualdade da mesmice?
Mais uma vez o "espiritismo" apela e vemos um artigo chamado "O joio e o trigo", de Pedro Valiati, publicado no portal do Correio Espírita, que não apenas evoca a ideia igrejista de fraternidade como também recorre discretamente à tese do Brasil como um "coração do mundo".
"Quantas dores seriam poupadas, comprometimentos, carmas evitados diante do tempo. Em breve lembrança, citamos as diásporas, as perseguições, as guerras, os apartheids, os muros. Provocando as separações graves. Afastando filhos de mães, maridos de suas esposas, pais de seus filhos, pessoas de suas raízes, embaladas por decisões equivocadas, muitas vezes tomadas por outrem. Fenômenos de acerbas dores!", descreve o autor.
É cômodo fazer um parágrafo como esse, dentro de uma perspectiva igrejista, de uma visão maniqueísta e simploria de bem e mal, tolerância e intolerância. O problema é que muitas das decisões equivocadas prevalecem porque há mais apoio e tolerância aos mesmos e há quem serve aos interesses dos algozes.
Não seria o moralismo religioso, não só o "espírita", mas sobretudo o do Catolicismo medieval, que tanto apelava para a compaixão aos tiranos e algozes? Desde que a ponta da espada não dê seu anúncio apunhalando a porta de casa, muitos cidadãos de bem, na sua boa-fé, permitem a tirania e autorizam os abusos do arbítrio, sem saber dos seus efeitos mais danosos.
Além disso, o que é a união para o "espiritismo" brasileiro? Antes de seguirmos nossa análise, vejamos esse trecho do mesm oartigo de Valiati:
"A cisão é sempre lamentável, nos demonstra que a mínima tolerância falhou.
Alguns citarão que os apóstolos também tiveram suas contendas, o que é real. Temos o incidente de Antioquia, entre Paulo e Pedro, dois protagonistas do evangelho, por questões ritualísticas! Fez-se necessária a intervenção de Tiago, o justo.
Outros alegarão que o Cristo também promoveu o separatismo ao mencionar os bodes e cabras, os que vão à esquerda ou direita, o joio e o trigo, etc. Esquecendo-se que o Mestre falava do Reino de Deus, do mundo do espírito. Ele se referia à reação da consciência culpada ou não, diante das consequências dos equívocos e acertos da existência. Certamente, não buscava segregar espíritos irmãos de um planeta necessitado de fraternidade. A fraternidade, por sinal, trata-se de fenômeno coletivo, devendo ser socialmente praticado, sociedade esta, onde estamos condenados a conviver, segundo o próprio Evangelho Segundo o Espiritismo".
O problema é que, numa perspectiva conservadora, união e fraternidade sempre se voltam para o pior, para uma causa mais nefasta ou, quando muito, alguma coisa traiçoeira ou tendenciosa. E que união é essa em que individualidades não são reconhecidas e no jogo de interesses é o mais corrupto e espertalhão que fica com o comando da trajetória?
O texto parece ser uma sutil defesa do "espiritismo" brasileiro, cuja crise aguda mostra a contradição que a doutrina brasileira tem entre a suposta "fidelidade absoluta" a Allan Kardec e a deturpação igrejista.
Sempre houve a tendência do "movimento espírita" pregar a união pela deturpação, a ideia de fraternidade submetida à do apoio à mistificação e ao moralismo religioso. As discordâncias em torno da supremacia dos "místicos" sempre foram vistas como "atos de intolerância e separatismo".
O discurso de "fraternidade" e "união" ainda é reforçado pelo mito ufanista de que o Brasil é o "coração do mundo" e que, visto pelos "espíritas" como suposta síntese dos vários povos da Terra - numa deturpação da já discutível tese de "diversidade étnica" presente no livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre - como se observa neste trecho:
"Separatismos, definitivamente, não serão o legado da Terra de Santa Cruz, nome, não por acaso, escolhido anteriormente ao Brasil.
É de conhecimento de muitos, através da literatura ou troca de ideias sobre a Doutrina, que o Cristo, acompanhado de seus anjos, percorreu as áreas verdejantes deste país, visualizando o futuro do Evangelho de Deus, florescendo e espalhando-se pelo orbe. Conduzindo tanto ao renascimento do espírito, quanto a continuidade da missão do Cristo: Implantar o Reino de Deus na Terra.
Por vezes, o pessimismo e a revolta diante de fatos político-sociais internos nos consomem a alma, corpo, mente e tempo. Fenômeno, este, de profunda inutilidade, absolutamente desnecessário ao crescimento moral.
O Mestre, na visita de séculos atrás às terras brasileiras, nos legou uma missão, uma honra e uma responsabilidade: sermos o país a representar o coração do mundo, a pátria do evangelho.
A destinação, se assim podemos utilizar este termo, do exemplo a ser dado pelo nosso país é outro".
Em outras passagens, o autor fala do "orgulho" com que a discórdia - palavra da qual os "espíritas" brasileiros sentem medo - atua para criar "grupos antagônicos". Eles, os "espíritas", tão "bonzinhos", é que, no entanto, criaram, no grupo brasileiro, uma força antagônica a Allan Kardec, porque sua base ideológica é, na verdade, a de Jean-Baptiste Roustaing.
Um trecho dá um "beliscão" naqueles que questionam a deturpação do "movimento espírita" e cujos movimentos de contestação, questionamentos e críticas severas sempre foram vistos como "atos de desunião" e "intolerância". Tenta o autor promover a união pela causa deles, a união pela deturpação, a aceitação de tudo, de qualquer coisa, a pretexto de "nossa felicidade".
Ele ainda evoca uma passagem fictícia, acreditando que Jesus teria visitado o Brasil e determinado que o país iria ser a sede do "Reino de Deus na Terra", como sugere a ideia do "coração do mundo". No entanto, essa passagem nunca existiu, Jesus nunca pensou em dar a um país a missão de comandar a fraternidade humanitária. Desencarnando, ele foi para um mundo mais evoluído.
Pela natureza do título, vemos que o artigo de Pedro Valiati se resume a uma simples ideia: unamos o joio com o trigo, juntemos os bugalhos aos alhos, e assim promoveremos uma concepção igrejista de fraternidade, onde é mais fácil aceitar e se conformar com tudo, e se concorda com os maiores absurdos que acontecem na realidade.
Sem sequer intervirmos na complexidade da vida humana, usando de forma positiva a discórdia, a descrença, o questionamento e a revolta, estaremos deixando que injustiças sempre nos peguem de surpresa. A vida é complicada demais para ficarmos sonhando numa igualdade que despreza individualidades e rejeita diversidades. E que permite os abusos dos tiranos e usurpadores.
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