sábado, 19 de dezembro de 2015
Teorizar a paz e a fraternidade é inútil
Um dos grandes males das religiões é teorizar demais os ideais de paz, fraternidade, amor e caridade. O malabarismo discursivo dos "espíritas" é um exemplo típico, em que toda a retórica de "amor e bondade" tenta compensar a desonestidade doutrinária em relação ao pensamento de Allan Kardec.
Todo dia 19 de dezembro é dia da realização, em Salvador, do itinerante showmício "Você e a Paz", espécie de "missa ecumênica" liderada pelo anti-médium baiano Divaldo Pereira Franco, é um exemplo dessa fantasia de que uma simples palestra "em favor da paz" fosse suficiente para promover a paz mundial. E não é. Muito pelo contrário.
Tratar ideias como amor, caridade e solidariedade como se fossem temas abstratos e apelar, por si só, que nos demos as mãos e nos tratemos como se fôssemos irmãos, é uma das tarefas mais inúteis e sem efeito concreto que se observam na vida.
A sociedade é complexa, cheia de conflitos de interesses diversos, em que os benefícios são distribuídos com desigualdade entre as pessoas. Muitos têm e conquistam o que não precisam e têm mais do que merecem ou necessitam, e outros não chegam a ter sequer o mais basicamente necessário. e isso é a raiz de muitas brigas e violências.
A religião não entende e nem poderá compreender isso. Sua única especialidade é a mitologia. A religião é uma reunião de mitos, rituais, dogmas que refletem mais uma fantasia mística e sentimental do que qualquer atitude ou postura em relação à realidade concreta.
O "espiritismo" brasileiro, marcado por uma inclinação para uma forma de catolicismo mais flexível do que a da Igreja Catolica propriamente dita, também não consegue compreender a realidade complexa, mesmo quando se apoia na pretensão de ser "mais realista" e "apreciar" assuntos de ordem científica e intelectual.
Á primeira vista, "Você e a Paz" parece um evento "bem intencionado" que até os críticos da deturpação da Doutrina Espírita aceitam de bom grado. No entanto, é uma missa igual as outras, até a voz de padre que Divaldo Franco tem é bem parecida. Temos milhões de missas pedindo paz e nem é por isso que ocorre mais paz no planeta.
A França também é religiosa, tem um monte de missa, e nem por isso ela esteve livre de dois atos terroristas este ano, o primeiro em janeiro, com mais de dez mortos, entre eles dez jornalistas, entre articulistas e humoristas, do periódico Charlie Hebdo, e outro, com mais de cem mortos, vários deles em uma boate tradicional e um restaurante de Paris.
É terrível que o "espiritismo", até para tentar livrar da má reputação da infidelidade doutrinária, teorize demais sobre assuntos ligados ao amor e à solidariedade, dentro de seu malabarismo discursivo cheio de desvios de argumentos.
Também é inútil que palestrantes "admitam" que bondade não tem religião, que ela não se deve limitar à teoria, tem que ser praticada etc, porque mesmo assim até essa aparente constatação também é carregada de teoria, pois todo malabarismo discursivo, mesmo que tente defender a prática acima da teoria, mesmo assim não passa de uma teoria.
Além do mais, que exemplo traz Divaldo Franco? Tido como o "maior filantropo do mundo", ele no entanto só ajudou 0,08 % da população de Salvador, com sua Mansão do Caminho, ao longo de seus 63 anos de existência. Em dimensões municipais, é um dado medíocre, que piora se comparado a dimensões estaduais, nacionais e mundiais, o que praticamente significa nada.
Além do mais, a personificação de pseudo-sábio de Divaldo Franco, com seu discurso rebuscado e seus delírios místicos - ele é tido como "fiel discípulo da doutrina de Kardec" acreditando em bobagens como crianças-índigo e planetas-chupões que o pedagogo francês reprovaria sem hesitar - só faz sentido porque encaixa em estereótipos religiosos e professorais muito consagrados no Brasil.
É curioso que, em Salvador, um evento como "Você e a Paz" esteja em declínio, numa cidade em que um evento de atrações "satanistas" como o Palco do Rock esteja em grande crescimento. Afinal, tudo revela que a realidade é complexa, e não é a aparência e o discurso oficial que dão o sentido da verdade, não é a "embalagem" e o "fazer dizer" que contam com o melhor sentido verídico.
No Palco do Rock, a teatralidade do heavy metal e do hardcore de parte de suas atrações pode sugerir um falso "demonismo", mas a verdade é que lá existe mais solidariedade e fraternidade do que qualquer palestra religiosa que apele demais para tais causas.
Praticar a solidariedade, aliás, não depende de tais discursos, que em muitos casos soam bastante piegas e que, em vez de confortar e animar, irritam as pessoas. Sim, falar demais em paz, amor e fraternidade pode irritar as pessoas, porque na sociedade complexa em que vivemos não dá para promover tais qualidades assim do nada.
É percebendo as necessidades das pessoas, as vocações dos indivíduos, seus limites para não interferir no sossego dos outros, é que promovem a paz e a solidariedade. Numa época em que uns querem demais aquilo que não precisam e outros não conseguem ter o essencialmente necessário, os conflitos continuarão, mesmo com todos os apelos discursivos pela paz.
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