quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

No Brasil, até os roqueiros também têm o seu Roustaing

RÁDIO CIDADE: PROGRAMAÇÃO HIT-PARADE FANTASIADA DE "ROQUEIRA".

Toda causa acaba tendo o seu Jean-Baptiste Roustaing. Se o "espiritismo" brasileiro, cuja ideologia se montou com base nos preceitos e preconceitos roustanguistas, se julga "rigorosamente fiel a Allan Kardec", é sinal que, no Brasil, impera toda a hipocrisia social que alimenta oportunismos, pedantismos e tendenciosismos.

Aqui é o país em que os penetras viram anfitriões de festas, as raposas cuidam dos galinheiros e ninguém desconfia e endeusa-se uma pessoa pelo status quo que tem e do qual ninguém sabe como foi alcançado. Fala-se muito mal do Partido dos Trabalhadores, enquanto calhordas e canastrões bem piores são aceitos e até recebem apoio entusiasmado.

Na cultura rock brasileira, em especial o eixo Rio-São Paulo, chama a atenção o "fenômeno" da emissora de rádio FM chamada Rádio Cidade. A rádio nunca teve vocação original para o rock, nem seu histórico indicava tal tendência. Surgida em 1977, ela atravessou sua trajetória sob a concorrência da Eldo Pop e da Fluminense FM, rádios de rock autêntico, e nem se ligou para a causa.

Só que desde 1995, a Rádio Cidade passou a explorar o rock de maneira oportunista e incompetente. Por um erro de atitude e por uma questão de oportunismo, o Sistema Jornal do Brasil (atual Sistema Rio de Janeiro de Rádio), em vez de extinguir sua emissora pop e criar uma nova emissora do zero, com uma equipe especializada, manteve a Rádio Cidade, sua equipe de radialistas pop e apenas criou algum aparato "roqueiro" sem profundidade nem competência.

Tudo uma questão de oportunismo. Até se alegarmos que a Rádio Cidade aderiu ao rock como "solidariedade" a quem perdeu a Fluminense FM, que havia saído do ar em 1994, soa estranha a suposição. A emissora levou seis meses para assumir a "causa" da outra rádio, o que quer dizer que ela agiu por oportunismo, esperando ver se podia ganhar dinheiro em cima, observando de longe os efeitos da extinção da antiga rádio roqueira.

O tempo passa e a Rádio Cidade passou a viver uma história kafkiana. Pretensa "unanimidade" até entre os roqueiros aparentemente autênticos, a emissora passou a usar o lema "Rock de Verdade" para confundir as pessoas e tranquilizar a mídia. Enquanto isso, ela segue sua visão deturpada de programação de rock, que só revela a verdadeira vocação da emissora carioca: o hit-parade.

A grade de programação nada tem a ver com rádios de rock. Ela é calcada, ironicamente, ao padrão de rádios de pop convencional, como Jovem Pan FM e Mix FM. Em vez de haver programas especializados em tendências do rock, há programas de sucessos, músicas do passado etc, que refletem critérios meramente de hit-parade, programas de grandes sucessos de ontem, hoje e amanhã.

Mesmo programas como "Debate Rock", "Hora dos Perdidos" e "Rock Bola" seguem critérios da Jovem Pan: o "Debate Rock" surgiu em função de um noticiário produzido pela Jovem Pan AM, retransmitido em FM, e que tem o reacionário colunista da revista Veja, Reinaldo Azevedo, como uma das atrações.

A "Hora dos Perdidos" segue uma linhagem de programas de besteirol temático como "Transa Louca", da Rede Transamérica, e, em parte, o "Pânico da Pan". O "Rock Bola", espécie de mistura do "Pânico da Pan" com Galvão Bueno, aposta na tese sem fundamento de que futebol é "esporte rock'n'roll", coisa que nunca se observa na realidade do futebol brasileiro. Nem na Inglaterra isso ocorre: lá ingleses gostam de futebol e rock, mas nunca se atrevem a vê-los como uma coisa só.

O aspecto kafkiano - observação trazida pelos que questionam a emissora - se deve ao fato de que agora a Rádio Cidade é vista como "rádio de rock séria" e mesmo os roqueiros autênticos parecem pouco inclinados a contestar ou repudiar o fenômeno, mesmo sendo a emissora de origem nada roqueira que irá completar 40 anos de existência, em 1977, renegando sua própria história.

Esquecem eles que a Rádio Cidade em nenhum momento quis herdar a trajetória da Fluminense FM e nunca teve o compromisso em trabalhar o perfil rock que não fosse o de uma rádio pop com vitrolão roqueiro - que é o que vemos na programação do "Rock de Verdade" - , mas uma rádio com locução, linguagem e filosofia de trabalho diferentes do perfil "paradão".

Em vez disso, observa-se, só na locução e vinhetas, que a Rádio Cidade lembra muito a Mix FM, Jovem Pan e até a popularesca FM O Dia, que também investe no atual perfil de locutor "mauricinho", do tipo "engraçadinho", de voz quase efeminada (como nos locutores masculinos) e fala "calminha".

O próprio diretor da Fluminense FM, Luiz Antônio Mello, havia descrito no capítulo "O marketing silvícola da Fluminense FM", no livro A Onda Maldita, um trecho que já previu o oportunismo da mercenária emissora transmitida nos 102,9 mhz do Grande Rio:

"Tínhamos uma verdadeira fobia de que uma Rádio Cidade, de repente, despejasse, com seus milhões de quilowatts, Rock sobre o Rio. Estaríamos ferrados.

(...) Eu expliquei a todo mundo que concorrência é igual a uma granja. Se você tem galinhas gordas, milhares, e o seu vizinho tem um galo e uma galinha magros, raquíticos, mesmo assim, respeite. Se uma metade de milho cair lá a cada duas horas, galo e galinhas sobreviverão. Nascerão pintinhos e, mais tarde, quando você for ver, terá um concorrente quase do seu tamanho, igual ou maior. Com isso eu não brinco".

Infelizmente, porém, os roqueiros autênticos estão divididos diante da situação. Os que detém alguma influência e visibilidade na mídia andam complacentes com a Rádio Cidade. Os que se mantém na essência da cultura rock reclamam sem poder influir na situação. "Ferrados", os roqueiros há muito levantaram bandeira branca para a canastrice eletrônica da Rádio Cidade e seus milhões de quilowatts.

Enquanto isso, o legado da Fluminense FM se resume a um memorial - Maldita 3.0 - e uma rádio digital - Cult FM - que, embora iniciativas de altíssimo valor e importância indiscutível, não conseguem neutralizar a força comercial da Cidade.

Com todas as facilidades que hoje permitem sintonizar uma rádio digital no celular, ela ainda é problemática, onerosa e frágil, se comparada com a sintonia de um rádio FM comum. Além disso, se o rock autêntico não encontra mais espaço no rádio FM de fácil sintonia, as rádios digitais têm que sofrer a concorrência da própria Rádio Cidade, que também explora sintonia na web.

Os dois projetos, com todo o diferencial que possuem, são insuficientes para desviar a atenção dos que, deslumbrados com a Rádio Cidade, a tratam como se fosse uma "igreja" de uma "seita do rock" em que o aparato "roqueiro" vale mais que a essência de sua música e cultura.

Há muito tempo os roqueiros não têm para si os microfones do rádio FM no Rio de Janeiro, pois o que ocorreu até agora são promessas vãs de radialismo rock, que estabeleciam restrições de todo tipo, como rádios de pop adulto que não podiam tocar rock pesado ou rádios ecléticas que só podiam ter uma faixa horária de rock de no máximo quatro horas.

No caso da Rádio Cidade, os roqueiros praticamente não têm os microfones em suas mãos. Ao longo dos últimos 20 anos, os microfones são controlados por radialistas pop, que, não bastasse seu estilo de locução quase efeminado no timbre e na entonação e suas gírias convencionais, falam mal de artistas de rock nos bastidores.

A Rádio Cidade abocanhou uma reserva de mercado do rock e, aos poucos, assumiu o controle do território que sempre lhe foi alheio. A Fluminense FM tentou uma volta mas encontrou o mercado refém da Rádio Cidade. Rádios digitais tentam a "política da boa vizinhança" e não fazem o marketing de guerrilha para rejeitar a canastrice que rola nos 102,9 mhz.

Daí o aspecto surreal. Uma parcela do público roqueiro pede para que "respeitemos a Rádio Cidade", abrindo mão da tradição de contestação e resistência dos próprios roqueiros, sob a desculpa de que, aceitando uma rádio que não toca mais do que um punhado de sucessos manjados do rock, se fortalecerá o mercado do gênero. Grande ilusão.

É mais ou menos o que ocorre no "espiritismo" brasileiro. Se na Rádio Cidade há a "cultura rock" trabalhada sob o prisma do pop convencional, com todos os seus preconceitos, vários deles graves, contra a rebeldia roqueira, vista de maneira caricata e estereotipada, no "espiritismo" a doutrina de Allan Kardec é trabalhada sob o prisma dos preconceitos católicos assumidos pelos seguidores brasileiros.

Se de um lado todo o trabalho foi feito para se fazer o perfil de rádio de rock além de um simples vitrolão roqueiro, com linguagem e mentalidade próprios, como foi a Fluminense FM entre 1982 e 1985, para tudo terminar numa rádio de um perfil pop qualquer que apenas "só toca rock", isso lembra também o fato de que todo o trabalho de Allan Kardec também parece ter sido em vão, já que o "espiritismo" que "vingou" não passa de um subproduto paranormal do Catolicismo.

Isso é um reflexo no Brasil. Talvez o galo e as galinhas do vizinho, citado por Luiz Antônio Mello, sejam na verdade seguidores das raposas que sempre tomam os galinheiros, nesse país em que a visibilidade e o poder de decisão e formação de opinião estão nas mãos dos incompetentes.

É um Brasil em que tem que se respeitar a raposa que cuida do galinheiro em nome do progresso econômico, da estabilidade social ou das promessas de prosperidade e glamour futuros. Criticar a raposa é considerado antissocial, porque a raposa é legal e, se as galinhas são mortas devoradas pelo predador, este é inocente, as vítimas é que "deram bobeira". Fácil culpar as vítimas.

E é isso que trava o progresso do Brasil, porque as causas são sempre entregues a quem não tem natural identificação com as mesmas. E tudo fica à mercê de oportunismos e tendenciosismos.

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