sábado, 21 de fevereiro de 2015

A inculturação em 'Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho'

PREGAÇÃO RELIGIOSA DE JESUÍTAS NUMA COMUNIDADE INDÍGENA.

O livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, que descobriu-se não ser de autoria de Humberto de Campos por comparações de análise de conteúdo que revelaram disparates de estilos entre o suposto espírito e o que Humberto havia escrito em vida, além de claros indícios de plágios, é um problemático documento sobre a História do Brasil.

Inspirado em uma abordagem de nossa história já considerada deficitária e fantasiosa para os padrões da época (1938), mas fortemente defendida por nossas elites de então, o livro foi um dos primeiros manifestos do devaneio ufanista de Francisco Cândido Xavier, três décadas antes do sonho que inspirou o tendencioso documentário Data-Limite Segundo Chico Xavier.

Usando a mesma visão histórica que tratava personalidades medianas ou até mesmo corruptas do nosso país como se fossem supostos heróis com missão pretensamente divina, o livro ainda peca por uma visão racista que tratava os índios como "puros de coração" (eufemismo para "ingênuos") e os negros vindos da África como "selvagens indóceis".

Nessa época já começavam a surgir abordagens antropológicas que desfizeram tais visões, como a História das Mentalidades de Marc Bloch e Lucien Febvre, e que reconheceram em tribos de negros africanos e índios americanos aspectos típicos de comportamento civilizado e uma estrutura social admiravelmente organizada em vários desses agrupamentos.

Em muitos casos, os negros trazidos pelo tráfico escravagista eram vindos de comunidades organizadas, com estruturas familiares e um sistema educacional e moral que, mesmo dentro de estruturas consideradas primitivas para o padrão europeu, eram comprovadamente de notável organização sociológica.

Diante desse quadro, é estarrecedor que muitos brasileiros, hoje, ainda atribuem a Chico Xavier uma missão supostamente progressista, diante de uma personalidade claramente conservadora - até além do limite, pois Xavier defendeu a ditadura militar quando ela se mostrava mais evidentemente repressiva - que se revela explicitamente nos livros que levam o seu crédito.

A "inculturação", estratégia dos padres da Companhia de Jesus para manipular o povo indígena e deturpar sua cultura em prol do Catolicismo dominante oriundo de Portugal - e dotado de valores e procedimentos medievais - , é um processo lamentável, mas que aparece elogiado no referido livro que Chico Xavier botou na conta de Humberto, incapaz este de escrever uma obra como esta.

Segue o trecho reproduzido na página 53 do livro, correspondente ao capítulo "Pombal e os jesuítas", que mostra o quanto a intenção de converter os índios ao Catolicismo era elogiado com muito entusiasmo por uma obra que se autoproclama "uma das mais importantes da Doutrina Espírita".

Nota-se que, no final deste trecho, há uma lamentação de que a Companhia de Jesus não tem mais a mesma alta reputação de antes, o que subentende o descontentamento que os espíritos de seus integrantes tiveram e que os fizeram, através do mesmo processo de "inculturação", transformar o Espiritismo numa forma reciclada dos antigos valores e procedimentos jesuíticos.

O atentado a que se refere o começo do trecho é o sofrido pelo então rei Dom José I, ferido por um grupo de revoltosos, em 1758.

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"Pombal aproveita o ensejo que se lhe oferece para justificar a expulsão dos jesuítas, apontando-os como autores indiretos do atentado e D. José I, a instâncias do seu valido, assina sem hesitar o decreto de banimento. Esse ato de Pombal se reflete largamente na vida do Brasil. Todo o movimento de organização social se devia, na colônia, aos esforços dos dedicados missionários. O clero comum possuía escravos numerosos e chegava a defender o suposto direito dos escravagistas, incentivando a caça aos índios e abençoando a carga misérrima dos navios negreiros. Os jesuítas, porém, sempre trabalharam, no início da organização brasileira, dentro dos mais amplos sentimentos de humanidade. Aldeavam os índios, aprendiam a “língua geral”, a fim de influenciarem mais diretamente no ânimo deles, trazendo as tabas rústicas às comunidades da civilização e foram, talvez, naqueles tempos longínquos, os únicos refletores dos ensinamentos do Alto, advogando o seu verbo inspirado a causa de todos os infelizes. A sua expulsão do Brasil retardou de muito tempo a educação das classes desfavorecidas e, se o ministro de D. José I estendeu algumas vezes o seu dinamismo renovador até a Pátria do Evangelho, sua ação poucas vezes ultrapassou o terreno material, tanto que, mesmo alguns melhoramentos introduzidos no Rio de Janeiro pelo Conde de Bobadela, que levantou aí a primeira oficina tipográfica do país, foram por ele destruídos, à força de decretos que constituíam sérios obstáculos à facilidade de educação no território da colônia. A esse tempo, observando a anulação dos seus esforços, os missionários humildes da cruz procuraram Ismael com instantes apelos. Seus trabalhos eram abandonados, por força das determinações do ministro arbitrário. Suas intenções ficavam incompreendidas, suas ações baldadas, no sentido de espalharem entre os sofredores as claridades consoladoras do ensino de Jesus. Mas, o generoso mensageiro pondera bondosamente aos seus dedicados colaboradores:

— Irmãos — diz ele — muitas vezes, os próprios Espíritos que escolhemos para determinados labores terrestres não resistem à sedução do dinheiro e da autoridade. Sentem-se traídos em suas próprias forças e se entregam, sem resistência, ao inimigo oculto que lhes envenena o coração. Deixai aos déspotas da Terra a liberdade de agir sob o império da sua prepotência. Por mais que operem dentro das suas possibilidades no plano físico, a vitória pertencerá sempre a Jesus, que é a luminosidade tocante de todos os corações. Temos, porém, de considerar, a par da tirania política que tenta destruir a nossa ação, o lamentável desvio dos nossos irmãos incumbidos de velar pelo patrimônio do Evangelho, no mundo europeu. Infelizmente, não têm eles procurado levar a luz espiritual às almas aflitas e sofredoras, clareando a estrada dos ignorantes e abençoando o rude labor dos simples; ao contrário, buscam influenciar os príncipes do planeta, disputando os mais altos lugares de domínio no banquete dos poderes temporais, em todos  os países onde milita a igreja do Ocidente. Peçamos a Jesus pelos tiranos e pelos nossos companheiros desviados da consciência retilínea. Se terminamos, agora, uma etapa da nossa tarefa, em que aproveitamos os elementos que nos oferecia a disciplina da Companhia fundada por Loiola, prosseguiremos o nosso trabalho dentro de novas modalidades. Deixemos aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos, como ensinou o Divino Mestre em suas lições sublimes. Vossos irmãos, transformando a cruz do Cristo num símbolo de opressão e despotismo, nos tribunais malditos da Inquisição, cavam a sepultura moral de suas almas, que se amoldam ao sacrilégio e à ignomínia. Quanto aos políticos, esses têm uma órbita de ação que não lhes é possível ultrapassar; o tempo e a experiência, com a dor, eterna aliada de ambos, ensinarão às suas consciências a lei de fraternidade e de amor, que esqueceram nos dias do fastígio e da glória efêmera sobre a face do mundo. Oremos por eles e que Jesus, na sua bondade infinita, nos acolha os corações sob o manto da sua misericórdia.

Enquanto oravam, gotas suaves de luz se derramavam do céu sobre os caminhos tenebrosos da Terra e a palavra profética de Ismael teve, em breve, a sua confirmação. A Companhia de Jesus foi suprimida pelo próprio Papa Clemente XIV, em 1773, para reaparecer somente em 1814, com Pio VII. Nunca mais, todavia, puderam os jesuítas readquirir o imenso prestígio que possuíram no Ocidente."

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