quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O "espiritismo" no país de meias-verdades


Um dos piores males existentes no Brasil é a das meias-verdades. Isso se vê em vários aspectos das atividades humanas, seja de âmbito político, econômico e cultural. É no Brasil que se nota que medidas antiquadas ou nocivas são defendidas como se fossem "modernas" e "benéficas", e medidas decadentes se multiplicam aqui e ali apenas porque não há uma oposição sistemática a elas.

Desde que haja um "meio prejuízo", medidas anunciadas como "positivas" são mantidas às custas de meias-verdades. O Brasil virou um país de desculpas, sempre tem alguém com um argumento pronto para defender alguma barbaridade, alguma aberração. Mesmo que esse alguém, no esgotamento de sua precária e confusa argumentação, parta depois para xingações ou esnobismos.

Se fulano matou alguém e saiu da prisão, ele "não oferece perigo à sociedade". Se uma medida causa prejuízos à população, é porque elas são "sacrifícios por um bem futuro". Se uma emissora de rádio ou TV decai sua programação, é para "falar direto com o público e atrair uma audiência maior". Se os preços encareceram, é para viabilizar os custos etc etc etc.

Tudo virou um país de meias-verdades e desculpas prontas. Qualquer pessoa pode justificar seu egoísmo com alguma alegação falsamente altruísta. "Se eu não sou prejudicado com isso, logo a sociedade é beneficiada", é o sofisma dominante do momento, como se o conforto de um pudesse justificar o desconforto de tantos, visto como "incompreensão" e "despreparo inútil".

E como entra o "espiritismo" brasileiro nisso? Ele encaixa perfeitamente nesse cenário em que tecnocratas, empreiteiros, grandes empresários, acadêmicos e outras elites ditam os valores para a sociedade brasileira, outorgando um "Brasil moderno" que nada tem de moderno, é apenas uma versão cibernética daquele país provinciano  e corrupto que marcou a República Velha.

Depois de tantos anos adotando uma postura assumidamente roustanguista, o "espiritismo" brasileiro nas últimas décadas preferiu um "roustanguismo light", em que o nome de Jean-Baptiste Roustaing e tudo que é associado a ele são proibidos de serem mencionados, a não ser como "problemas que já foram superados e que causaram tristeza e desamor entre os espíritas".

Hoje os valores católicos heterodoxos e um tanto delirantes de Os Quatro Evangelhos são preservados na essência pelo "movimento espírita", excetuando os aspectos mais polêmicos e escandalosos, que mesmo os dirigentes da FEB admitem terem causado mal-estar entre seus dirigentes.

Daí que um roustanguismo "revisto e reformulado" pelos sucessivos livros atribuídos a Chico Xavier - boa parte deles escrito por uma equipe de editores da FEB - , que deu um "tempero brasileiro" no religiosismo de Os Quatro Evangelhos, já confortavelmente substituído, como livro-referência, pelo Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, tenta criar um "espiritismo" asséptico.

Daí as evocações um tanto oportunistas de Allan Kardec, que os febianos podem ler através das traduções de Guillon Ribeiro e de outras que, excetuando as de Herculano Pires e seus parceiros, seguem uma linha religiosa moderada.

Daí os surtos de pseudo-ciência que os "espíritas" brasileiros fazem, citando fatos e ideias científicas de maneira pedante e enfeitando textos e até cartazes de seminários com figuras da anatomia humana ou cenários de universos cósmicos, dando um aspecto falso de cientificidade.

São as tais meias-verdades. O "espiritismo" brasileiro tem base católica, segue essencialmente os valores católicos e até adaptou seus ritos à doutrina: a água-benta virou "água fluidificada", o confessionário virou "auxílio-fraterno", os santos viraram "espíritos de luz", enquanto jargões católicos como "seara", "viajores", "caminheiros" e "mananciais de luz" são mantidos.

Todavia, há a postura, pretensa e um tanto hipócrita, de "fidelidade a Allan Kardec", como se ele, em vez de ter sido um grande pedagogo a estudar a natureza da vida espiritual, fosse um pároco de cidade do interior preocupado com a saúde moral de seus fiéis.

Há todo um arremedo de ciência, de racionalidade, que no entanto não consegue evitar o turbilhão de apelações à fé católica fantasiada de "fé raciocinada" (que na prática nada tem de raciocinada) ou ao moralismo religioso, sobretudo através de uma visão cinicamente glamourizada da tragédia humana, vista pelos "espíritas" como se fossem uma "chuva de bênçãos para a vida eterna".

Como em toda atividade do establishment brasileiro vigente, em muitos casos, desde a Era Geisel (1974-1979) e, em outros, desde a Era Collor e a Era FHC, nos anos 90, há uma preocupação em manter as aparências mais agradáveis possíveis, um discurso perfeccionista, uma imagem "mais aperfeiçoada possível", e argumentos que procurem justificar até os piores procedimentos.

Por isso temos um "espiritismo" que, na prática, não é mais do que uma dissidência menor da Igreja Católica, mas que tenta convencer a todos de que é uma "adaptação moderna e original" da Doutrina Espírita de Allan Kardec, em que pese os perfis claramente ultraconservadores de gente como Chico Xavier, Emmanuel, Divaldo Franco e muitos outros.

Isso faz parte de um Brasil que insiste em construir o novo em bases velhas. Sempre se usam bases envelhecidas e até podres para se construir algo novo em cima, e por isso vemos que sempre que há uma "novidade" bem sucedida no país, é porque ela é, na sua essência, antiquada e decadente. Lamentável.

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