sábado, 8 de novembro de 2014
Que "Coração do Mundo" é esse que glamouriza assassinos?
No Brasil dotado de crise de valores, nunca foi tão bom ser um assassino, beneficiado não apenas pela impunidade judicial mas, também, pela impunidade midiática que os transforma em "astros" a alimentar o noticiário sensacionalista, virando também "celebridades" à sua maneira.
Já se fala em fazer filme sobre a jovem Suzane Von Richtofen, que há oito anos atrás matou seus pais. Houve também o caso do ex-médico Farah Jorge Farah, que esquartejou uma ex-namorada, de bermuda e mochila, querendo bancar um coitadinho simpático, e também o de Darly Alves, mandante da morte do ativista Chico Mendes, querendo parecer "gente boa".
Há o caso do ex-ídolo de futebol Bruno, que era goleiro do Flamengo, envolvido no misterioso assassinato da amante Eliza Samúdio, e que, preso há quatro anos, espera seus advogados adquirirem permissão para ele voltar a jogar, desta vez como goleiro de um time pequeno de Minas Gerais.
Por outro lado, tornou-se notória a arrogância do ex-jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, que matou a colega e ex-namorada Sandra Gomide, e do ex-ator Guilherme de Pádua, que com sua ex-mulher Paula Thomaz matou a colega dele, a atriz Daniella Perez, filha da dramaturga Glória Perez.
Pimenta Neves, figurão da mídia conservadora, ao sobreviver a uma overdose de comprimidos que ingeriu após dar dois tiros mortais em Sandra, se comportou de maneira arrogante ao determinar aos órgãos de imprensa que seu crime não fosse incluído na seção de noticiário policial, mas apenas na retranca "País", referente a noticiários nacionais, em sua maioria políticos.
Já Guilherme de Pádua tenta um zelo obsessivo por sua imagem, algo até pior do que, fora do âmbito criminal, personalidades como Xuxa e Roberto Carlos procuram exercer. Recentemente, de Pádua anunciou que vai processar o Google para apagar de sua busca dados que apontem dados sombrios sobre a vida dele, inclusive o assassinato que ele cometeu.
Só para entender o aspecto da situação, que mais parece extraído de um romance de Franz Kafka ou de um filme de Luís Buñuel, Guilherme de Pádua chegou a ameaçar processar Glória Perez por danos morais, diante dos comentários amargos que a autora fez contra o assassino de sua filha.
Assassinos notórios tentam empurrar com a barriga toda sorte de infortúnios e tragédias. Para eles, a tragédia só vale para suas vítimas. Para quem matou alguém e já possui um status social, a ordem é ter sossego e impunidade, como se eles é que merecessem mais tranquilidade, ignorando que quem tira a vida dos outros também traz consequências danosas para si.
Muitos ignoram a tragédia que os homicidas trazem para si, junto com seus excessos pessoais antes de seus crimes (e causas diretas ou indiretas dos mesmos). Nem a imprensa colabora com a descrição das tragédias que assassinos produzem para si mesmos, pela natureza de seus atos extremos, e cabe citar um exemplo de como uma tragédia pode envolver um assassino, sem que muitos saibam.
O empresário Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, aparentemente não tem uma notícia sobre sua morte em breve, mas, a julgar pela idade avançada - 80 anos de idade - e pelo seu passado de intenso tabagismo, bebedeira e uso de cocaína, além da extração de um rim (que tentou salvar a vida de um sobrinho, que não resistiu ao órgão doado), está numa situação que indicaria que ele estaria na idade de sofrer um tumor maligno no pulmão.
Antes que alguém pudesse imaginar que tal constatação sobre Doca, símbolo do machismo "lavagem de honra masculina", parte de alguém que sente profundo ódio pelo empresário, é bom deixar claro que tal pressentimento era sentido por amigos mais chegados de Doca, que já em janeiro de 1977, dias após o crime, declararam à imprensa estarem preocupados com sua saúde.
Doca assassinou a namorada Ângela Diniz, em Búzios, no fim de 1976. Ela era uma conhecida e bela socialite de Belo Horizonte, tendo sido também modelo. Ela chegou a aparecer numa seção de fotos da revista A Cigarra, dos Diários Associados, em 1961, e tinha uma personalidade moderna e arrojada, contrastando com o perfil então festeiro mas reacionário de seu namorado e assassino.
O caso, pela impunidade dada a Doca - num ato falho de seu advogado, Evandro Lins e Silva, que costumava ser ligado a causas progressistas - , inspirou uma longa série de homicídios conjugais que entristeceram a sociedade brasileira e chegaram a inspirar até uma minissérie na Rede Globo, intitulada Quem Ama Não Mata, de 1982.
PARA "ESPIRITISMO" BRASILEIRO, HOMICÍDIO É SEMPRE CULPOSO
No presente momento, o "movimento espírita" do Brasil está ocupado a condenar o "deplorável suicídio" da jovem Brittany Maynard, de 29 anos, que não suportava mais sofrer as dores de um tipo agressivo de câncer no cérebro, que estava em estado bastante avançado. O falecimento ocorreu no dia escolhido pela jovem, o último dia 01, por eutanásia, num hospital do Estado de Oregon (EUA).
O "espiritismo" brasileiro adota uma postura estranha, que coloca o suicídio como um processo ainda mais grave do que o homicídio. O suicida é visto como um covarde hipócrita que não suporta os desígnios divinos de reajustes morais. Já o homicida recebe um tratamento diferente, como se tirar a vida de outrem fosse um ato culposo.
O "espiritismo" alega que o homicídio serviria de instrumento para "resgates espirituais" através das tragédias produzidas. O homicida "pagará" depois, como num fiado, ou sofrerá "suavemente" as "angústias da alma", com toda a oportunidade que tem para "empurrar com a barriga" qualquer infortúnio contra ele. Mas o "pagamento" é sempre "exigido" pra valer nas próximas encarnações.
Essa visão moralista de que o homicida é um "justiceiro das leis de causa e efeito" é uma herança dos ideais de Jean-Baptiste Roustaing que foram preservados pelo "espiritismo" da FEB. E que condiz a um contexto em que os homicidas reivindicam maior prestígio, visibilidade e até respeitabilidade, até mais do que as vítimas, já que aqui vale o mito de que "as vítimas são as culpadas".
O suicídio é um erro, um ato grave de desistência da vida, mas nem por isso ele deve ser considerado pior do que o homicídio, porque este é a manifestação em grau mais extremo do egoísmo humano, e é muito mais deplorável alguém tirar a vida do outro do que tirar a sua própria, por mais que o suicídio seja condenável pela sua própria natureza.
SE FOSSE UM MÚSICO DE ROCK, MORRER SERIA "BEM FEITO"
Num país que, volta e meia, se surpreende com o falecimento súbito de José Wilker, tem-se muito medo de falar na morte de Doca Street (com um passado tabagista pior do que o que matou o ator). Há quem julgue tal pressentimento ofensivo, rancoroso, quando o que está em jogo não é o rancor a um assassino impune, mas a natural deterioração do corpo físico, pelos próprios vícios orgânicos.
Pode-se até gostar e sentir pena de Doca, e, mesmo assim, admitir tal pressentimento. Assassinos dessa ordem, que fumavam, beberam e se drogavam muito no passado, que estragaram seus corpos e ainda cometeram homicídios com a fúria que despeja grandes doses de adrenalina no sangue, não são super-homens para chegar aos 80 anos imunes aos efeitos do que fizeram com o corpo físico.
Tirar a vida de outrem não representa soma de vida ao criminoso, como se acreditava nos antigos rituais canibais. O homicídio, muito pelo contrário, representa subtração, ainda que relativamente pequena, de anos de vida de seu praticante, pelas pressões emocionais, algumas contrastantes, que acaba sofrendo pelo ato cometido e que, em si, já envenenam aos poucos o organismo.
O aspecto surreal é que cometer um assassinato acaba dando ao seu responsável uma reputação que nem suas vítimas conseguem ter e que fazem Guilherme de Pádua se achar sob uma autoridade jurídica que o permite processar, se preciso, até o padeiro que ficou a lhe dever o troco do pão.
Muitos têm medo só de imaginar que Doca Street pode estar com câncer no pulmão ou que Pimenta Neves teria no máximo cinco anos de vida, mas se eles, em vez de serem assassinos das próprias namoradas, tivessem sido, por exemplo, músicos de rock, a reação dos alarmistas seria outra. "Bem feito, tinham que morrer mesmo", diriam, com sarcástica alegria.
A glamourização do homicídio e a ilusão de que certas pessoas têm direito de vida e morte para outras se alia também à ilusão de "encarnação única" que muitos homicidas possuem. Eles querem consertar suas vidas na mesma encarnação, depois dos sérios estragos cometidos, sem reconhecer da tragédia que eles mesmos produziram para si.
Em muitos casos, o recomendável para alguém que tirou a vida de outro é adiar boa parte de sua evolução espiritual para outra encarnação, já que, mesmo no seu esforço pelo progresso espiritual, sua pessoa causa constrangimentos e revoltas diversas, ficando complicado "limpar a barra" com o "nome sujo na praça". Recomeçar uma encarnação no zero seria menos doloroso.
A erosão de valores éticos e morais, com toda a verborragia em prol do "amor e fraternidade" dos palestrantes "espíritas", permite que desordens sociais aconteçam e que sejam justificadas até pelo moralismo que o "espiritismo" brasileiro, contraditoriamente a suas "palavras de amor", prega com severidade medieval.
Daí que o sensacionalismo não só da mídia como de intelectuais e juristas, envoltos na glamourização dos homicidas, encontra respaldo na "doutrina espírita" feita no Brasil, que permite toda sorte de retrocessos ou de progressos limitados, dentro dos valores conservadores que, de uma forma ou de outra, são "simbolizados" pelo "seleto" elenco de homicidas ilustres.
Para todo caso, segundo os "espíritas" do Brasil tão sonhado como o "coração do mundo", as vítimas é que "paguem", no além-túmulo ou na próxima encarnação, os males dos homicidas que, por sua vez, só "pagarão suas próprias contas" daqui a, no mínimo, uns cem anos.
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