sábado, 15 de novembro de 2014
Quando "palavras de amor" podem ferir
A "indústria de palavras de amor" que movimenta o chamado "espiritismo" brasileiro esconde um mecanismo traiçoeiro de deturpação da Doutrina Espírita e do impune abuso da exploração da boa-fé dos seus seguidores.
Nem mesmo religiões ditas neo-pentecostais de gosto duvidoso, com seus pastores truculentos e sua profissão de fé mais voltada à intolerância social e ao reacionarismo moral do que em qualquer outra coisa, conseguiram enganar tanto quanto o "movimento espírita" brasileiro.
As "palavras de amor" e a postura supostamente elevada e serena que facilmente se convertem num coitadismo quando surge um turbilhão de contestações severas a essa doutrina dão ao "espiritismo" brasileiro uma imunidade preocupante.
O que se vê, eventualmente, mesmo em debates em que muitos discutem os abusos da FEB e do roustanguismo que corrompeu a doutrina de Kardec em prol de um igrejismo piegas e moralista, é que ninguém quer tirar Chico Xavier e Divaldo Franco de seus pedestais.
As "palavras de amor" tornam-se traiçoeiras no "espiritismo" brasileiro por conta de esconder intenções maliciosas a ponto de torná-las quase imperceptíveis, de forma que, quando elas são divulgadas, as pessoas reagem, chorosas, achando "injustas" tais denúncias. Não admitem a hipótese de, por exemplo, Chico Xavier desejar um novo império igrejista para o Brasil.
Mas as "palavras de amor" ferem, cortam, mostrando o lado espinhoso de frases róseas com sabor de mel. Vejamos:
1) APOLOGIA DO SOFRIMENTO - Elas servem para glamourizar e fazer apologia do sofrimento humano, ofendendo e agredindo o sofredor, em dóceis frases que mesmo assim não escondem o pouco-caso e um certo esnobismo. Um exemplo: "Quanto mais você sucumbe às duras penas do sofrimento e da amargura, mais bênçãos surgem anunciando no futuro a felicidade eterna".
Ninguém veria de ofensivo numa frase tão linda como essa. E que é muito diferente, por exemplo, do que a saudosa Brittany Murphy, estrela de Grande Menina, Pequena Mulher (Uptown Girls), havia dito sobre os dias difíceis.
Se Brittany disse que os dias difíceis poderiam ser os melhores da vida de alguém, ela quis dizer que esses dias poderiam propiciar condições para a pessoa trabalhar pela sua superação. Mas ela não disse que o sofredor é um abençoado, como Jesus também não tinha dito que sofredores seriam abençoados porque teriam o ingresso ao "Reino dos Céus". Isso é uma má interpretação católica.
Tais palavras que glamourizam o sofrimento são formas dóceis de pregar valores moralistas, criando um discurso envolvente que faz com que as pessoas que sofrem fiquem confortadas e sintam até prazer em sofrer, chegando mesmo a se extasiarem pela própria angústia, dentro do transe que a fé cega traz nos rituais igrejistas.
2) PERMITIR ERROS E FRAUDES - Nos meios "mediúnicos", chega-se mesmo a considerar que estilos e aspectos carateristicos das personalidades dos mortos não são importantes, e o que vale, na dita mensagem mediúnica, são as lições de amor e fraternidade que elas transmitem.
Então, para que usar nomes diversos, como Cazuza, Daniella Perez, Raul Seixas, Getúlio Vargas, Ayrton Senna, Humberto de Campos, Auta de Souza, Noel Rosa etc etc etc, se todo mundo se expressa feito funcionário de igreja e praticamente dizem a mesma coisa: "sofri, fui socorrido e encontrei a luz"?
Dirigentes "espíritas" que se dizem "sérios" e "totalmente fiéis às bases doutrinárias de Kardec", chegam mesmo a dizer que os "espíritos" às vezes deixam de lado sua personalidade e seu estilo pela missão "universal" de transmitir uma mensagem "de amor e fraternidade". Outros enrolam, dizendo que existem aspectos pessoais e estilísticos, sem convencer senão os mais incautos.
Falsificar quadros, criar falsetes, plagiar livros, escrever falsas psicografias, tudo isso é permitido, sem que assumam tais falsidades, mas consentindo com suas práticas secretamente, sob o pretexto de caridade e transmissão de "palavras de amor e fraternidade". Segundo o "movimento espírita", mentiras de amor não doem.
3) LIVRAR DA CULPA DE SEUS PRATICANTES - As "palavras de amor" servem não só para inocentar os astros e chefes do "movimento espírita", sempre com os mais altos elogios às suas pessoas, como servem também para livrá-los da culpa de qualquer acusação, por mais verídica que esta seja.
O discurso serve para desqualificar a lógica dos fatos e dos argumentos de outrem, quando contestam os valores do "espiritismo" brasileiro, e não raro se investe em apelações chorosas como acusar qualquer denúncia, mesmo aquela rigorosamente investigada, de "escandalosa" e "perturbadora".
O coitadismo entra em ação e os ídolos espiritólicos envolvidos em escândalos são tidos como "vítimas de perseguição". Virou até clichê dizer coisas do tipo: "eles só trabalham para o amor e são perseguidos de forma tão humilhante pelos modernos inquisidores", como se a influência do catolicismo medieval não existisse no "movimento espírita" brasileiro. Mas o jesuitismo de Emmanuel comprova que ela existe, sim.
4) PERMITIR TRAIÇÃO E ALEGAR FIDELIDADE - Que tal apunhalar Allan Kardec pelas costas e jurar fidelidade a ele? Como se os kardecistas autênticos tivessem sangue de barata, os espiritólicos brasileiros traem a doutrina de Kardec e, cada vez mais, juram total e rigorosa fidelidade a ele.
Cria-se todo um repertório discursivo para que ninguém perceba quem são os traidores da Doutrina Espírita no Brasil ou, quando muito, expurgar apenas os deturpadores menos sutis - seja o francês Roustaing. seja a farsante Otília Diogo, sejam Wantuil de Freitas e Luciano dos Anjos, sejam os Gasparetto - e manter os espiritólicos mais espertos no seu pedestal.
Assim, cria-se uma retórica habilidosa que evoca a defesa completa e rigorosa da doutrina de Allan Kardec, enquanto, na prática, essa fidelidade é traída pela sedutora tentação de admirar Chico Xavier e Divaldo Franco e ler, escondido, os seus livros, em busca de "lindas lições de vida".
CONCLUSÃO
As palavras ferem, quando vão contra os fatos. Mesmo quando palavras dóceis que expressam sonhos tão lindos sejam muito mais agradáveis do que a dura realidade. Só que Allan Kardec sempre recomendava o raciocínio mais realista e sua doutrina sempre havia advertido sobre os inimigos que usam o Espiritismo para enganar as pessoas justamente pelas "palavras lindas de amor".
Tais advertências, se levadas a sério no Brasil, desqualificariam sobretudo Chico Xavier e Divaldo Franco, cujas palavrinhas lindas não têm a força de ultrapassar séculos e gerações. São apenas momentâneas águas com açúcar que deliciam o paladar dos brasileiros e outros a adotar a mesma postura de adoração.
No entanto, essas "palavras de amor" mostram depois o seu veneno mortal, na medida em que servem apenas de suporte para as sérias e graves deturpações que o "movimento espírita" brasileiro sofreu nos seus mais de 130 anos.
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