quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Artigo de Humberto de Campos: "Poetas do Outro Mundo"

NO FINAL DE SEU ARTIGO, HUMBERTO DE CAMPOS CITA O LIVRO O MONSTRO E OUTROS CONTOS, QUE ELE LANÇAVA NA ÉPOCA.

COMENTÁRIO: Humberto de Campos havia escrito, em vida, dois artigos no jornal Diário Carioca, o primeiro, intitulado "Poetas do Outro Mundo", datado de 10 de julho de 1932, e, como o periódico não circulava nas segundas-feiras, o texto seguinte, "Como Cantam os Mortos", saiu dois dias depois, portanto 12 de julho de 1932.

No primeiro texto, que reproduziremos a seguir, Humberto adota uma postura ao mesmo tempo ingênua e crítica ao livro Parnaso de Além-Túmulo, de Francisco Cândido Xavier, dando a crer que o livro - que, através de pesquisas cuidadosas, revelou-se não ter sido psicografado, mas elaborado por um grupo de escritores, como se observa no decorrer de sua coluna.

Humberto acreditava que os poemas lançados no livro eram autenticamente espirituais, conservando as caraterísticas dos autores em vida, tese contestada anos depois por especialistas, sobretudo o crítico Osório Borba.

No entanto, Humberto se sentia incomodado com o fato da antologia contar com "obras do além", que competiam com a expressão artística dos vivos. Neste livro, ele mostra sua conhecida veia irônica, mas tudo indica que ele havia achado o livro ruim, dando-nos a impressão de que ele julgava a poesia uma arte menor.

Ele chega a dar preferência ao "inferno" descrito por Dante Alighieri em A Divina Comédia, pelo fato de impedir que poetas façam novos trabalhos, pois no enredo os Demônios teriam lhes tomado a lira, para "o bem da ordem interna do estabelecimento", enquanto Humberto descreve o mundo espiritual do livro de Chico Xavier como "desorganizado".

Reproduzimos o texto na íntegra, com a atualização da ortografia de acordo com a reforma de 2009.

POETAS DO OUTRO MUNDO

Por Humberto de Campos - Diário Carioca, n. 1204, Rio de Janeiro, 10 de julho de 1932.

Francisco Cândido Xavier, é o nome de um moço de origem humilde, nascido em Pedro Leopoldo, Estado de Minas Gerais, em 1910. Após um estágio na escola primária de sua terra, entrou como operário e órfão, para uma fábrica de tecidos e, em seguida, para um estabelecimento comercial. E como neste mundo não lhe parecesse dos mais amáveis, começou a pensar no outro, aderindo ao espiritismo, com as altas funções e responsabilidades de "médium".

Lidando nesta vida, com os espíritos medíocres que frequentam a casa de comércio em que trabalha, resolveu Francisco Cândido Xavier tornar-se mais exigente no reino das sombras, buscando, nele, para conversar, inteligências superiores, homens de letras e, especialmente, poetas, que já haviam passado por este mundo. Nessas palestrou em que a boca se mantinha em silêncio, transmitiam-lhe os seus novos amigos algumas poesias elaboradas depois de desencarnados, e que o jovem caixeiro de Pedro Leopoldo ia escrevendo mecanicamente, sem esforço do braço ou da imaginação. Esses espíritos eram, ordinariamente, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Casimiro de Abreu, João de Deus, Auta de Souza, Pedro II, Souza Caldas, Júlio Diniz, Cruz e Souza e Casimiro Cunha, poeta vassourense. Às vezes aparecia, também, um anônimo, cuja modéstia não desaparecera nem no outro mundo. E cada um deles escrevia o seu soneto, ou a sua poesia, com a pena de Francisco Cândido Xavier, o qual, reunindo-as, acaba de publicar o "Parnaso de Além-Túmulo", editado pela Federação Espírita Brasileira.

O primeiro pensamento que assalta o leitor, antes de examinar o merecimento literário da obra, é a ideia de que, nem no outro mundo, estará livre dos poetas. A poesia é uma predestinação de tal modo fatal, irremediável, que a vítima não se livra dessa maldição nem, mesmo, depois da morte. Quem fez sonetos ou redondilhas neste planeta, está condenado a fazê-las em todos os pontos do espaço e da eternidade a que o leve o dedo divino. E sem mudar de estilo. E sem variar de temas. E sem modificação de ritmos, de rimas ou de inspiração.

Admitindo essa verdade, a vida literária no outro mundo deve ser mais variada, embora mais fatigante do que neste. Lá estarão, ainda, Anchieta, a celebrar a Virgem Maria em língua tupi; Botelho de Oliveira a cantar no estilo da "Ilha da Maré" e da "Música do Parnaso"; Cláudio Manoel da Costa, escrevendo sonetos clássicos; Gonçalves Dias, com a sua lira romântica; e os parnasianos; e os simbolistas; e os futuristas, que morreram antes do futurismo morrer. A vantagem apresentada por essa reunião de escolas ficará, todavia, comprometida pela eternidade da produção. A superioridade que esta vida apresenta sobre as outras, está, precisamente, no seu caráter transitório. Quando um indivíduo, entre nós, dizendo-se benquisto dos deuses, empunha a lira, ficamos certos, desde logo, que ele um dia emudecerá. E é esse consolo que não têm os habitantes do Astral, os quais se acham condenados a escutar os maus poetas até a consumação dos séculos.

O Inferno católico é, nesse particular, mais bem organizado do que os mundos em que o espiritismo coloca os mortos. Quando Dante nele penetrou, lá encontrou Virgílio, e outros mestres latinos e medievais. Travou, com eles, palestras, sobre a existência que levavam; e nenhum lhe recitou versos novos, - fato que prova, e sobejamente, que os Demônios lhes tomaram a lira, a bem da ordem interna do estabelecimento, no momento da entrada.

O "Parnaso de Além-Túmulo" do sr. Francisco Cândido Xavier torna-se, por isso mesmo, interessante para os poetas vivos, embora constitua uma terrível ameaça para os que detestam a linguagem rimada ou ritmada. "Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate!" (*) Lá dentro, no reino da Morte, há poetas e eles cantam. E cantam como cantavam aqui, sem omissão, sequer, da linguagem preciosa que aqui utilizavam. "Muitas vezes, - confessa o "médium" no prefácio da obra, - muitas vezes, ao recebermos uma destas páginas, era necessário recorrermos ao dicionário, para sabermos os respectivos sinônimos das palavras nela empregadas, porque tanto eu como os meus colegas as desconhecíamos em nossa ignorância. Não obstante a mudança de clima, cada um conserva, por lá, as suas virtudes e defeitos literários.

Eu faltaria, entretanto, ao dever que me é imposto pela consciência, se não confessasse que, fazendo versos pela pena de Francisco Cândido Xavier, os poetas de que ele é intérprete apresentam as mesmas caraterísticas de inspiração e de expressão que os identificavam neste planeta. Os temas abordados são os que os preocupavam em vida. O gosto é o mesmo. E o verso, obedece, ordinariamente, a mesma pauta musical. Frouxo e ingênuo em Casimiro, largo e sonoro em Castro Alves, sarcástico e variado em Junqueiro, fúnebre e grave em Antero, filosófico e profundo em Augusto dos Anjos - sente-se ao ler cada um dos autores que veio do outro mundo para cantar neste instante, a inclinação do sr. Francisco Cândido Xavier para escrever "À la manière de..." ou para traduzir o queaqueles outros espíritos sopraram ao seu.

Essa identificação será todavia objeto de outro artigo. Por enquanto eu quero, apenas, pôr de sobreaviso os poetas vivos contra o perigo que a todos nos ameaça com a ideia que tiveram os mortos de voltar a escrever neste mundo em boa hora abandonado por eles. Se eles voltam a nos fazer concorrência com os seus versos perante o público e, sobretudo, perante os editores, dispensando-lhes o pagamento de direitos autorais, que destino terão os vivos que lutam, hoje, com tantas e tão poderosas dificuldades?

Quebre pois cada espírito a sua lira na tábua do caixão em que deixou o corpo. Ou, então, encarna-se outra vez, e venha fazer a concorrência aqui em cima da terra, com o feijão e o arroz pela hora da vida.

Do contrário, não vale.

Nota - Transmitido por telefone o "post-scriptum" de ontem saiu errado. Eu havia dito que o sr. Humberto de Campos "me pedia" que divulgasse a notícia do aparecimento do seu livro "O Monstro e outros contos". E saiu que esse autor "pediu" a divulgação da notícia. A supressão do prenome alterou o pensamento de quem ditou a nota. E eu dou esta explicação para fazer a propaganda, outra vez. - H. de C.

(*) Abandoneis toda a esperança, vós que aqui entrais! (Nota do Editor)

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