O TIRANO PICHOT, DA NOVELA QUE REI SOU EU? (1989), ERA UM MENDIGO.
É muito perigoso transformar pobres coitados em líderes absolutos. As pessoas não entendem, carentes que são tanto de lideranças quanto de supostos exemplos de humildade e sabedoria, uma sabedoria "confusa", combinada promiscuamente com a ignorância, criando estereótipos ao mesmo tempo "iletrados" e "sábios", "humildes" mas "decisivos", que agradam muitos.
O sentimentalismo das pessoas é um ponto fraco que permitiu aos chefões da Federação "Espírita" Brasileira, que desde o final do século XIX rasgou todos os ensinamentos de Allan Kardec em prol de um roustanguismo a princípio explícito e entusiasmado e hoje bastante sutil e enrustido, criar um mito em torno de um caipira católico aparentemente ingênuo.
Quem viu, há 25 anos atrás, a novela Que Rei Sou Eu? (1989), da Rede Globo de Televisão, sabe do enredo da transformação de um inocente mendigo, Pichot, no rei Lucien Elán, que seria o suposto herdeiro de Petrus II, portanto destinado a ser Petrus III. Ele havia sido assistido pelo feiticeiro Ravengar (Antônio Abujamra, também prestigiado diretor teatral) para tal transformação.
A novela, do genial criador televisivo Cassiano Gabus Mendes - pai do ator que interpretou Lucien, Tato Gabus Mendes, hoje em plena atividade - , era uma parábola do autoritarismo político e, dizem alguns analistas, era também uma advertência subliminar sobre a Era Collor, já que Lucien parecia imitar os mesmos trejeitos agressivos do dito "caçador de marajás".
Mas o que tem a ver um mendigo que, ajudado por um feiticeiro, tornou-se um terrível tirano, com um caipira mineiro "tão bonzinho" que, sob a ajuda dos "humilíssimos" senhores da FEB, transformou-se num "homem-amor" aparentemente frágil e generoso, cujas frases dóceis são constantemente publicadas nas mídias sociais?
Simples. É a transformação de um pobre coitado em um líder absoluto, o que se torna muito perigoso, por mais que se tente relativizar pelos contextos de "amor e bondade" associados a Chico Xavier. E o seu exemplo tornou-se ainda muito mais traiçoeiro, porque ele passa a dominar sem que se transpareça esse processo de manipulação de corações e mentes.
Francisco Cândido Xavier era, na verdade, um modesto católico caipira que tinha como hábito constante ler livros. Tinha imagens de santo em seus aposentos, mas era dotado de poderes paranormais (hoje superestimados) e sentia um fascínio mórbido por pessoas que morriam antes da velhice, sobretudo por mulheres mortas na flor da idade.
De repente, surgiu o mito do "médium", em que os limitados poderes paranormais de Chico Xavier - que, na prática, se limitavam, fora uma prática aqui e a ali, a dialogar com os espíritos de sua mãe e de um antigo padre jesuíta, que usava o codinome de Emmanuel - eram superestimados e exagerados, enquanto processos bastante duvidosos eram associados à sua pessoa.
Plágios literários, fraudes de materialização, julgamentos moralistas cuja responsabilidade era atribuída a escritores do além, obras sensacionalistas, uma produtividade supostamente ágil que, na verdade, ela elaborada por terceiros (muitos dos livros de CX eram, na verdade, escritos por uma equipe de editores), tudo isso estava por trás do mito "iluminado" de Chico Xavier.
Alimentado pela glamourização de sua imagem, Chico fez fortalecer o seu mito e, de um caipira razoavelmente alfabetizado e despretensioso, ele foi promovido a médium, conselheiro, filósofo, profeta, psicólogo, cientista e filantropo sem ter sequer 1% de todas essas habilidades.
Isso é muito perigoso. De repente boa parte dos julgamentos da humanidade e das previsões dos destinos do Universo foram entregues, de forma tão pedante e leviana, a alguém que, na verdade, nunca teve habilidade alguma para tais competências.
Chico Xavier, pelo mito e pelo carisma que obteve, passou a ser considerado por seus seguidores como alguém acima de tudo na humanidade, uma pessoa que pode errar e ser considerada perfeita, que pode hesitar e ser considerada líder, que pode cometer erros sérios e ainda assim ficar com última palavra.
Ele é a personificação de toda uma crise de valores em que se encontra o Brasil, incapaz de conciliar valores modernos e antigos de forma coerente e equilibrada, preferindo apostar numa confusa junção de valores retrógrados e o que há de pior nos valores novos, combinando moralismo severo com libertinagem.
Não por acaso, a atriz que interpretou, no cinema, o espírito da mãe de Chico Xavier, a também mineira Letícia Sabatella, se embriagou até cair no chão e virou uma quase unanimidade, pois, em vez dela se arrepender e ser perdoada pelo erro, transformou-o em "bandeira de luta" e houve gente que até fez um "deitaço" se manifestando em sua solidariedade.
Sim, a atriz carismática que se embriaga até cair e é apoiada por isso tem tudo a ver com o anti-médium que é ligado a erros, fraudes e deturpações, mas é considerado "espírito puro" o qual ninguém quer tirar do pedestal, e isso reflete o país confuso que alguns querem ser o "coração do mundo" a comandar "a comunidade das nações".
De nada adiantou transformar Chico Xavier num homem de "mil e uma utilidades", já que seu exemplo em nada contribuiu para o avanço da sociedade brasileira, mesmo aquela que se proclama "espírita", e o máximo que ele fez foi apenas adocicar os corações de seus seguidores com o açúcar de suas palavras escritas em doses diabéticas.
Na medida em que se atribui a ele habilidades que não lhe foram próprias, cria-se um perigoso mecanismo de subordinação da humanidade a seu sistema de valores conservadores, moralistas e extremamente místicos e dogmáticos, que mais entravam do que impulsionam o progresso social e moral de homens e mulheres.
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