domingo, 21 de fevereiro de 2016

De Leopoldo Machado a Juliano Pozati: longo caminho de uma patriotada religiosa

LEOPOLDO MACHADO E JULIANO POZATI - Em diferentes tempos, a mesma desculpa do Brasil como "coração do mundo".

O "movimento espírita" sempre se apoiou na patriotada religiosa. A ideia de ver o Brasil liderando uma "missão de amor e fraternidade" a outros povos do planeta, está descrita até mesmo num poema em 1932 que Francisco Cândido Xavier atribuiu a Olavo Bilac, mas que não condiz ao estilo deste, no livro Parnaso de Além-Túmulo.

A pretensa "profecia" de Chico Xavier, de que uma nova era planetária surgiria e o Brasil seria o centro de irradiação de "novas energias espirituais", na verdade percorreu um longo caminho. Descontando o poema do pseudo-Olavo Bilac, que poderia "morrer" ali mesmo, na paródia do ufanismo do escritor fundador da Academia Brasileira de Letras, que também teve Humberto de Campos como membro, a "bandeira" do "Brasil Coração do Mundo" tem 82 anos.

Afinal, foi a partir de um discurso do dirigente "espírita" Leopoldo Machado, realizado em 09 de setembro de 1934, que se iniciou um caminho que resultou, atualmente, no livro Data-Limite Segundo Chico Xavier, de Juliano Pozati e Rebeca Casagrande, co-produtores do documentário homônimo de Fábio Medeiros.

Isso mostra os sucessivos subprodutos de uma campanha ufanista-religiosa, que nem de longe pode ser considerada relevante ou séria, até por contrariar os ensinamentos de Allan Kardec, que nunca iria determinar uma pátria ou uma data determinada para o anúncio de novas eras planetárias.

O discurso de Leopoldo Machado, intitulado "Brasil, Berço da Humanidade, Pátria dos Evangelhos", foi lido numa conferência da Federação "Espírita Brasileira", na referida data de 1934, e um trecho remete à ideia do Brasil como um país comandando o planeta:

"Irmãos meus em humanidade e provações terrenas, Jesus ilumine os nossos Espíritos, cristianize os vossos corações. (…)

A despeito de assim pensarmos, de sentirmos assim, não sabemos, de nossa parte, por que singular preferência de nosso espirito, porque sentimos congênito e secreto de nosso coração, queremos mais, muito mais, ao Brasil, a porção maravilhosa do Planeta em que tivemos a dita de nascer! E a nossa alma vibra, malgrado, ás vezes, ao nosso desejo, por tudo o que é brasileiro, que fala do Brasil. Sentimos que amamos á terra que nos é berço com um amor que é, talvez, a maior manifestação emotiva do nosso espírito. Este amor, em nós, é, porém, muito diferente desse jacobinismo, desses bairrismos por aí campeantes, que procuram, vangloriosos, que pensam, exclusivistas, que tudo de grande, de bom, de belo, de maravilhoso se restringe ou se deve restringir, só se contém ou se deve conter a dentro das fronteiras de sua Pátria! Nosso amor ao Brasil é o de quem sente e sabe a sua Pátria destinada a desempenhar uma gloriosa e providencial função dentro da Vida. É o afeto de quem sente e sabe que o Senhor de Todas as Coisas confiou á sua terra a mais bela função, que um povo e uma nacionalidade podem desempenhar, qual a de serem verdadeiros intérpretes da Doutrina luz, amor e verdade, emanada dos Evangelhos de Jesus! (…) "

Em seguida, veio um subproduto dessa retórica ufanista, produzido em 1937 e 1938 e daí então lançado, o livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, uma colcha de retalhos com plágios e pastiches diversos, que Chico Xavier e o presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, escreveram a quatro mãos, usando tendenciosamente o nome do falecido Humberto de Campos. O trecho copiado do discurso de Leopoldo é este:

"Meus caros filhos. Venho falar-vos do trabalho em que agora colaborais com o nosso amigo desencarnado, no sentido de esclarecer as origens remotas da formação da Pátria do Evangelho a que tantas vezes nos referimos em nossos diversos comunicados. O nosso irmão Humberto tem, nesse assunto, largo campo de trabalho a percorrer, com as suas facilidades de expressão e com o espírito de simpatia de que dispõe, como escritor, em face da mentalidade geral do Brasil. (…)

O Brasil não está somente destinado a suprir as necessidades materiais dos povos mais pobres do planeta, mas, também, a facultar ao mundo inteiro uma expressão consoladora de crença e de fé raciocinada e a ser o maior celeiro de claridades espirituais do orbe inteiro. (…)

Se outros povos atestaram o progresso, pelas expressões materializadas e transitórias, o Brasil terá a sua expressão imortal na vida do espírito, representando a fonte de um pensamento novo, sem as ideologias de separatividade, e inundando todos os campos das atividades humanas com uma nova luz."

Juntando a "previsão" de que o Brasil "está destinado" a ser uma nação central do planeta, há tambem o tal anúncio da "terceira reunião" de Jesus Cristo com as maiores lideranças do universo, assistidas por Chico Xavier (!) e também por Emmanuel, que, ditando a seu subordinado de Pedro Leopoldo, pregou o seguinte no livro A Caminho da Luz, de 1939:

"CAPÍTULO I - A GÊNESE PLANETÁRIA - A Comunidade dos Espíritos Puros

Rezam as tradições do mundo espiritual que na direção de todos os fenômenos, do nosso sistema, existe uma Comunidade de Espíritos Puros e Eleitos pelo Senhor Supremo do Universo, em cujas mãos se conservam as rédeas diretoras da vida de todas as coletividades planetárias. Essa Comunidade de seres angélicos e perfeitos, da qual é Jesus um dos membros divinos, ao que nos foi dado saber, apenas já se reuniu, nas proximidades da Terra, para a solução de problemas decisivos da organização e da direção do nosso planeta, por duas vezes no curso os milênios conhecidos.

A primeira, verificou-se quando o orbe terrestre se desprendia da nebulosa solar, a fim de que se lançassem, no Tempo e no Espaço, as balizas do nosso sistema cosmogônico e os pródromos da vida na matéria em ignição, do planeta, e a segunda, quando se decidia a vinda do Senhor à face da Terra, trazendo à família humana a lição imortal do seu Evangelho de amor e redenção.

CAPÍTULO XXIV - O ESPIRITISMO (SIC) E AS GRANDES TRANSIÇÕES - Jesus

Espíritos abnegados e esclarecidos falam-nos de uma nova reunião da comunidade das potências angélicas do sistema solar, da qual é Jesus um dos membros divinos. Reunir-se-á, de novo, a sociedade celeste, pela terceira vez, na atmosfera terrestre, desde que o Cristo recebeu a sagrada missão de abraçar e redimir a nossa  Humanidade, decidindo novamente sobre os destinos do nosso mundo. Que resultará desse conclave dos Anjos do Infinito? Deus o sabe. Nas grandes transições do século que passa, aguardemos o seu amor e a sua misericórdia."

E aí vemos Chico Xavier dando um depoimento para a Legião da Boa Vontade - religião ecumênica que aposta numa espécie de "caridade-ostentação", ou seja, transforma a filantropia num exibicionismo publicitário - , em 05 de janeiro de 1954 e publicado na quarta edição (ano I) da Revista da Boa Vontade de outubro de 1956, e que já fala na mesma predestinação da "fraternidade da Terra". 

Nesse trecho não cita a "missão" do Brasil, mas isso fica latente no depoimento, que acrescenta a vinda de ETs criando, junto com os livros acima citados, o "roteiro" de "previsões" para a "data-limite" de 2019:

"Cabe-nos, então, sentir e, mais ainda, reconhecer que os fenômenos da vida moderna e as modificações a que o nosso habitat terreal vem apresentando nos indicam a vizinhança de atividades renovadoras de considerável extensão.

Daí esse afeito de revelações, de vida extraterrestre, incluído sobre as cogitações dos homens; esses apelos reiterados do mundo dos espíritos; essa manifestação ostensiva, daqueles que, supostamente mortos na Terra, estão vivos na eternidade, companheiros dos homens em outras faixas vibratórias do campo em que a humanidade evolui.

Se não entrarmos numa guerra de exterminio nos próximos 50 anos, então, nós podemos esperar realizações extraordinárias da ciência humana partindo da Terra."

A partir de tudo isso, Chico Xavier criou um "roteiro" que mais parece uma novela. E foi dada numa conversa com Geraldo Lemos Neto, pouco depois do "médium" mineiro ter um sonho após saber da notícia da viagem de astronautas da NASA (agência espacial estadunidense) para a Lua, em 1969.

Segundo esse sonho, Chico Xavier, que estava presente na tal "terceira reunião" anunciada por Emmanuel, observava Jesus Cristo (um "líder do universo" que de início não sabia onde ficava o Brasil!) discutir com as grandes lideranças cósmicas o risco de uma nova guerra nuclear simbolizado pela corrida espacial entre EUA e URSS (era o tempo da guerra fria).

Aí, houve a constatação dos reunidos de que a Terra teria uma moratória de 50 anos, a partir daquele dia de 1969. Se as grandes nações desistirem de criar uma guerra nuclear - a chamada "terceira guerra mundial" - e os terroristas do Oriente Médio pararem de fazer sua carnificina, a humanidade entrará numa era de "muito amor e fraternidade".

Caso a guerra e o terrorismo não forem evitados, no concluir do prazo da "data-limite", Deus castigará os malcriados do "velho mundo" com as piores catástrofes naturais, que farão o Hemisfério Norte se tornar uma região inabitável. Vulcões explodirão em lavas, terremotos rasgarão ruas, ondas gigantescas soterrarão metrópoles, trovões irão eletrocutar celebridades e intelectuais aqui e ali, enchentes afogarão tudo quanto é multidão na América do Norte, Europa, Ásia e norte da África.

Não sobrará Hollywood para contar história e, além disso, o Círculo de Fogo do Pacífico, que naturalmente atingiria o Chile com tanta voracidade que o Japão e a Califórnia, não se sabe por que cargas d'água irá poupar o país sul-americano, como se as catástrofes, normalmente imprevisíveis e sem considerar limites imaginários de meridianos e trópicos, respeitassem a linha do Equador. Um trecho do relato de Chico Xavier a Geraldo Lemos Neto:

"Caso a humanidade encarnada decida seguir o infeliz caminho da III Guerra mundial, uma guerra nuclear de consequências imprevisíveis e desastrosas, aí então a própria mãe Terra, sob os auspícios da Vida Maior, reagirá com violência imprevista pelos nossos homens de ciência. O homem começaria a III Guerra, mas quem iria terminá-la seriam as forças telúricas da natureza, da própria Terra cansada dos desmandos humanos, e seríamos defrontados então com terremotos gigantescos; maremotos e ondas (tsunamis) consequentes; veríamos a explosão de vulcões há muito extintos; enfrentaríamos degelos arrasadores que avassalariam os povos do globo com trágicos resultados para as zonas costeiras, devido à elevação dos mares; e, neste caso, as cinzas vulcânicas associadas às irradiações nucleares nefastas acabariam por tomar totalmente inabitável todo o Hemisfério Norte de nosso globo terrestre".

Antes de voltarmos a Lemos Neto, citaremos o que Chico Xavier disse na entrevista no programa Pinga-Fogo, da TV Tupi de São Paulo, a respeito da tal "profecia" e da "moratória de 50 anos" que teria a Terra para desistir de conflitos bélicos de grande envergadura:

"Se os países mais cultos do globo puderem suportar a pressão dos seus próprios problemas, sem entrar em choques destrutivos, como, por exemplo: guerras de extermínio, que deixarão conseqüências imprevisíveis para nós todos no planeta, então veremos uma era extraordinariamente maravilhosa".

Aí, vemos que o relato de Geraldo Lemos Neto foi divulgado em 1986 e virou livro em 2011, chamado Não Será em 2012, em parceria com Marlene Nobre, que havia feito entrevista com Geraldo. e aí o grande público teve conhecimento das "profecias" de Chico Xavier, falecido em 2002 no dia em que os brasileiros (leia-se os dirigentes esportivos da CBF e FIFA) "estavam muito felizes".

Em 2014, Fábio Medeiros e sua equipe - como a dupla Juliano e Rebeca, co-produtores - fizeram o documentário Data-Limite Segundo Chico Xavier, uma abordagem pseudocientífica das pregações igrejistas e catastrofistas do anti-médium mineiro, entrevistando várias personalidades, inclusive um Divaldo Franco que adora pseudociência e delírios místicos e esotéricos aqui e ali.

E aí, este ano, veio o livro com o mesmo título do documentário, escrito em maior parte por Juliano Pozati, mas com a colaboração de Rebeca Casagrande. que tem muito mais enrolação e empulhação em 350 páginas onde há muita pregação pseudocientífica e corroboração das mistificações "espíritas" de sempre.

E aí vemos esse longo caminho em que se construiu uma novelinha na qual a Terra passaria por guerras e catástrofes e, depois, com o planeta em boa parte destruído - leia-se "boa parte" no sentido qualitativo, com a longa experiência do "velho mundo" reduzida a cinzas e ruínas - , surgiria tolamente o Brasil para promover "amor e fraternidade" através do Evangelho, comandando o planeta através desse instrumento bíblico.

Tudo isso se resume a uma só ideia: moralismo igrejista. Junta-se a ojeriza em relação aos progressos do "velho mundo", experiente e independente de delírios religiosos (há muito superados em vários de seus países), um delírio pseudocientífico aqui e ali, um deslumbramento religioso e um ufanismo de ver o Brasil liderando qualquer coisa. O que, em tempos de crise, é impossível de se acontecer.

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