sábado, 27 de fevereiro de 2016

Bondade de Chico Xavier não passou de uma jogada de marketing


Muitos brasileiros têm que deixar de ser infantis e enfrentar certos problemas. O dado surreal da obsessão de muitas pessoas por Chico Xavier é uma aberração emocional que cria posturas insólitas e absurdas, que poderiam muito bem estar em algum filme de Luís Buñuel.

O apego extremado a um ídolo religioso, como é, até hoje, mesmo postumamente, o anti-médium de Minas Gerais, faz com que certas pessoas acreditem em recuperar as bases doutrinárias kardecianas e deixar Francisco Cândido Xavier e Divaldo Franco no pedestal, mesmo que seja para enfeite.

Há também uma boa parcela de brasileiros ateus - ou ao menos que se dizem "ateus, graças a Deus" - que se irritam quando se fala uma vírgula contra o mito de Chico Xavier, sem saber que ele era um dos piores opositores do ateísmo, embora dele se atribui uma estória muito "simpática".

Consta-se que uma pessoa se dirigiu a Chico Xavier e disse que não acreditava em Deus. Com aparente benevolência, o anti-médium, a essas alturas promovido a ídolo máximo pelas graças da Rede Globo de Televisão, respondeu, calmamente: "Não faz mal. Deus acredita em você".

Imaginamos que felicidade é essa de uma parcela de "ateus, graças a Deus" que defendem tanto Chico Xavier e vão para a cama felizes porque um ente no qual dizem não acreditar está apoiando eles. Parecem uns patetas. Christopher Hitchens deve estar se agitando no além.

Os kardecianos autênticos, mas de firmeza frágil, como boas sementes jogadas em terrenos estéreis, e que se limitam apenas a dizer que o "movimento espírita" leu mal os textos de Allan Kardec, são complacentes com o mito de Chico Xavier e pensam que ele havia sido vítima das manobras da Federação "Espírita" Brasileira e acham que ele "pode ser aproveitado" com a recuperação das bases doutrinárias.

Isso é um contrasenso, afinal Chico Xavier sempre foi um católico, beato e ortodoxo em ideias e só diferia na paranormalidade. Há kardecianos autênticos que se contradizem, dizendo que Chico Xavier nunca foi espírita para entender bem a obra de Kardec e, depois, dizer que o "médium" mineiro poderia ter sido um seguidor genuíno do professor francês, "só faltando oportunidade".

UM "LULA" ÀS AVESSAS

É a doutrina da contradição. E, em tempos em que a Operação Lava-Jato tem seu momento "caça às bruxas", querendo criminalizar o ex-presidente Lula de qualquer maneira, considerando qualquer passeio inocente que o petista fizer como um "ato criminoso de roubo do dinheiro público", a complacência em torno de Chico Xavier ocorre em dimensões estratosféricas.

Como um "Lula" às avessas, Chico Xavier, mesmo nos seus mais graves erros, é aceito e respeitado até de forma injustificada. São dois pesos e duas medidas. Lula "comete crime" até quando viaja para Pernambuco visitar parentes e amigos de infância. Chico é inocentado até quando expõe, de forma leviana, as tragédias familiares para servir ao apetite voraz da predadora imprensa sensacionalista.

Isso envolve um jogo de aparências. Os julgamentos moralistas das pessoas, bastante contraditórias - consentem tanto com na leitura de medíocres livros religiosos quanto nas fotos forçadamente sensuais de Mulher Melão, Solange Gomes e similares - , também movem a concepção de estereótipos pessoais que nem sempre correspondem à realidade, mas servem a concepções ideológicas que mostram o que se entende como "bem" ou "mal" numa sociedade maniqueísta como a nossa.

Chico Xavier foi um "caipira simpático", que depois virou um "velhinho frágil", quando a empresa do jornalista Roberto Marinho decidiu "vestir a camisa" da fabricação de um mito religioso aos moldes que Malcolm Muggeridge fez com Madre Teresa de Calcutá.

Já Luís Inácio Lula da Silva tem o estereótipo do antigo operário gordo mas robusto, de jeito enérgico, algo que a chamada "boa sociedade" define como "brutamontes". Há quem faça analogia de Lula ao Brutus, o vilão das estórias de Popeye, o marinheiro popular da cultura infanto-juvenil, sobretudo o dos desenhos animados de 1960-1962 em que o vilão, geralmente um fortão musculoso, foi alterado para ser um gordo bonachão.

Movidos pelas aparências, ninguém vai condenar um "velhinho frágil" de ser plagiador de livros, explorador das tragédias alheias e responsável por fraudes na mediunidade. Mas são as mesmas pessoas que caluniam gratuitamente um "operário robusto" que, com todos os defeitos, pelo menos tentou aumentar a qualidade de vida de brasileiros que viviam no lado de baixo da pirâmide social.

A ESPERTEZA DE WANTUIL

Repetindo. As pessoas deveriam deixar de ser infantis e parar de crer num "médium" de contos-de-fadas, nesse fanatismo chiquista doentio e viciado. A "bondade" que tanto se fala de Chico Xavier nunca passou de uma jogada de marketing, de início fruto da esperteza obstinada de Antônio Wantuil de Freitas, presidente da Federação "Espírita" Brasileira, e depois fruto de uma parceria publicitária da FEB e da Rede Globo para promover um ídolo religioso.

É só observar os aspectos históricos. Chico Xavier nunca foi mais do que um esquisito paranormal que poderia muito bem "repousar" nos almanaques sobre curiosidades pitorescas, e tratado como atração exótica pelo sensacionalismo jornalístico.

Como Chico Xavier era um vendedor de livros habilidoso, Wantuil, membro da roustanguista FEB e "mentor" terreno de Chico Xavier, sempre mexeu as peças para promover seu pupilo como um "caridoso", com a imagem construída de "porta-voz dos mortos".

Isso gerava problemas, porque, observando com muita cautela e isenção, sem as paixões do deslumbramento religioso, as mensagens atribuídas aos espíritos de autores mortos realmente destoavam, até de maneira grosseira, dos estilos que esses autores deixaram em vida.

Humberto de Campos é o exemplo mais ilustrativo disso. Nada de seu estilo pessoal, a não ser certos artifícios de semelhança - quando o falso tenta parecer verdadeiro - , foi observado nos textos "espirituais" trazidos por Chico Xavier. Nada.

Em vez do escritor de texto fluente, um neoparnasiano quase modernista com seus textos cultos mas acessíveis e coloquiais, Humberto de Campos "aparecia" escrevendo de forma rebuscada mas grosseira, com sérios vícios de linguagem, com um texto pesado para se ler e bastante melancólico, que em vez de falar da realidade cultural de seu tempo, apelava para um igrejismo extremado e demodê, coisa que Humberto, que era ateu, não seria capaz de escrever.

Chico Xavier causou escândalos gravíssimos. Coisa de gente irresponsável, mesmo. Pastiches literários que causavam preocupação nos meios intelectuais mais sérios. E Chico Xavier forjava atestados "legitimando" fraudes de materialização diversos.

Wantuil tentou abafar os escândalos da maneira que pôde. Dizem que ele fez até mandinga para isso, já que, em 1953, o presidente da FEB fazia consultas de pais-de-santo para "limpar" o caminho dele e de seus relacionados, constatação baseada no estranho flerte que Wantuil teve com a umbanda, denunciada pelos críticos sérios da deturpação espírita.

Aí houve o afastamento dos contestadores severos - Attila Paes Barreto e Osório Borba se "perderam" no tempo e suas contestações sobre a "mediunidade" de Chico Xavier "morreram" no passar dos anos - , e uma provável "queima de arquivo" contra o sobrinho Amauri Xavier, que iria denunciar as irregularidades da FEB e, por isso, o jovem foi vítima de campanha difamatória do "movimento espírita", teria sido agredido em um sanatório e depois teria morrido envenenado.

A esperteza sem limites de Wantuil só não foi total no caso de Otília Diogo porque o presidente da FEB, muito doente, acabou deixando o cargo, mas a malandragem de dizer que "cúmplice não é culpado" que livrou Chico Xavier de responsabilidade pela farsa, apesar dos fortes indícios de que o "médium" apoiou a fraude do começo ao fim, tentou sustentar o mito, sobretudo quando, um ano após o desfecho em 1970, Chico foi convidado a dar entrevista para um programa de TV.

Quando a TV Tupi de São Paulo, em 1971, transmitiu o programa Pinga-Fogo na edição com Chico Xavier - é bom deixar claro que o programa não era "espírita" e se tratava de um programa de entrevistas comum que a TV Tupi produzia desde os anos 1950 - , o mito do "médium" mineiro começava a ser reconstruído através de um misto de "conselheiro" e "filantropo".

Aí, pronto. A revista O Cruzeiro, que sempre foi hostil a Chico Xavier, decidiu tê-lo como "colaborador". A TV Tupi, que sempre teve o "médium" em boa conta - astros da "casa" como Nair Bello, Ana Rosa e o diretor Augusto César Vannucci eram admiradores e amigos - , fez até uma novela "espírita" inspirada em Nosso Lar, a obra A Viagem, de Ivani Ribeiro.

E o que deram as "boas energias" dos Diários Associados? Na crise financeira que abateu a empresa e fez ela se desfazer tanto da TV Tupi quanto da revista O Cruzeiro. A TV Tupi faliu em 1980, depois de tantos atrasos nos pagamentos dos funcionários (os amigos de Chico Xavier podiam pelo menos ter remunerado os funcionários com "luz", não é mesmo?).

Já a revista mudou seu padrão gráfico e sua linha editorial para uma inexpressiva revista de informação geral, quase uma clone piorada de Visão, com páginas que também lembram aquelas seções de informação geral de revistas pornográficas como Homem e Ele Ela.

O que a FEB fez, então? Foi fazer parceria com a Rede Globo que, tomando conhecimento do documentário Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), que Malcolm Muggeridge fez para a BBC a respeito de Madre Teresa de Calcutá, estabeleceu os novos moldes para promover o mito de "bondade" que o cidadão comum tanto acredita residir em Chico Xavier.

"BONDADE" DUVIDOSA

O roteiro de Muggeridge foi bem construído. O "filantropo" chega a uma comunidade carente ou para alguma instituição religiosa. É acolhido pela multidão. O "filantropo" fala com velhos miseráveis. Pega bebês no colo. Olha para doentes prostrados na cama. Põe a mão na cabeça de um deles. Acaricia criancinhas tomando uma sopinha, geralmente aguada e insossa. Acolhe fileiras de pessoas que vieram cumprimentar o "filantropo".

Junto a isso, também vieram frases de efeito, vendidas como se fossem "lições de sabedoria". Ilustrações com céu azul e sol brilhante serviam de fundo para inserir as imagens dos "filantropos" com tais frases ou com epítetos relacionados a ideias de "amor" e "caridade".

Madre Teresa de Calcutá e Chico Xavier tornaram-se mitos religiosos bem parecidos. A ideia de alma-gêmea é improcedente, mas se ela existisse, envolveria esses dois. Oficialmente não se reconhece Chico Xavier como adepto da Teologia do Sofrimento (aquela que define que suportar desgraças é um "caminho para Deus"), mas ele foi um de seus seguidores mais extremados.

Madre Teresa foi acusada de praticar a Teologia do Sofrimento ao deixar os doentes à mercê das próprias desgraças, mandando suas ajudantes resolver os flagelos apenas com analgésicos como aspirina e paracetamol. Christopher Hitchens acusava a freira de não confortar os aflitos e, por outro lado, não afligir os confortáveis.

Ele investigou e descobriu que Madre Teresa desviava dinheiro para os cofres pessoais dos sacerdotes do Vaticano, ela se aliava a políticos tiranos e magnatas corruptos para obter esse dinheiro, enquanto os doentes e desamparados eram deixados sem higiene, se contaminando, uns aos outros, e recebendo injeções de seringas já usadas e só "lavadas" com água de torneira, que não é lá esse primor de limpeza.

E a "bondade" de Chico Xavier? Será que ela existiu mesmo? Ele defendeu a ditadura militar no momento em que ela se mostrava mais cruel. Até Alceu Amoroso Lima e Carlos Lacerda (o mais histérico defensor do golpe de 1964) estavam na oposição ao regime, quando Chico pedia para orarmos pelos torturadores e assassinos que, no dizer do "bondoso médium", estavam construindo o "reino de amor" do futuro.

Chico Xavier havia acusado, num livro, as humildes vítimas do incêndio em um circo de Niterói de terem sido romanos sanguinários, e ainda botou tal acusação, bastante perversa, na responsabilidade de Humberto de Campos. Uma dupla crueldade de um "homem perfeitamente bom".

Chico Xavier não cobrava dinheiro e recusava cachê e faturamento pelos livros vendidos. Será? Mas ele transferiu todo o lucro dos seus livros para os cofres da FEB, e seus dirigentes se enriqueceram com isso, sobretudo Wantuil, um verdadeiro tirano e magnata da federação.

E as famílias que perderam entes queridos? Além delas terem sido enganadas pela suposta psicografia de Chico Xavier, que forjava o mesmo estilo de mensagem atribuindo a espíritos diferentes, mas sob a caligrafia e os apelos igrejistas do "médium", elas eram superexpostas à exploração sensacionalista de suas tragédias, ao sabor do propagandismo religioso.

São "bondades" nada bondosas, que o deslumbramento religioso, o fanatismo e a cegueira da fé acobertam com o véu da obsessão e do apego a um ídolo religioso, da parte de pessoas que não podem ser felizes e bondosas por conta própria, e que precisam de uma personificação material da "bondade", através da imagem de um "velhinho frágil".

A "bondade" de Chico Xavier, a exemplo de casos como o do apresentador Luciano Huck nos últimos anos, não passa de uma jogada de marketing que o mercado religioso e o poder midiático articulam para dominar as pessoas. E faz muito sentido esse mito de "bondade" de Chico Xavier ter sido reforçado na época da crise da ditadura militar, criando uma figura "filantrópica" para intimidar a população, evitando a mobilização popular e subordinando o povo ao fanatismo religioso.

Em nome desse estereótipo do "bom velhinho frágil", se consente em tudo: mentir, realizar fraudes, explorar as pessoas, desde que seja "bonzinho". Não importa lógica, não importa ética, não importa coerência nem bom senso. As pessoas acreditam que, pela ideia de que o "amor", em tese, "pode tudo", acham possível a bondade ser desonesta, ilógica e surreal. Quanta ingenuidade.

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