quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A camponesa e o pistoleiro


Havia, há trinta anos, uma jovem e bela camponesa e um jovem pistoleiro de aluguel. São vidas que não se encontram, não têm a menor relação uma com a outra, mas que aparecem juntas nesta narrativa a título de comparação.

A jovem, filha de um casal de pequenos plantadores de legumes e verduras que era também dono de um pequeno armazém numa cidade próxima, no interior. Bela, jovial, sensível e atraente, era também muito alegre e bastante espirituosa e gentil com quem ela tivesse contato. A menina era também muito inteligente e já sonhava em ser professora.

O jovem, um rapaz a serviço de grandes proprietários de terras, capaz de eliminar até padres que se voltem contra o poder dos grandes latifundiários da região. Havia sido preso várias vezes e recebido várias condenações criminais, mas o poder da região sempre dava um jeito para soltar o capanga e garantir que ele responda pelos seus crimes "em liberdade".

Nessa época, a moça tinha 21 anos e o rapaz, 27. Pareciam típicas figuras do interior do país, nessa contraditória situação em que há pessoas bastante gentis e queridas e outras bastante ameaçadoras e abomináveis.

De repente, num espaço de dois anos, a camponesa descobriu que tinha um grave problema cardíaco, que se agravou até que, em 1989, ela, em casa, deitada no quarto, com apenas 25 anos de idade, chamou os pais e os irmãos mais novos para fazer sua última conversa.

Ao anoitecer, a menina ainda ficou a sós com sua mãe, tendo uma conversa bastante longa e particular. A mãe beijou a testa da filha que, muito frágil, parecia apenas estar cansada e com vontade de dormir. Mas, assim que se despediram, a menina fechou os olhos e o coração parou. Ela havia morrido.

Nessa época, o pistoleiro, que dois meses antes havia participado da execução de um sindicalista, havia tomado um aguardente e comido um pastel delicioso, mas cujo preparo era feito pelo cozinheiro que, por ignorância, mexeu com o alimento com as mãos sujas de pano de chão. Por incrível que pareça, ele não queria matar o pistoleiro, agiu por ignorância, mesmo.

Aparentemente, o pistoleiro apenas teve uma intoxicação alimentar, que o fez vomitar e ficar de cama. Recuperou-se em cinco dias. E nenhum rancor ocorreu porque, para ele, isso ocorria várias vezes, e ele e o cozinheiro eram muito amigos. O pistoleiro já estava acostumado, acreditava ser excesso de pinga que o fazia passar mal de vez em quando. Estava até tranquilo com isso.

A VERSÃO DOS "ESPÍRITAS"

Quanto ao desfecho desses episódios, os "espíritas" fazem a sua interpretação, com base nos valores que eles aprenderam através de Chico Xavier e derivados, dentro de uma concepção de sociedade e de missões morais e punitivas.

Para eles, a menina morreu de causas naturais. Mesmo muito jovem, com apenas 25 anos, e uma atividade ainda iniciante e prematura de professora primária, ela teria, aos olhos dos "espíritas", encerrado sua missão.

Desse modo, ela foi apenas um belo cometa que passou pela vida de seus familiares para trazer um pouco de alegria e depois ir embora. A menina simplesmente faleceu porque "chegou sua hora" e ela passou a ser um anjinho a mais a enfeitar o céu iluminado.

Já o pistoleiro, os "espíritas" garantem que ele era forte e saudável e pode ter se tornado um novo fazendeiro. Com 57 anos, creem que ele pareceria robusto, mas sereno, embora envelhecido e barrigudo, levando adiante seus planos de vida e se aposentando da pistolagem, por não haver mais necessidade disso, já que se tornou tão latifundiário quanto seus antigos patrões.

O pistoleiro teria uma "longa vida de expiações" pela frente, não se sabe como, e ele apenas teve como atenuante a ideia de que a pistolagem serviu para promover "reajustes espirituais" para as vítimas, antigos sanguinários que "retornaram" para enfrentar a tragédia repentina que teriam ordenado para outras vítimas, nos tempos do Império Romano.

A REALIDADE

A camponesa já não era membro de uma família saudável. Seus pais fumavam muito, e sua mãe ainda fumava durante a gravidez, o que fez a menina nascer com uma certa fragilidade. E a jovem sempre conviveu respirando fumo ao redor, embora ela não quisesse fumar por conta própria.

Pouco antes de contrair uma grave infecção, ela levou sua avó para um hospital público. Com muita gente na espera de atendimento, com poucos médicos em serviço, o local, além de causar estresse pela turbulência da multidão de gente pobre e inquieta, ainda não havia muito cuidado com a higiene.

Desse modo, quando a camponesa levou sua avó para o sanitário, passaram por uma sala que estava não apenas infectada com mofo tóxico como também por uma perigosa bactéria que a falta de higiene de um enfermeiro acabou contaminando, ao tocar nos objetos do recinto.

A avó contraiu uma infecção gravíssima e faleceu um dia após a internação, diante de uma jovem suada e estressada com aquela rotina de longas esperas, superlotação e barulho e falta de médicos, depois de tantas horas esperando atendimento e apenas lanchando um pastel com refresco no quiosque mais próximo.

Com o tempo, o corpo já frágil da jovem sofreria os males da infecção, sem que ela soubesse qual e onde contraiu. Pela religiosidade e pelos mitos católicos, a jovem achava que tinha que ter vida curta, e que seu falecimento prematuro era apenas um chamado urgente de Jesus, quando a realidade mostra que ela morreu por uma combinação de males vindos da falta de higiene e do fumo alheio.

Já o pistoleiro faleceu aos 43 anos de idade, em 2001. Com histórico de bebida alcoólica e alimentação deficitária, com o consumo de alimentos gordurosos, ele havia contraído doenças graves de tanta intoxicação alimentar. Não chegou a ser fazendeiro, embora começasse a viver com uma mulher e a ter dois filhos com ela.

Ele estava lendo o jornal do dia, quando se sentiu mal e pediu à mulher para que o levasse para um hospital, curiosamente o mesmo em que a camponesa levou a avó, muitos anos antes. Ele não sofreu com a infecção hospitalar, porque nesse dia o recinto estava limpo, e também não havia a superlotação porque, então, era um dia de pouco movimento. Era uma tarde de domingo.

Ele imaginava que era apenas mais uma intoxicação, embora tenha almoçado um prato mais saudável com feijão, arroz, bife e salada. Mas as dores apenas aumentaram. Sentia não só problema no fígado e no estômago, mas também uma dor no coração.

Além disso, ele estava envelhecido para seus 43 anos. Parecia ter 23 a mais, embora estivesse ainda magro e esguio. sua pele estava áspera e o rosto embrutecido. Internado no final da tarde, ele faleceu assim que a noite chegou. A vida da viúva só não se complicou porque ela tinha seu trabalho de costureira e lavadeira, que lhe dava uma renda que possibilitava viver com dignidade.

A morte da camponesa foi modestamente anunciada pelo jornal da região, em meados de 1989, Era apenas um pequeno anúncio, envolto em retângulo, convidando para o velório da jovem. Já a morte do pistoleiro, em 2001, nunca foi noticiada pela imprensa, apesar dele ter tido seu corpo cremado por ordem de um grande fazendeiro da região.

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