terça-feira, 30 de setembro de 2014

O mórbido culto do "espiritismo" brasileiro aos jovens mortos


Poucos percebem, mas o "espiritismo" brasileiro tem um sentimento sado-masoquista pela tragédia de entes queridos. Um certo prazer pelo sofrimento alheio, algo bastante sádico na abordagem das mortes de outras pessoas, geralmente belas e jovens, e um certo masoquismo na glamourização das tristezas geradas por essas ocorrências.

"Viva intensamente e morra jovem", costuma ser a cartilha do espetáculo trágico da cultura do entretenimento. O "espiritismo" brasileiro dá sua versão: "viva maravilhosamente e morra jovem", mal disfarçando sua ânsia de promover um sensacionalismo místico e religioso em prol dos jovens mortos.

A juventude transformada numa fase final da vida. Os filhos perecidos. Os pais órfãos de filhos. Esse verdadeiro culto aos jovens mortos, que alimentou o estrelismo de anti-médiuns e um certo sadismo moralista dos dirigentes "espíritas", cria uma indústria de pieguices e uma hipócrita evocação da vida após morte às custas dessas tragédias encaradas sob sorrisos muito mal dissimulados.

"Quanto mais você sofre, mais bênçãos você atrai para a vida futura", diz a ideologia "espírita", tal como feita no Brasil. E isso ignorando tantas dores, tantos prantos, sofridos pelos entes queridos, tratados feito gato e sapato pelos anti-médiuns "espíritas" e por palestrantes com muito mel nas palavras e um oculto fel no coração.

Ignoram esses "espíritas" o quanto tais tragédias interrompem muitos projetos de vida, muitos planos e desejos, que acabam sendo irreparavelmente comprometidos, mesmo quando existe a consciência da vida espiritual, da vida eterna e da reencarnação.

Isso porque a reencarnação não é igual a outra. Existem várias vidas carnais, mas cada uma dessas vidas é única, pelo contexto social, geográfico, cultural etc etc em que se vive. Se alguém tem um projeto de vida e morre cedo, sem realizá-lo, não poderá realizar, na próxima encarnação, esse mesmo projeto da maneira que desejou. Quando muito, terá que adaptá-lo quase que por completo a outros tempos.

SYLVIA TELLES MORREU JOVEM, SEM COMPLETAR SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A MÚSICA BRASILEIRA.

Suponhamos que a cantora Sylvia Telles (1934-1966), um dos ícones da Bossa Nova e uma das maiores cantoras da História do Brasil, tenha reencarnado em 1975. Digamos que ela preservou seus dons e na nova encarnação, ela escolheu ser cantora, o que não seria sua sina obrigatória, porque ela poderia muito bem ser uma mera professora primária. Mas digamos que ela escolheu ser cantora, sim.

Supondo que ela siga sua carreira hoje, nos seus 39 anos, ela encontraria o mesmo cenário dos "samba sessions" universitários? Encontraria os eventos bossa-novistas, o Beco das Garrafas, os músicos sofisticados, os festivais da canção, as rádios dando espaço para a música brasileira de verdade, a televisão dotada de programas sofisticados como os da TV Excelsior? Não.

A Sylvia Telles reencarnada teria que encarar outro contexto. Hoje a TV aberta está entregue à imbecilização explícita, os eventos universitários não passam de ridículas chopadas ao som de sucessos brega-popularescos, o Beco das Garrafas agora é só um beco, não há festivais da canção, as rádios estão horríveis e a música brasileira de qualidade perdeu espaço para a breguice.

Se ela tinha um plano de vida a ser executado em 1967, quando morreu antes disso, em um acidente de automóvel na RJ-106, ela, reencarnada, não teria que realizar esses planos. Não havia condição, não havia interesse. E, além disso, ela teria, em desvantagem mercadológica, que concorrer com cantoras de valor duvidoso como Ivete Sangalo, Anitta e Valesca Popozuda.

Imagine esse contexto. Sabemos que, em 1966, Sylvia concorria com Elis Regina e Nara Leão, e, na pior das hipóteses, com Wanderleia (bastante talentosa, criativa e competente no seu estilo pop). Os tempos mudam, seja para pior ou para melhor, e quem morreu cedo terá que refazer tudo de novo.

Isso o "espiritismo" ignora, despreza. Derrama suas lágrimas de crocodilo diante de tragédias ocorridas, sobretudo as prematuras, já que glamourizar pessoas belas e jovens que perderam a vida é uma praxe nessa religião que finge conhecer as técnicas de contatos com o mundo espiritual.

Enquanto isso, anti-médiuns, muitos deles verdadeiros farsantes - isso não exclui astros como Chico Xavier e Divaldo Franco, é bom frisar - , se passam pelos jovens mortos e, usando o nome deles, se limitam a transmitir mensagens de proselitismo religioso, tal qual um sequestrador que, fazendo um trote para extorquir dinheiro, se passa pelo refém para intimidar os familiares da vítima.

Sim, porque, à maneira do sequestrador que, usando um falsete, diz "Socorro, socorro, eu fui sequestrado, peguem todo o dinheiro da poupança para pagar o resgate!", o anti-médium usa o nome do morto, às vezes imitando seu falsete, para dizer de sua própria imaginação coisas como "estou bem, depois de tanto sofrimento e da redescoberta da luz".

Já não basta que muitos mortos prematuros tiveram seus planos de vida interrompidos. Eles têm que aguentar as falsas comoções dos "espíritas", que enganam seus entes queridos, e ainda precisam aturar, em silêncio, as fraudes de anti-médiuns que roubam seus nomes para atribuir a eles mensagens dos próprios anti-médiuns, que não são mais do que propaganda religiosa barata.

E tudo isso com a glamourização das tragédias juvenis, que alimentam o mercado, a fama e o poderio dos "espíritas" brasileiros.

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