quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Ainda sobre o caso Chico Xavier e os pastiches literários

HUMBERTO DE CAMPOS, UM DOS ESCRITORES CUJA AUTORIA FOI ATRIBUÍDA A MUITOS LIVROS LANÇADOS POR CHICO XAVIER.

Existe um grande equívoco do "espiritismo" brasileiro quanto à questão da veracidade. É o de confundir a não negação pela afirmação. Como se, na Matemática, entendermos que zero, por não ser menos um, é igual a um.

É o caso de muitos livros atribuídos à psicografia de Chico Xavier e que ele mesmo deixou revelar, em cartas a Wantuil de Freitas (então presidente da Federação "Espírita"  Brasileira), que o livro Parnaso de Além-Túmulo era feito por uma equipe de editores, além de mais tarde, o próprio sobrinho Amauri Pena ter revelado também ter colaborado nas últimas revisões do livro.

Muitos que duvidaram do processo mediúnico - como Agripino Grieco, R. Magalhães Júnior, Monteiro Lobato e Osório Borba - não deram um parecer final sobre o caso, o que colocava o polêmico caso das psicografias de Xavier num ponto neutro, que só foi favorável ao anti-médium mineiro pelo contexto das circunstâncias.

Não negar não é afirmar. Mas a própria língua portuguesa, não só no Brasil, tem esse secular problema até da combinação de pronomes ou preposições de negação. De repente, mesmo expressões antagônicas como "algum" e "nenhum", pasmem, são consideradas "sinônimas", num claro erro de concordância até hoje muito mal resolvido pelos mais doutos linguistas.

O que deixa nebuloso o questionamento acerca dos livros de Chico Xavier, que, se guardam alguma semelhança com as obras originais dos chamados "autores espirituais", mesmo assim a qualidade torna-se inferior, é atribuir que o mineiro tenha feito tudo isso sozinho. E não fez.

Se Xavier tivesse feito esses livros envoltos em tanta polêmica sem qualquer colaborador, ficaríamos eternamente nesse impasse entre o "brilhante pastichador" e o "extraordinário médium", enquanto os autores do além estavam associados a uma produção completamente irregular em relação ao que fizeram em vida, em que pese a parcial semelhança de estilo.

Todo pastiche tem um ponto de semelhança. O propósito do pastiche é justamente buscar a semelhança, maior possível, da obra original de um autor. Como na pirataria em que se procura copiar o produto a ser vendido, até mesmo no logotipo. A imitação tem essa pretensão de parecer original, por isso semelhanças de estilo, de uma forma ou de outra, existem.

Suponhamos que um guitarrista de rock pesado, virtuose nos seus solos, seja um espiritólico e, esperto, finja que vá fazer um trabalho mediúnico de Jimi Hendrix. Ele imita a voz de um negão, semelhante ao do guitarrista norte-americano (que iniciou carreira própria na Inglaterra), e faz um solo que imita seus trejeitos. A imitação pode até ser verossímil, mas não será perfeita.

No caso de Xavier, era difícil realmente que um único autor pudesse fazer um pastiche de uma porção de autores literários. Mas, paciência, naquela época havia o conhecidíssimo poeta Fernando Pessoa, falecido em 1935 mas muito marcado, na posteridade, pelos seus mais diversos heterônimos, cada um com sua personalidade e estilo próprios.

Não que Xavier fosse nosso Fernando Pessoa, ele esteve muito longe disso. Até porque os textos atribuídos a Humberto de Campos e aos diversos poetas são de qualidade muito inferior, além do excessivo panfletarismo religioso, já que existe a tendência das supostas mensagens do além serem carregadas demais de religiosidade, que destoam até de contextos pessoais.

No caso de Chico Xavier, a própria carta que ele escreveu a Wantuil é uma prova que a tese "aberrante", lançada por católicos ortodoxos, de que Parnaso de Além-Túmulo teria sido feito por uma equipe de editores e escritores tem um fundo de verdade. A própria declaração de Xavier, com essas palavras, elimina as dúvidas:

"Faltam-me competência e possibilidade para cooperar numa revisão meticulosa, motivo pelo qual o teu propósito de fazer esse trabalho com a colaboração do nosso estimado Dr. Porto Carreiro é uma iniciativa feliz. Na ocasião em que o serviço estiver pronto, se puderes me proporcionar a “vista ligeira” de um volume corrigido, ficarei muito contente (...)". (In: SCHUBERT, Suely Caldas. Testemunhos de Chico Xavier. Rio de Janeiro: Editora da FEB, 2010).

Nessa mensagem, Xavier entrega os trabalhos de revisão de Parnaso de Além-Túmulo ao então presidente da FEB e ao editor Luiz da Costa Porto Carreiro Neto, e ambos, certamente, com suas equipes, fariam a "revisão meticulosa" que Xavier alegou não ser capaz de fazer, chegando a admitir querer dar uma "vista ligeira" do volume corrigido.

Esse ponto, que já analisamos antes, dá conta de que os pastiches atribuídos a Chico Xavier podem não terem sido feitos totalmente por ele. Ele pode não ter sido cego ou iletrado como muitos imaginam, mas um ávido leitor de livros, como muitos que conviveram com ele puderam admitir.

Mesmo assim, a capacidade de imitação tem limites. Chico pode ser uma pessoa mais culta do que se pode imaginar, mas dentro dos limites de um interiorano que lê muitos livros. Observa-se o aspecto sociológico da época: dependendo das famílias, os interioranos de origem humilde podem ter uma escolaridade razoável e um hábito de leitura de regular a muito bom.

Isso no contexto da década de 1930, quando surgiu o fenômeno Chico Xavier. E que desmente os aspectos extremos que transformam ele numa pessoa extraordinária: seja o "médium analfabeto" de livros "sofisticados", seja o "brilhante pastichador" eclético e "habilidoso". Nem um, nem outro.

E mesmo Alexandre Caroli Rocha não teve uma conclusão inteiramente favorável a Chico, embora sinalizasse para sua defesa. Em Complicações de uma estranha autoria (O que se comentou sobre textos que Chico Xavier atribuiu a Humberto de Campos), artigo lançado pela revista Ipotesi, de Juiz de Fora, edição de julho a dezembro de 2012, escreve o pesquisador:

"Vimos que não é pertinente a pressuposição de que, por meio apenas de fatores textuais, seja possível autenticar ou refutar a alegação do médium. Mostramos que os textos colocam à tona a discussão a respeito do post-mortem, tema que, nos ambientes acadêmicos, costuma ser relegado a domínios metafísicos ou religiosos. Concluímos, pois, que os veredictos taxativos para a identificação do autor são possíveis somente com a assunção de uma determinada teoria sobre o post-mortem ou sobre o fenômeno mediúnico. Quando, no debate autoral, ignora-se a relação entre teoria e texto, percebemos que a apreensão deste é bastante escorregadia, mesmo entre leitores especialistas."

Em outras palavras, fica tudo no empate, numa neutralidade que durante muito tempo favoreceu Chico Xavier e enriqueceu as fortunas dos dirigentes da FEB. Até que Suely Caldas Schubert, mesmo escrevendo um livro favorável ao anti-médium e publicado pela FEB, divulgou a referida carta em que Xavier entrega trabalhos de revisão a uma equipe editorial.

O que imaginar então de boa parte dos livros atribuídos a um sobrecarregado Chico Xavier, tido como o "Speed Racer da escrita mediúnica", que teriam sido provavelmente escritos pelos editores da FEB? O pastiche pode muitas vezes não ser obra de uma só pessoa, mas de várias que combinam imitações de estilos e divisão de tarefas escritoras.

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