segunda-feira, 29 de setembro de 2014

FEB queria unir Roustaing e Kardec


A Federação "Espírita" Brasileira sempre manifestou sua preferência por Jean-Baptiste Roustaing do que por Allan Kardec, algo que só se tornou sutil muito tardiamente, depois dos sucessivos escândalos causados por tal postura.

Mas, em primeira instância, a FEB tentou vincular Kardec e Roustaing, se utilizando do pretexto de que Roustaing "avançou onde Kardec não poderia seguir adiante", a pretexto de ser a sociedade terrena muito atrasada para que o professor lionês pudesse ampliar seus ensinamentos.

Essa visão é equivocada, mas é típica de um país como o Brasil, em que o "novo" sempre é implantado através de bases envelhecidas, peles novas em esqueletos apodrecidos e mortos, o que faz com que ideias novas, sob a desculpa de "adaptação às realidades locais", sejam distorcidas ao serem misturadas com conceitos velhos que prevalecem na prática "local" de tais novidades.

Pode ser que vocês, leitores, não sejam necessariamente conhecedores ou apreciadores de rock, mas eu já pude ver caso semelhante através do radialismo dedicado ao gênero. Há 20 anos, a Fluminense FM, antiga rádio de rock de Niterói (ocupava o espaço da atual Band News Fluminense), saiu do ar para dar lugar a uma rádio pop, a Jovem Pan 2, então detentora da frequência 94,9 mhz do Grande RJ.

Em 1995, diante de tantas supostas candidatas à "nova Fluminense", uma rádio de pop aparentemente mudou sua orientação e, à primeira vista, abraçou a "causa roqueira": a Rádio Cidade. O que se tomou conhecimento, na época, era que a Rádio Cidade "lembrava um pouco" o que a Fluminense FM - que era conhecida como "Maldita" - fazia.

No entanto, o que se viu, na prática, foi uma completa deturpação e um desvio total das ideias originais. A Fluminense FM não tocava só "sucessos do rock", não tinha locutores imbecilizados e tratava os ouvintes de maneira inteligente e sóbria. A Rádio Cidade só tocava "sucessos" do gênero, adotava locutores "engraçadinhos" e tratava o público roqueiro feito um moleque retardado.

No âmbito das chamadas rádios de rock, a Rádio Cidade foi o "Roustaing" da situação, usando o prestígio da Fluminense FM para desviar completamente de seus propósitos originais, sendo "protegida" pela mídia conservadora, em detrimento de uma Fluminense equivocadamente tida como "radical" e "ultrapassada". A exemplo de Roustaing, a Cidade teve adeptos arrogantes e violentos.

Há outros casos em que causas novas são deturpadas, primeiro se apoiando na causa original, depois desviando de seus propósitos em prol de uma deturpação tida como "moderna" e "facilitadora" - seja para atingir demandas "heterogêneas", seja para obter mais apoio, seja para render mais dinheiro - que, não raro, sacrificava totalmente a essência dos projetos originais.

Vide também a maneira com que inicialmente se manifestaram os ideais do Iluminismo no Brasil, sendo parcialmente apoiado por uma elite de intelectuais e ativistas sociais que, no entanto, faziam questão que se mantivesse a exploração do trabalho escravo no país - que já nos primeiros anos do Primeiro Império era tido como prática decadente - , pela desculpa de que era mais rentável.

A FEB tentou unir Roustaing e Kardec no seu estatuto, tentando até mesmo "dividir" as missões "espíritas" de alguns supostos precursores "espíritas", neutralizando a importância do professor lionês na divulgação de sua doutrina, baseada na coerência de ideias e nas descobertas científicas.

Até mesmo um trecho do livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, que Chico Xavier publicou em 1938 usando o nome de Humberto de Campos - para o qual a veracidade de autoria espiritual do livro é muito duvidosa - descreve essa "divisão" de missões "espíritas":

Foi assim que Allan Kardec, a 3 de outubro de 1804, via a luz da atmosfera terrestre, na cidade de Lião. Segundo os planos de trabalho do mundo invisível, o grande missionário, no seu maravilhoso esforço de síntese, contaria com a cooperação de uma plêiade de auxiliares da sua obra, designados particularmente para coadjuvá-lo, nas individualidades de João-Batista Roustaing, que organizaria o trabalho da fé; de Léon Denis, que efetuaria o desdobramento filosófico; de Gabriel Delanne, que apresentaria a estrada científica e de Camille Flammarion, que abriria a cortina dos mundos, desenhando as maravilhas das paisagens celestes, cooperando assim na codificação kardequiana no Velho Mundo e dilatando-a com os necessários complementos.

Ia resplandecer a suave luz do Espiritismo, depois de certificado o Senhor da defecção espiritual das igrejas mercenárias, que falavam no globo em seu nome. (...)

Usava-se a desculpa do ecletismo de visões para reduzir o impacto das descobertas científicas descritas por Allan Kardec, usando os pretextos de "equilibrar" as abordagens científica, filosófica e religiosa - não a perspectiva religiosa filosoficamente analisada por Kardec, mas o igrejismo herdado do Catolicismo medieval - , criando terreno para a ascensão das ideias de Roustaing.

Assim, Roustaing não apareceria como um "bárbaro" a invadir a Doutrina Espírita com suas ideias alienígenas, mas sutilmente usando Leon Denis e Gabriel Delanne como "trampolins" para sua escalada na pretendida supremacia que desejou exercer sobre os ensinamentos de Kardec.

Nos primeiros momentos, a FEB se desenvolveu através dessa tentativa de união, tentando difundir a falsa ideia de que Jean-Baptiste Roustaing era "mais moderno" e "mais audacioso" que Kardec, enquanto este era visto como "complicado", "prolixo" e "ultrapassado", aproveitando o desprezo dado a seu cientificismo na própria França, que até politicamente sofria o domínio da Igreja Católica.

A fundação da FEB então veio com essa armadilha. Depois do surgimento das primeiras entidades espíritas que começaram a difundir os livros de Allan Kardec, vieram as correntes roustanguistas de carona, o que impediu que o kardecismo fosse compreendido integralmente e devidamente adaptado para o contexto brasileiro.

Assim, em primeiro lugar a FEB lançou o roustanguismo como se fosse um "kardecismo revisto e ampliado", que, pelos aspectos abertamente escandalosos, como as teses surreais do "Jesus fluídico" e dos "criptógamos carnudos" (animais, vegetais, insetos e micróbios que "receberiam" espíritos de humanos "moralmente falidos"), tão cedo causou sérios escândalos.

Foi por isso que, depois de um breve "casamento por conveniência" entre Kardec e Roustaing, em que pese a já causada animosidade, na França, pelo advogado de Bordeaux contra as críticas serenas mas severas do professor lionês, criou-se um violento litígio que marcou explicitamente os bastidores do "movimento espírita" brasileiro até algumas décadas atrás.

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