sexta-feira, 8 de julho de 2016
O mal dos "de cima" é querer demais
Um dos maiores problemas do discurso religioso é a relação do "eu" e do "outro". Sobretudo quando o caso é a Teologia do Sofrimento. No discurso religioso, apela-se para o "eu" abrir mão de desejos, e, se for o caso, das necessidades e até dos talentos, para "vencer na vida", aguentando desgraças sucessivas em tempo indeterminado e ainda sendo induzido a ser alegre e perdoar carrascos e algozes.
Isso é fácil, afinal, o "eu" na verdade não somos nós que sofremos e temos que abrir mão até do que precisamos para sobrevivermos com o mínimo do mínimo do mínimo de qualidade de vida. O que esquecemos é que nós somos o "outro" do discurso religioso, pois quem apela para abrirmos mão de nossos desejos é justamente quem quer demais na vida.
O governo Michel Temer mostra que o Brasil sofre a mais grave das crises: crise de hierarquia. Pessoas mais ricas, mais velhas, com formação acadêmica, poder político, econômico e midiático, alta visibilidade e outras formas de prestígio e privilégio, estão cada vez mais mostrando sua decadência e tornando-se impotentes para mostrar algum bom exemplo para a sociedade.
O próprio Michel Temer, que personifica um senhor de idade (o que supõe experiência de vida), advogado que escreveu livros e foi professor universitário (o que supõe conhecimento de leis e obtenção de sabedoria), aparentemente elegante e de fala articulada (o que supõe bons modos), e é presidente da República (em tese responsável por uma nação inteira), está envolvido em graves escândalos de corrupção e se mostra um político incompetente de ideias retrógradas.
As pessoas dotadas de algum nível superior na hierarquia é que acabam cometendo os excessos. O apego a valores retrógrados, a exigência excessiva ao outro, a supremacia das convicções pessoais e do dogmatismo religioso e moralista sobre a realidade, tudo isso encontra-se numa séria crise, mesmo quando existem esforços homéricos para salvá-los ou recuperá-los.
A sociedade pós-moderna está em colapso. Pessoas desesperadas querendo salvar valores já obsoletos e estruturas hierárquicas em crise, plutocracias, teocracias e até tiranias sendo propostas ou instauradas na marra, às vezes sacrificando vidas, impondo-se como uma suposta urgência e atropelando qualquer contexto de evolução da humanidade.
Mas mesmo nas situações do cotidiano, valores considerados "sagrados" da hierarquia política, religiosa, sócio-econômica, étnica etc são postos em xeque, e até por xeque-mate, desde o fato de pais exigirem demais para os filhos até concursos públicos que exigem demais dos candidatos que têm que estudar dois meses para um programa de estudo que só dá para ser bem compreendido e bem estudado em quatro.
Os concursos públicos que exigem Matemática até em cargos que não aplicam essa matéria, ou o mercado de trabalho que exige mais frescuras do que talentos, como o aberrante clichê de pedir trabalhadores com menos idade e maior experiência possível.
Diante disso, há também um considerável número de "coroas" e "idosos" dotados de muito status e algum poder de influência que cometem erros graves na vida, praticam de gafes a crimes hediondos, derrubando a ilusão de que a sabedoria cresce com o descolorir dos cabelos.
Gente idosa ou quase idosa extremamente confusa, sem poder ensinar coisa alguma, diante de uma realidade instável. Parece cruel dizer isso, mas, paciência: jovens durante a ditadura militar, eles não tiveram uma formação humanista adequada dentro de uma época em que valores retrógrados eram impostos como dogmas absolutos, e contrariar a eles era risco de cadeia ou morte.
O "espiritismo" também está dentro desse cenário de "querer demais" e "exigir demais" dos outros. No discurso religioso, sabemos que o "eu" que simbolizamos nos conselhos de "desejar o menos possível", "abrir mão até do necessário", "aceitar o sofrimento, sorrir e desejar boa sorte aos carrascos" é, na verdade, o "outro" de quem transmite esse discurso.
Afinal, não é o "líder espírita" que vê seus filhos morrerem em acidente de carro ou doenças graves vindas do nada, que no trabalho é hostilizado por um chefe tirânico, que quando se esforça para conquistar uma meta encontra obstáculos insuperáveis e põe tudo a perder e só vê desgraças se amontoando na sua trajetória.
O "líder espírita" é feliz. Pode usurpar um autor falecido em falsa psicografia que nunca será punido por falsidade ideológica ou qualquer infração aos direitos autorais. Isso num país em que um Sérgio Moro vira herói escondendo o ultracorrupto Aécio Neves debaixo do tapete. Isso num país em que o povo dá ouvidos a uma Rede Globo cujos donos são sonegadores fiscais e abocanham até parte da arrecadação do Criança Esperança para suas contas pessoais.
O "líder espírita" recebe medalhas de parlamentares corruptos, e todos acham isso ótimo. Tão "desapegado" à matéria, acumula prêmios na sua extravagância mística de se julgar "sábio" e tido a "tudo responder", mesmo quando sua "sabedoria" seja composta de mofados valores igrejeiros e austeros valores moralistas.
Claro, Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco são considerados "superiores" em um país que ainda considera a chance de ser governado por um Jair Bolsonaro, e que vê como "imparcial" uma imprensa cada vez mais decadente, tão decadente que apresenta momentos debiloides, como um comentarista como Guilherme Fiúza inventar que o New York Times era patrocinado pelo PT.
É um sintoma dos tempos, a imprensa brasileira publicar mentiras. O edifício das hierarquias e superioridades pega fogo, como no filme Inferno na Torre, e os esforços para se manter tudo isso em pé soam como jatos de água inflamável jogados no fogo intenso.
Ver que no Brasil se tenha que descartar dogmas e totens que prevalecem há pelo menos 40 anos é muito doloroso. Se até ateus e esquerdistas parecem apegados em Chico Xavier e Divaldo Franco, fica difícil tirar esse bolor das paredes valorativas dos brasileiros.
O pessoal está apegado a tudo: ao governo Michel Temer, a Chico Xavier, a Divaldo Franco, ao "funk", à Rede Globo, aos ônibus com pintura padronizada, etc. Chega a ser constrangedor que uma fanática por Chico Xavier tenha recorrido à abusiva "carteirada" para reagir, rispidamente, a uma internauta que contestou os méritos do anti-médium: "Quem é você para falar de Chico Xavier?".
O próprio Chico Xavier que pedia aos outros "não quererem demais" (leia-se não querer o justo e o necessário) acabou querendo demais em sua vida: de um funcionário público relativamente paranormal, atuando como plagiador de livros, transformou-se num monstruoso ídolo religioso, tido tendenciosamente como "cientista", "filósofo" e outras qualidades que ele nunca teve.
Ele acabou tendo um status quo gigantesco, querendo as fortunas simbólicas do misticismo religioso e da superioridade social trazida por essa condição. Pior do que os ricos da Terra, Chico Xavier, como um VIP da religião, queria ser um rico do céu, com pressa em se tornar um aristocrata do além a voar como um querubim ao redor de Deus.
É assustador, porém realista, ver que pessoas que estão "em cima", dizendo para os que estão "embaixo" aceitarem o sofrimento e pararem de querer o necessário, estão vendo o mundo que construíram ideologicamente ruir de forma trágica.
Há uma necessidade de rever valores, e é sobretudo as pessoas que acreditam em plutocracias, teocracias, meritocracias, tecnocracias e outras formas de supremacia social são as que mais são cobradas.
E aqui vale até um "olhe só quem fala": os "espíritas" adoram dizer para os outros não julgarem e nem maldizerem. Mas Chico Xavier julgou, acusando as vítimas do incêndio de um circo de Niterói de terem sido "romanos sanguinários" e chamou o ceticismo justo dos amigos de Jair Presente quanto às irregularidades psicográficas de "bobagem da grossa".
A Dona Queixosa de um conto de Chico Xavier falsamente atribuído a Humberto de Campos deve estar lamentando em som de "tsc, tsc". Chico era mais um a pedir "faça o que eu digo, não faça o que eu faço".
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