domingo, 1 de maio de 2016

Rio de Janeiro e sua incapacidade de "sentir dor"

PESSOAS FICAM INDIFERENTES OU VEEM CURIOSAS OS DOIS MORTOS DA QUEDA DE UMA CICLOVIA, EM SÃO CONRADO.

Mais chocante do que uma cidade outrora imponente, como o Rio de Janeiro, passar por uma vergonhosa e vertiginosa decadência, é a maioria das pessoas ficar indiferente a essa situação, insistindo em acreditar que tudo está bem.

As pessoas veem os jornais e encaram a tragédia cotidiana do Rio de Janeiro, Estado e capital, como se fosse uma piada macabra. A indiferença é tanta que, para piorar, as pessoas ainda se incomodam quando surge alguém questionando demais as coisas e diagnosticando alguma decadência.

Pessoas chegam a romper amizade com aqueles que "reclamam demais" dos problemas e há quem se atreva a fazer trolagem na Internet, quando o internauta discordante expressa não gostar do "estabelecido". A situação, no Rio de Janeiro, sucumbiu a um aberrante processo de compactuar com os retrocessos que põem o Rio de Janeiro cada vez mais distante de sua antiga postura de vanguarda nacional.

Só na cultura jovem, os fãs de rock autêntico deixaram a rebeldia de lado e passaram a aceitar a canastrice de uma emissora FM, a Rádio Cidade, sob a desculpa do "fortalecimento do mercado de rock no Estado".

É aberrante ver que pessoas que valorizam a memória da Fluminense FM, ou apreciam possíveis herdeiras como a Kiss FM Rio (ainda fora do ar, após fase de testes) e Cult FM, não se encorajem em combater a Rádio Cidade, mesmo diante da ameaça desta FM comercial, feita por pessoal sem envolvimento no gênero, passe a exercer, no futuro, monopólio sobre o setor.

Isso mostra o quanto o Rio de Janeiro anda acomodado, resignado e insensível. Ninguém consegue ver a real dimensão dos problemas. Os fluminenses, e os cariocas em particular, aceitam, por exemplo, entrar em restaurantes quando caminhões de lixo fedorentos estão estacionados à sua frente.

Não conseguem perceber que o fedor vem de uma fumaça tóxica que, se espalhando pelo ar, pode contaminar os alimentos que estão expostos ao self service dos fregueses, e as pessoas vão felizes escolher o seu almoço, ignorando que poderão sofrer uma intoxicação alimentar que pode ser fatal.

CADÁVERES NA PRAIA

Um dado ilustrativo é a presença de banhistas curiosos ou indiferentes que, numa praia de São Conrado, curtiam o dia ao lado de dois cadáveres de vítimas da queda de um trecho de ciclovia, inaugurado três meses antes, no referido bairro carioca. A tragédia virou notícia no Brasil e no mundo, mas os banhistas, quando muito, viam os cadáveres com tranquila curiosidade.

Com todo o reacionarismo pelo qual ganhou fama nos últimos anos, o músico da banda paulistana Ultraje a Rigor, Roger Rocha Moreira, mostrou indiscutível lucidez quando perguntou se os ciclistas não estavam vendo a ressaca batendo no calçadão da ciclovia. A indiferença dos cariocas passou a ganhar má fama além das fronteiras fluminenses.

Aqueles que se preocupam com essa indiferença carioca chegam a fazer trocadilho com uma doença grave, mas pouco conhecida, chamada Síndrome de Riley-Day. problema no sistema nervoso que faz a pessoa não sentir dor. Há quem sugira que, vendo o comportamento dos fluminenses, mude o nome Rio de Janeiro (Estado e capital) para Riley-Day Janeiro.

Até o mercado de trabalho está discriminando mentes criativas, preferindo pessoas mais conformistas e obedientes, mas capazes de serem brincalhonas e torcerem por times de futebol (Flamengo, Fluminense, Botafogo, Vasco e, agora, pasmem, o espanhol Barcelona).

Num supermercado em Niterói, um funcionário realmente talentoso, para ser promovido gerente, teve que enfatizar mais o senso de humor, vendo que o mercado dá mais preferência ao estereótipo do trabalhador-comediante.

O conformismo é generalizado, o retrocesso sempre tem alguma desculpa, podendo variar entre argumentos falsamente racionais como "É assim mesmo, não tem jeito", "(O retrocesso) acontece para viabilizar outro benefício", "(O retrocesso) acontece devido a critérios técnicos", "É preciso certos sacrifícios para obter novas vantagens".

Enquanto isso, o prejuízo se faz, sob o pretexto de garantir necessidades básicas. Que, de tão básicas, passam, de retrocesso em retrocesso, a ficarem abaixo do básico, porque o precário de ontem é o básico de hoje e será o sofisticado de amanhã. Se deixarmos, banquete no Rio de Janeiro será pão com capim e um copo de 200 ml de água de bica.

CRIANDO MONSTROS

A pior fase do Estado do Rio de Janeiro (Riley-Day Janeiro?) é sentida nos últimos anos, quando os retrocessos vividos pelo Estado nos últimos anos, sobretudo a partir de um cenário que combina crime organizado (narcotráfico e milícias), contravenção (jogo-do-bicho) e política fisiológica (os grupos políticos formados nos últimos 40 anos), além de uma mídia reacionária (O Globo, Rede Globo) ou semi-populista (jornal O Dia).

Um Estado que foi considerado a vanguarda do país, que tinha Bossa Nova com rica expressão musical, que fazia a Passeata dos Cem Mil em plena ditadura militar, que era a vitrine de grandes movimentos culturais do resto do país, hoje está reduzido à resignação a uma cultura decadente e a um conformismo que não luta sequer contra pintura padronizada nos ônibus que confundem as pessoas na hora de ir e vir.

É a terra do "funk" cujo um dos maiores ícones, Valesca Popozuda, cria um arremedo de feminismo de moldes machistas e, juntamente com Solange Gomes e Renata Frisson (Mulher Melão), promovem de maneira depreciativa a imagem da mulher solteira no Brasil, reduzida a um objeto erótico numa sociedade hipersexualizada.

Nessa terra, o mercado literário sucumbe à supremacia de "livros para colorir", ou futilidades como vampiros e bonecos de Minecraft, ou de youtubers preocupados em "filosofar" sobre espinhas no rosto, fora os livros de auto-ajuda e de "lindas estorias" religiosas. No teatro, comédias semi-eróticas adultas e franquias da Disney monopolizam o mercado em que os que fazem algo diferente não têm verba para montar.

Musicalmente, nem se fala. Qualquer maluco em roupa hippie ou cabeleira black power com um computador na mão vira "gênio" e "vanguarda musical". O próprio "funk" se autoproclama "vanguardista", confundindo o ato de incomodar e irritar as pessoas com "genialidade artística".

E isso sem falar da conformação da "boa sociedade" em ver emepebistas e roqueiros autênticos mendigando os poucos espaços que têm condições de divulgar seus trabalhos. E não estamos falando do pior, que é a predominância de tendências como "sertanejo" e "forró eletrônico", além de "funk" e "pagode romântico", que invadem até as universidades.

Isso faz um Rio de Janeiro virar um Estado estranho, de capital mais estranha ainda. Uma capital que lidera uma região metropolitana em que uma perigosa região de bairros - Complexos da Maré e do Alemão - está no caminho entre o Galeão e o Centro do Rio, o que faz muitos perguntarem se não seria ideal transferir o status de internacional para o Aeroporto Santos Dumont.

É uma região metropolitana cuja cidade de Niterói, que um dia foi capital do Estado do Rio de Janeiro, sofre um provinciano digno de cidade do Acre e se conforma em servir de capacho para a cidade vizinha, tão decadente porém mais arrogante e ainda tomada de complexo de superioridade.

É uma região metropolitana onde a paisagem praiana, antes considerada bucólica, é atingida pela poluição que faz o Grande Rio superar a antiga líder São Paulo, com fumantes convictos e tão intransigentes que, só de sacanagem, andam quarteirões com o cigarro aceso na mão, sem tragar, mas com a fumaça se espalhando para outras pessoas, sobretudo não-fumantes, inalarem.

É uma região que tratava os troleiros da Internet (seja os "fascistas mirins" reacionários, ou os meros "midiotas", que "zoam" só por "zoar") com consideração e carinho, antes deles serem denunciados depois de atingirem a reputação de pessoas como a atriz Taís Araújo. E que, na sanha moralista, foi capaz de eleger dois dos mais problemáticos políticos do país para a Câmara Federal.

Pagando o alto preço de um moralismo revanchista, os fluminenses "presentearam" o país com o bravatismo irresponsável de Jair Bolsonaro - que em seu discurso pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, fez apologia à tortura e agora é denunciado por movimentos sociais em várias ações no Judiciário - e o vandalismo constitucional do presidente da Câmara, Eduardo Cunha.

Foram dois "monstros" criados pela "boa fase" em que vive o Estado do Rio de Janeiro, crente de que ainda detém o poder de referência para o resto do país. E que ainda tem o fanatismo por futebol, regulador de relações sociais e que faz muitos fanáticos gritarem de forma ensurdecedora até mesmo durante os jogos noturnos transmitidos geralmente nas quartas-feiras.

Sendo uma região cujas únicas metas na vida são expulsar o PT da vida política e ver pelo menos algum dos quatro times cariocas em alta, poucos percebem a gravidade que Jair Bolsonaro, político comparável a um famoso austríaco, de deprimente lembrança, que ameaçou a humanidade. Da mesma forma, todos ignoram o obscurantismo legislativo do delinquente político Eduardo Cunha.

Cunha, comprovadamente envolvido em escândalos de corrupção diversos, está manobrando o Legislativo e o Judiciário para que demore, por tempo indeterminado, qualquer esforço para condená-lo por crime de corrupção ativa. O mais preocupante é que ele é o futuro suplente na hierarquia da República, pois será o vice de Michel Temer, quando ele se tornar titular do Executivo federal.

Isso é horrível. Cunha propõe muitos retrocessos em leis trabalhistas e de âmbito social. Os retrocessos podem levar o Brasil aos níveis do período colonial anterior ao da vinda da família real brasileira. E o pessoal do Rio de Janeiro, mais preocupado em ver Dilma Rousseff fora do poder, está indiferente a isso, como encara naturalmente o modelo de casal do século XIX de Michel Temer e sua esposa Marcela, com idade para ser neta do marido.

Outro aspecto lamentável: os fluminenses raciocinam a vida como se fosse uma novela da Rede Globo. E brincam com smartphones vendo bobagens no WhatsApp. A personalidade que mais valorizam no momento é uma tal de Munik, campeã do Big Brother Brasil 16, e os vídeos que mais veem são de vídeocassetadas.

Essa "felicidade" que se vê no Rio de Janeiro, com jovens fazendo dos problemas cotidianos uma piada e gente vendo vídeocassetadas no WhatsApp é apenas um aspecto lúdico dessa tragédia que transforma um dos principais Estados do país em uma região cada vez mais atrasada, que parece não ter escrúpulos em andar para trás e, de preferência, obrigando o resto do país a ir junto. Triste.

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