segunda-feira, 16 de maio de 2016

Ao sofredor, cobra-se tudo, ao privilegiado, nada


A Teologia do Sofrimento faz sucesso no Brasil e poucos percebem. Sobretudo em regiões antes consideradas desenvolvidas, como o Sul e Sudeste - em especial o Estado do Rio de Janeiro - , que simplesmente pararam no tempo.

O politicamente correto cria um véu nas pessoas e poucos percebem o quanto o "mundo cão" é fruto de um moralismo severo e um modelo um tanto autoritário de "vencer na vida" ou de "viver feliz". A indiferença ao sofrimento dos infortunados e a complacência com os abusos dos privilegiados dá o tom dessa sociedade ultraconservadora que sempre foi a brasileira.

A situação é insólita: a Teologia do Sofrimento, que descreve o sofrimento humano como "meio de purificação espiritual", é apoiada até pelo "movimento espírita". Chico Xavier, com suas próprias palavras, falava em "sofrer sem queixumes", "sofrer sem demonstrar sofrimento" e coisas parecidas. Mas ninguém assume isso.

Enquanto isso, vemos uma sociedade autoritária e enérgica, que exige demais do que não tem e cobra menos do que tem demais. E isso não é só uma questão de dinheiro, mas questão de humor, de vida, de situações vividas.

As pessoas não costumam ser amigas com os sofredores. Nas horas difíceis, multidões abandonam as pessoas. Poucos prestam assistência, como o bom samaritano. Muitos se afastam, horrorizados e aborrecidos com a desgraça alheia.

Extrovertidos exigem dos introvertidos que estes tenham extroversão, em vez de fazer sua parte para tornar pessoas carmurras mais comunicativas. Exige-se do depressivo uma alegria e uma descontração que ele não tem. Exige-se do infortunado sacrifícios que ele já faz, e não obteve resultado algum.

Enfim, o "outro" é sempre vítima da velha mania de exigir demais dele do que da pessoa exigente. Mas é muito confortável que, diante do sistema moralista em que vivemos, o "eu" que exige e cobra não é "eu", mas "nós, vós e eles".

O "eu", situado em uma posição confortável, não é o "eu", mas uma força invisível que tanto pode ser uma divindade, um ídolo religioso ou o senso comum. "Não sou eu que exijo, é a sociedade que exige", tenta o "eu" eximir-se da culpa.

Já o "outro" tem que "meter a cara" por nada. É o afogado pedindo socorro até que venha alguém de barco não para lhe salvar, mas para enfiar a cabeça mais para dentro d'água, ao mesmo tempo em que pede para o afogado deixar a água e subir.

Somos peixes obrigados a dar um grande salto para uma árvore. E não podemos reclamar. Temos que compartilhar toda uma ilusão de "felicidade", que existe mesmo quando há alguma consciência sobre os problemas cotidianos. Só é proibido reclamar.

Chico Xavier, usando o nome de Humberto de Campos, em Reportagens do Além-Túmulo, de 1943, criou uma personagem chamada "Queixosa", que, por reclamar da vida e não aceitar ser "capacho do destino", vê ser abandonada por amigos, crianças e colegas de trabalho.

Só que essa estória esconde um lado sombrio, contrário ao propósito do "médium": as pessoas que abandonam a queixosa não suportam as queixas porque elas escondem responsabilidades e compromissos que as pessoas "de bem com a vida" se recusam a assumir e executar.

Há uma ilusão de que as pessoas que reclamam da vida são sempre mal-humoradas ou intolerantes, ou que pessoas deprimidas são apenas uns chatos preguiçosos. Como há também a ilusão de que "estar sempre de bem com a vida" possa ser sempre um paraíso de virtudes, mesmo entre pessoas às quais se admita serem imperfeitas.

As trolagens na Internet comprovaram que pessoas que parecem "sempre de bem com a vida" e se expressavam de forma "divertida" nas mídias sociais eram justamente pessoas intolerantes, violentas, preconceituosas e desrespeitosas. Em muitos casos, defendendo de arbitrariedades políticas a valores racistas e machistas.

As pessoas que não suportam ouvir os outros reclamando são justamente as mais mal-humoradas, impacientes e pessimistas, por trás da máscara da "aceitação da vida". Pessoas muito mais revoltadas do que os queixosos aparentes, que não raro apenas querem chamar a atenção sobre problemas que a sociedade tem dificuldades em assumir.

Os privilegiados não recebem cobranças, embora eventualmente sejam criticados aqui e ali. Mas até as encrencas em que eles se metem são fáceis de serem contornadas, mesmo quando alguma perda acaba havendo.

Já os infortunados, mesmo quando se sacrificam em dobro, encontram obstáculos diversos. E, para quem pensa que são os "pensamentos negativos" que fazem a desgraça crescer, é muito bom lembrar que os infortunados costumam investir numa oportunidade com as vibrações mais positivas, com esforço e perseverança. As circunstâncias é que tornam a oportunidade frustrada e é muito fácil botar culpa nos infortunados.

As pessoas que se dizem amigas não socorrem os infortunados em suas piores dificuldades. Em compensação, custam a romper amizade com pessoas consideradas privilegiadas que cometem erros gravíssimos de diversos tipos, mantendo-as em algum nível de contato amistoso sem que o infrator sofra punições sociais definitivas.

Daí o Brasil que adere a Teologia do Sofrimento e faz se manter uma sociedade que é injusta na sua essência. Uma sociedade que exige demais de quem não tem e não pode fazer muito, mas que nada exige de quem tem demais e comete abusos. A partir disso, vemos privilegiados cometendo abusos sem freio e infortunados se sacrificando por nada.

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