terça-feira, 1 de julho de 2014

O caráter seletivo das "psicografias"


Até que ponto se pode escolher um falecido ilustre para os espetáculos de "mensagens espirituais"? Algum desavisado deve reagir, dizendo que "não se escolhe espírito do além" para tais mensagens, que elas chegam "sob os desígnios divinos", ou sob a "graça de espíritos benfeitores". Então tá.

Pesquisamos como é o perfil dos falecidos que supostamente mandam mensagens espirituais, sempre com aquele mesmo tom panfletário religioso e aquela mesma história: "Eu sofri nas trevas (umbral), fui socorrido e levado nas colônias espirituais e depois recebi graças divinas e agora tenho as bênçãos de Jesus".

As escolhas dos "benfeitores" para "assinarem" tais mensagens procura ser a mais eclética possível. Vai da Madre Teresa de Calcutá a Raul Seixas, passando por Eça de Queiroz e até Ayrton Senna. Mas até certo ponto se evitam figuras mais polêmicas, seja pelas posturas defendidas, sejam pelos problemas judiciais que podem causar.

Um exemplo. Tentei pesquisar a palavra-chave "espírito Glauber Rocha" na busca do Google e, pelos dados colhidos, nenhum houve que se referisse a uma suposta psicografia do cineasta baiano, pois, até o momento da redação deste texto, não há conhecimento de uma "aventura" dessas de alguém divulgar uma suposta mensagem "fraternal" atribuída ao diretor e produtor do Cinema Novo.

Seria difícil alguém "enxugar" o perfil do suposto "Glauber Rocha espírito" para nele encaixar mensagens de "amor e caridade". Difícil uma personalidade como aquela convencer alguém com frases do tipo "irmãos, agraciado de bênçãos venho lhes dizer que, entre Deus e o Diabo, a graça divina, conduzida por Cristo Jesus, é o caminho seguro para a espiritualidade".

Também não dá para convencer a malandragem de imitar alguns trejeitos linguísticos de Glauber e escrever, por exemplo, "Crysto" - Glauber usava muito do recurso textual de brincar com certas grafias - , dentro de uma verborragia pseudo-modernista feita provavelmente para disfarçar o óbvio e repetitivo panfletarismo religioso com suas conhecidas matizes místico-moralistas.

A seletividade também inclui casos como o do compositor e músico Antônio Carlos Jobim. Como um suposto médium, mesmo o mais ambicioso, irá "incorporar" Tom Jobim sem sofrer o risco de ser jogado nos tribunais por iniciativa de algum de seus herdeiros, mesmo se o lirismo bucólico do artista - em parte apoiada na poesia de Vinícius de Moraes - fosse algo imitável para "nossos espíritas"?

PROCESSOS JUDICIAIS

Aqui na vida terrena, tivemos o caso do livro Estrela Solitária, sobre o ídolo do futebol Mané Garrincha, cujos aspectos pouco agradáveis da vida do jogador renderam um grande processo judicial contra o autor, o experiente jornalista e pesquisador Ruy Castro.

A FEB já teve que encarar o "pepino" que foi a ação judicial movida pelos herdeiros do escritor Humberto de Campos contra o anti-médium Chico Xavier, que só murchou por causa dos padrões jurídicos da época, há exatos 70 anos atrás, que não previam controle de direitos autorais sobre obras supostamente produzidas "do além", atribuídas a autores já falecidos.

No entanto, é bom deixar claro a respeito de uma grande diferença relacionada ao livro sobre Garrincha escrito por Ruy Castro e a suposta psicografia de Chico Xavier usando o nome ilustre de Humberto de Campos, escritor muito prestigiado na literatura do começo do século XX.

Ruy Castro foi vítima na situação. Escritor e pesquisador responsável, de excelentes trabalhos biográficos e notável faro investigativo, ele foi processado porque alguns dados que ele pesquisou desagradavam os herdeiros de Garrincha e não deveriam ser divulgados. Rumores de manipulação de advogados à parte, os herdeiros do jogador investiram contra um trabalho jornalístico honesto.

Já no caso de Chico Xavier, este foi o vilão da situação. Ele se apropriou do nome de Humberto de Campos e, junto a um dom mediúnico que nem sempre se manifestava - às vezes Chico nem praticava mediunidade, mas precisava atribuir psicografia a tudo que envolvesse seu nome para não desagradar as pessoas - , produziu obras que destoam do que Humberto havia produzido em vida.

Ainda vamos falar mais sobre isso. Mas o que se sabe é que o episódio obrigou a FEB a ser mais seletiva na atribuição de psicografias, mesmo tendo o risco de explorar o mito sensual de Marilyn Monroe, por exemplo, se apropriando de estrangeiros para seu sensacionalismo religioso.

Em diversos casos, seria difícil adaptar certas personalidades a um padrão de "mensagens espíritas" baseadas na pregação religiosa de "amor, caridade, luz e fraternidade". Imagine mensagens assim atribuídas a figuras associadas à rebeldia como Ronnie James Dio, Joey Ramone, Bon Scott (primeiro vocalista do AC/DC) e outros?

Alguém aceitaria um domesticado e patético "Jimi Hendrix" falando de coisas assim: "Fiz uma viagem nas trevas púrpuras da alma, enfrentando uma existência de torturas cósmicas, mas de repente me vi hospedado numa colônia espiritual e benfeitores me ofereceram bênçãos e assistência, mostrando a palavra de Jesus como a rota segura para meu futuro"? Não.

Já foi muito difícil criar um "Raul Seixas" ainda apegado em viagens místicas ou um "Renato Russo" pedindo para que "sejamos menos ateus", ou um "Cazuza" caricato que mais parecia um desses playboys bregas lançados em programas do SBT. Nem todo mundo tem o perfil que traga alguma verossimilhança nas pregações religiosas das mensagens ditas "espíritas".

Voltando ao caso de Mané Garrincha, diante do processo acima citado, também seria difícil a FEB escolhê-lo para "personificar" a mensagem recentemente divulgada, pelas mesmas razões de ameaça judicial que não ocorreram mas poderiam ocorrer, se a mesma tivesse sido atribuída ao "espírito Mané Garrincha". A FEB seria jogada na "arena dos leões" dos tribunais, só para citar uma alegoria romana.

Daí ter sido mais cômoda atribuir a mensagem a um espírito há muito falecido, José do Patrocínio que, pelo prazo decorrido, tem sua obra atribuída ao domínio público, assim como sua imagem. Além do mais, era um simpatizante do Segundo Império, de cuja época a FEB define como seus "anos dourados", pela ajuda política e financeira do governo imperial para o surgimento da FEB, em 1884.

Por isso, a seletividade da "escolha" dos falecidos é algo que existe mesmo no Espiritolicismo. Os "médiuns" nem sempre fazem o papel de "lápis de Deus" e eles mesmos, que se impõem, feito anti-médiuns, não como intermediários das mensagens espíritas, mas como líderes do espetáculo "espiritualista", escolhem ao bel prazer o falecido de sua estimação.

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