quinta-feira, 31 de julho de 2014

As estranhas mudanças editoriais de Parnaso de Além-Túmulo


Começamos a ler a tese A Poesia Transcendente de Parnaso de Além-Túmulo, de Alexandre Caroli Rocha, que a FEB anuncia como uma tese de pós-graduação que, de "maneira surpreendente", legitima a autoria dos poemas e prosas atribuídos a escritores e poetas falecidos na suposta psicografia de Francisco Cândido Xavier.

No começo do trabalho, o que chama muito a atenção é que o mesmo livro foi publicado em várias edições, todos com emendas nas obras publicadas ou com a exclusão de antigos poemas, em detrimento da aparentemente normal inclusão de novos poemas e prosas de autores aparentemente ausentes em edições anteriores.

São seis edições: a primeira, de 1932, chegou a receber uma crítica de um desconfiado Humberto de Campos, em vida. Depois vieram as seguintes reedições: 1935, 1939, 1944, 1945 e a definitiva, em 1955.

Segundo a versão oficial, o conteúdo do livro teria sido organizado pelo espírito de Emmanuel, o suposto orientador espiritual de Chico Xavier. Caberia ao jesuíta a avaliação do conteúdo dos livros e à decisão de sua publicação, como uma espécie de "editor do além".

O livro já cria estranheza, pelo menos para os especialistas em literatura, por usar o termo "Parnaso", um termo bastante gasto devido ao desgaste do movimento parnasiano que havia sido "derrubado" pelo Movimento Modernista, que em 1932 já havia se consolidado no Brasil. O que dá um indício do latente conservadorismo e da visão antiquada do anti-médium mineiro.

Mas isso talvez só tenha importância nos meios literários, já que para os pouco especializados em literatura isso não faz muita diferença. No entanto, um aspecto põe em xeque a suposta perfeição e a pretensa transparência da obra dita mediúnica, já em primeira vista.

Afinal, se Parnaso de Além-Túmulo se anunciava como um fruto de "espíritos benfeitores", e se definia como um trabalho de "mensagens edificantes", por conta de toda a mística perfeccionista do "espiritismo" de Chico Xavier, por que seu conteúdo teve que ser revisto e muitos dos "valiosos" poemas fossem suprimidos de uma edição para outra?

Sim, o Chico Xavier, ele mesmo tido pela FEB como pessoa de "inegável perfeição" e classificado pela revista O Reformador como uma das pessoas mais evoluídas que passaram pela Terra, de obras "seguramente evoluídas", tinha que fazer reparos num de seus livros conforme exigiam as conveniências.

Algumas dessas mudanças teriam sido inócuas, supostamente para reforçar a expressão poética, como no poema atribuído ao poeta parnasiano Augusto dos Anjos, "Homo", no qual o verso "O homem era o produto abstruso da ânsia", da primeira para a segunda edição, deu lugar a "O homem era o fruto abstruso da ânsia".

A alegação que foi dada era para "aperfeiçoar" a métrica, já que surgiram queixas sobre aspectos irregulares da produção poética em comparação com que os supostos autores haviam produzido em vida.

Outro exemplo de "acerto de métrica" seria atribuído a "Miniaturas da Sociedade Elegante", supostamente de Artur Azevedo, dramaturgo, jornalista e poeta que havia sido irmão de Aluísio Azevedo, este autor de O Cortiço e O Mulato. Artur está associado sobretudo às comédias teatrais e a peças como A Capital Federal, de 1897.

No referido poema, pelo menos dois reparos foram feitos entre a segunda e a terceira edições de Parnaso, como substituir "Seu bacharel e meigo enamorado" por "Bacharel delambido e enamorado", e "Sua esposa beijava o seu amigo" por "Viu que a esposa beijava um seu amigo".

Outro reparo tendencioso, feito para forjar erudição foi com relação ao poema "Contrastes", atribuído ao espírito de Auta de Souza (1876-1901), a linda negra potiguar que havia sido poetisa ultrarromântica de acentos simbolistas, lançou o livro Horto e que havia falecido de tuberculose.

Neste poema de Auta, a alteração de verso, trocando "Tanto desânimo e tantas desventuras" por "Tal desalento e tantas desventuras", além de "reparar" a métrica, adotaria um tom mais erudito, já que a expressão "desalento" é de uso mais elitizado e culto do que a palavra "desânimo", voltada mais para o uso coloquial.

Há as eliminações sem explicação aparente, seja de Chico Xavier ou da FEB, ou então porque foram vistos como "violentos". A supressão, na quinta edição, de "Número infinito", tido como de Augusto dos Anjos, não teve qualquer explicação. Já "Guerra", também atribuído a Augusto dos Anjos, teria sido eliminado na mesma edição por "repetição de tema" constante em outros textos do livro.

Por sua vez, Guerra Junqueiro, poeta português que viveu entre 1850 e 1923 e autor do livro A Velhice do Padre Eterno, que lhe resultou em reações indignadas de intelectuais católicos, teve uma biografia amenizada na sexta edição, eliminando sua postura crítica contra a Igreja Católica.

Desta forma, onde se lia "Notável, sobretudo, pela sua hostilidade à Igreja de Roma, vemos por sua produção de agora, que os anos do além-túmulo não lhe alteraram a sadia e lúcida mentalidade, nas mesmas diretrizes", passou-se a ler "Notável, sobretudo, pela sua veia combativa e satírica".

Guerra Junqueiro também esteve associado a um poema atribuído à sua autoria, "Contra a Besta Apocalíptica", excluído da sexta edição de Parnaso de Além-Túmulo. A medida não foi justificada, embora Clóvis Ramos, autor do livro 50 Anos de Parnaso, sugerisse que o poema foi suprimido pelo seu conteúdo violento contra a Inquisição Católica.

E todos esses processos, a decisão é atribuída a Emmanuel. O livro atingiu sua edição definitiva pela sexta edição, de 1955, definido por Francisco Thiesen, ex-dirigente da FEB, em artigo seu, como "edição adulta", com seus "vinte e poucos anos" em relação à publicação original.

Sobre as alterações, Thiesen tentou justificar da seguinte maneira: "Houve aumento de páginas (...), mas ocorreram também supressões de algumas unidades (...). É que, com a 6ª edição, a obra passou a obedecer a delineamentos estruturais de globalidade unificada, e isso exigiu modificações de variada gama em centenas de versos, estrofes, sonetos, poemas...".

Então tá.

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