terça-feira, 22 de julho de 2014

FEB tratou um livro humorístico como assunto sério


É uma grande malandragem. Afinal não dá para ver ingenuidade na declaração do antigo presidente da Federação "Espírita" Brasileira, Wantuil de Freitas, que havia declarado improcedente a acusação de plágio contra Chico Xavier, no livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de 1938.

A acusação de refere a um capítulo do livro O Brasil Anedótico, livro que o escritor Humberto de Campos lançou em vida, em 1927, intitulado "Lei das Aposentadorias". Campos, como espírito, é atribuído como autor do livro "psicografado" por Xavier, quatro anos após o falecimento do ilustre escritor, em 1934.

Como era uma questão ainda nova, a da obra atribuída à produção além-túmulo de pessoas falecidas, ela não constituiu num problema sério para ser apreciado judicialmente, e a Justiça deixou passar o processo que o advogado dos herdeiros de Humberto, Milton Barbosa, moveu contra Chico e a FEB.

Com isso, a FEB ficou com moral alta, já que foi um empate que trouxe vantagem para a instituição e para a transformação de Chico em ídolo popular, até hoje, 12 anos após o falecimento do anti-médium mineiro.

Em 1944, Wantuil tentou argumentar com as seguintes palavras as acusações de que Chico teria copiado o capítulo do livro de Humberto, apenas tendo a habilidade de rearrumar as palavras para dar a impressão de que o texto é diferente:

"Os trechos de “Brasil Anedótico”, que são indicados como plagiados por Francisco Xavier, não podem ser considerados como tais. Qualquer escritor, relatando em nova obra o que já dissera em outra, repete frequentemente as mesmas expressões. Ademais, não haveria necessidade de plagiar naquela narrativa feita em termos comuns. Muitos dos plágios apontados são aliás transcrições de trechos de outros livros e se encontram entre aspas, na obra psicografada".

O que chama a atenção, não somente pela incoerência dos argumentos de Wantuil, é em relação aos dois livros envolvidos, O Brasil Anedótico e Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. A comparação torna risíveis os argumentos do então presidente da FEB.

Em primeiro lugar, Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho se autodefine como um livro "sério". Na interpretação da FEB, trata-se de um documento histórico que esclarece as profecias do "anjo" Ismael, suposto mentor espiritual do Brasil, de que o país sul-americano seria o guia futuro da humanidade planetária.

O Brasil Anedótico é, tão somente, um livro humorístico. Nele Humberto, com base em relatos diversos consultados em outros livros, conta piadas leves relacionadas às personalidades em evidência no século XIX e na década de 1920 do século XX, época da produção e lançamento do livro.

Seria trágico se não fosse cômico. Um livro de piadas que, com um capítulo reproduzido num livro que, em tese, se define como "sério", só pode indicar o quanto as fraudes que se fazem sob o véu do "espiritismo" brasileiro criam situações bastante embaraçosas, às quais nenhuma alusão de "palavras de amor e luz" consegue atenuar.

A título de comparação, seguem os dois trechos, em reprodução já publicada no blogue Obras Psicografadas. Primeiro, o original, e depois, o trecho plagiado. O capítulo do livro de Humberto de Campos se encontra por volta da página 110. Já o do livro de Chico Xavier, se encontra no capítulo "D. João VI no Brasil", e o trecho do plágio está na página 66.

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A LEI DAS APOSENTADORIAS

Moreira de Azevedo – “Mosaico Brasileiro”, pág. 52.

Chegada ao Rio de Janeiro em 1808 a família real portuguesa com todo o seu séquito de fidalgos e fâmulos, foi posta em execução a chamada lei das aposentadorias, a qual obrigava os proprietários e inquilinos a mudarem-se, cedendo as casas para residência dos criados e servidores d’el-rei. Bastava que o fidalgo desejasse uma casa, para que o juiz aposentador intimasse o morador por intermédio do meirinho, que se desempenhava do seu mandato escrevendo sumariamente na porta, a giz, as letras P. R. Estas significavam — “Príncipe Regente”, ou, como interpretava o povo — “ponha-se na rua”.

Era Agostinho Petra de Bitencourt juiz aposentador quando, um dia, lhe apareceu um fidalgote, requerendo aposentadoria em uma excelente casa, apesar de já ter uma. Dias depois veio pedir-lhe mobília e, finalmente, escravos.

Ao receber o terceiro pedido, Agostinho Petra, que acompanhava a indignação do povo com tantos abusos da Corte, gritou para a esposa, no interior da casa:

— Prepare-se Dona Joaquina, que pouco tempo podemos viver juntos.

E indicando, para a mulher, que acorrera, o fidalgote insaciável:

— Este senhor já duas vezes me pedir casa, depois mobília, e agora, criado. Brevemente quererá, também, mulher, e como eu não tenho outra senão a senhora, ver-me-ei forçado a servi-lo!

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D. JOÃO VI NO BRASIL

(...) A chamada lei das aposentadorias obrigava todos os inquilinos e proprietários a cederem suas casas de residência aos favoritos e aos fâmulos reais. Bastava que qualquer fidalgote desejasse este ou aquele prédio, para que o Juiz Aposentador efetuasse a necessária intimação, a fim de que fosse imediatamente desocupado. Ao oficial de justiça, incumbido desse trabalho, bastava escrever na porta de entrada as letras “P. R.”, que se subentendiam por “Príncipe Regente”, inscrição que a malícia carioca traduzia como significando — “Ponha-se na rua”.

Moreira de Azevedo conta em suas páginas que Agostinho Petra Bittencourt era um dos juizes aposentadores ao tempo de D. João VI, quando lhe apareceu um fidalgo da corte, exigindo pela segunda vez uma residência confortável, apesar de já se encontrar muito bem instalado. Decorridos alguns dias, o mesmo homem requer a mobília e, daí a algum tempo, solicita escravos. Recebendo a terceira solicitação, o juiz, indignado em face dos excessos da corte do Rio, exclama para a esposa, gritando para um dos apartamentos da casa:

— Prepare-se, D. Joaquina, porque por pouco tempo poderemos estar juntos.

E, indicando à mulher, que viera correndo atender ao chamado, o fidalgo que ali esperava a decisão, concluiu com ironia:

— Este senhor já por duas vezes exigiu casa; depois pediu-me mobília e agora vem pedir criados. Dentro em breve, desejará também uma mulher e, como não tenho outra senão a senhora, serei forçado a entregá-la.

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