terça-feira, 17 de outubro de 2017

"Ração humana" e os paliativos do Assistencialismo


O Brasil não consegue resolver a pobreza de maneira frontal e transformadora. Se prende em ações paternalistas como a "caridade" religiosa que se fundamenta no Assistencialismo, feita mais para causar comoção no público do que para realizar resultados definitivos de emancipação plena das pessoas carentes que, neste caso, só recebem benefícios relativos, mesmo que "definitivos".

Ninguém imagina que essa "caridade" que produz lágrimas em plateias acomodadas em seus confortáveis assentos nas palestras religiosas, ou nos sofás de suas salas vendo "lindos exemplos de amor e superação" nas atrações televisivas, não traz resultados sociais profundos, servindo mais para a promoção pessoal do "benfeitor" que, independente de aparentes boas intenções ou não, têm muito mais cartaz pelos benefícios a que supostamente está associado.

Pior: quando um governante como o ex-presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, estabelece políticas de inclusão social que, embora a princípio paliativas, causam impulso para experiências sociais maiores, a mesma sociedade que santifica um "médium espírita" pelo quase nada que fez pelos pobres chama Lula de "criminoso comunista".

A sociedade "do bem" se horroriza quando uma empregada doméstica ou um faxineiro do prédio pegam o elevador social quando não estão com o material de serviço. A pessoa "caridosa" se irrita quando, ao jogar uma embalagem de um lanche no chão, é advertido por um gari a pegar o objeto e colocá-lo na lixeira.

Mas quando são atitudes superficiais como dar sopinha para os pobres e doar mantimentos, muitos ruins, e roupas, muitas rasgadas, aí é a maior festa. "Caridade transformadora", exageram muitos, criando uma torcida para santificar o "benfeitor" de ocasião. Os mantimentos doados se esgotam em duas ou três semanas, e até menos, por causa de famílias numerosas. Mas a "caridade" que resultou nesses donativos é festejada por mais tempo, até um ano.

Há muito o que discutir sobre caridade, porque muitas pessoas não percebem o quanto os pobres são tratados como se fossem cãezinhos domésticos enquanto o "benfeitor" recebe medalhas e outros prêmios, excursionando pelo mundo recebendo homenagens pelos resultados ínfimos que trouxe à população carente.

Ver que o "médium" Divaldo Franco virou, sob as bênçãos da Rede Globo, o "maior filantropo do Brasil" por ter ajudado menos de 0,01% da população brasileira é muito constrangedor. Soa como uma gafe. A bondade humana é condicionada à carteirada religiosa, enquanto ações de baixa eficiência e de nível apenas paliativo são superestimadas, criando uma filantropia espetacularizada na qual há comemorações demais e transformações sociais de menos.

O pobre continua excluído, a doença da pobreza não é curada, apenas as dores são aliviadas. Mesmo quando se oferece emprego e alguma qualidade de vida, ela é baixa, e feita sobretudo sob o custo do ensino religioso dissimulado num projeto pedagógico "sem fins lucrativos" e "gratuito". Nada muito diferente do que os neopentecostais defendem com o projeto Escola Sem Partido.

Ou seja, na Mansão do Caminho, a pessoa pode até aprender um emprego, mas paga o preço em acreditar em bobagens como "crianças-índigo", importadas por Divaldo de esotéricos de valor bastante duvidoso. E o cidadão, com isso, se limita a ser apenas "mais um no rebanho", até porque a ideia de "rebanho" é muito defendida por religiões "cristãs", seja o Catolicismo conservador, as neopentecostais e a "espírita".

Diante dessas situações de ineficiência e inferioridade social preservada nas classes pobres, vêm à tona uma iniciativa que, assim como a Escola Sem Partido, traz novas questões a respeito do que é uma visão elitista de "caridade" que, até agora, gozava de confortável unanimidade na sociedade mais influente.

É bom lembrar que, antes da divulgação da Escola Sem Partido, as pessoas não conseguiam entender o mal de um projeto pedagógico que evitasse debater a realidade social e, em contrapartida, respeitar fantasias ligadas a crenças religiosas. Mesmo pessoas que se consideravam "progressistas" caíam na cilada de defender esse projeto pedagógico, até caírem na real ao ver a Escola Sem Partido como uma bandeira educacional dos inimigos de Dilma Rousseff que tomaram o poder em 2016.

Agora, temos o projeto da "ração humana" do prefeito de São Paulo, João Dória Jr., que é o aproveitamento de restos de comida que seriam processados num composto alimentar em formato de bolas granuladas, similar ao que se faz com rações para cachorros e gatos vendidas nos supermercados. O projeto é intitulado "Alimento para Todos".

O PREFEITO DE SÃO PAULO, JOÃO DÓRIA JR., ASSINANDO O PROGRAMA "ALIMENTO PARA TODOS" COM UMA AMOSTRA DO ALIMENTO PROCESSADO. À DIREITA, CHARGE PARODIANDO A INICIATIVA.

A iniciativa do prefeito João Dória Jr., criticada pelos movimentos sociais e por especialistas em Nutrição, foi anunciada sem a apresentação de estudos e critérios nutricionais e a empresa contratada, a Sinergia, não possui fábrica e só trabalha com parcerias com outras empresas.

A ideia do alimento processado, destinado a ser distribuído para igrejas e templos - não há informação se as "casas espíritas" também fornecerão o produto - , é criticada também pelo plano ideológico: a "ração humana", como é conhecida, está associada a um projeto desumanizado de alimentação do povo pobre, sendo uma opção duvidosa para a falta de acesso das populações carentes a uma alimentação de qualidade.

É claro que alguns "espíritas" vão dizer que oferecem "alimentação de qualidade" para as populações carentes e vão considerar o projeto de João Dória Jr. bastante discutível. Tudo bem. Mas a vida é tão complexa que até mesmo uma simples concessão de sopas, mingaus e alimentação básica através do Assistencialismo, mesmo com todo o cuidado nutricional e higiênico mínimos, não é suficiente para dar ao povo pobre a alegada transformação social de suas vidas.

O que se vê é que os projetos de "caridade" ao povo pobre trazidos pelas elites, das quais as religiões como o Catolicismo, as seitas evangélicas originais e as pentecostais e o "espiritismo" brasileiro se inserem no contexto social, não o fazem romper sua inferioridade social, mesmo quando lhes ajudam a obter um emprego.

Casos como a Escola Sem Partido, o "Alimento para Todos" de João Dória Jr. e a "filantropia" do Caldeirão do Huck, comandado pelo apresentador e empresário Luciano Huck - um dos fundadores do movimento Renova BR, que patrocina candidatos políticos de perfil conservador - , nos fazem pensar sobre o caráter duvidoso de uma "caridade" que pouco ajuda os necessitados e apenas expõe o "benfeitor" à adoração pública.

Essas iniciativas trazem novas questões que mesmo pessoas que se diziam "progressistas" conseguiam admitir, e que servem para apontar defeitos que neopentecostais e "espíritas" possuem, mas que muitas pessoas, mesmo aparentemente esclarecidas, se recusavam a admitir e contestar. Tais iniciativas apelam para "ajudar o próximo" sem causar ruptura alguma ao sistema de desigualdades sociais nem com os privilégios das classes dominantes.

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