quinta-feira, 21 de abril de 2016

O discurso do "funk carioca" dialogando com o de Chico Xavier


País insólito o Brasil, que sempre tenta trabalhar o novo com bases velhas. O "espiritismo" brasileiro, tão tido como futurista, se fundamentou em bases velhas do Catolicismo português, que estabeleceu a formação religiosa brasileira e, em plena era da Revolução Industrial, mantinha valores medievais em seu conteúdo.

Ficamos analisando as supostas "profecias" de Francisco Candido Xavier sobre a tal "data limite", com seu pretenso futurismo, quando o "médium" praticamente é visto como "senhor do nosso destino", e que muitos querem que seja o "maior brasileiro de todos os tempos" na marra.

Plagiador e pastichador de livros, forjador de falsas psicografias, mistificador religioso dos mais retrógrados, moralista severo, defensor da ditadura militar quando até Carlos Lacerda havia passado a se opor ao regime, Chico Xavier no entanto é visto como se fosse o "dono do Brasil", quase um líder totalitário que exerce o poder simbolicamente post-mortem.

O caixeiro e escrevinhador de imitações de estilos alheios - mas não sem a colaboração de outros escritores da FEB e de consultores literários a seu serviço - tornou-se "dono do nosso futuro", como se não fosse suficiente ser o "dono dos mortos", mesmo quando a turma do além-túmulo se mantém incomunicável para os brasileiros vivos, já que o "médium" escreve tudo da própria imaginação.

Ficamos comparando o discurso de Chico Xavier com outro que mantém a mesma persistência de persuasão, o mesmo coitadismo, o mesmo falso futurismo, o conservadorismo travestido de falso prgressismo, o do "funk carioca", considerando seus derivados como o "funk ostentação" paulista.

Recentemente, o "ativista" do "funk", MC Leonardo, apadrinhado pelo cineasta José Padilha, do Instituto Millenium, tentou apelar para um pretenso esquerdismo progressista no artigo da Caros Amigos, "Tá tranquilo, tá favorável" (Chico Xavier adoraria esta frase), tentando empurrar a aceitação do "funk" pelos esquerdistas nos tempos em que a presidenta Dilma Rousseff sofre o risco de perder o mandato. Até a edição deste texto, a votação do impeachment ainda não ocorreu.

MC Leonardo, conhecido, com seu parceiro MC Júnior, pelo sucesso "Rap das Armas", tenta dissimular o vínculo do "funk" com a Rede Globo, que sempre existiu, dizendo que o ritmo se "fortaleceu" como a Internet. Mas se até Kim Kataguiri, Jair Bolsonaro e o Pato da FIESP se "fortaleceram" com a Internet...

DISCURSO ANÁLOGO

Aliás, tanto Chico Xavier e o "funk carioca" são "crias" da Rede Globo, tais como Fernando Collor e Sérgio Moro. Todos de alguma forma existiam e atuavam antes da "mão invisível" da "Vênus da Família Marinho", mas seus mitos foram trabalhados e fortalecidos pela famosa corporação da rede televisiva, as Organizações Globo.

A grande diferença é que, diferente de Sérgio Moro e, em parte, de Fernando Collor - que não conseguiu convencer se passando por "herói libertário" de um possível revival dos anos 90 (que nos traria, sob o rótulo de "grandes personalidades", nomes como Gugu Liberato, Solange Gomes e até Guilherme de Pádua) - , o "médium" e o ritmo carioca não têm seu vínculo com a Globo reconhecido por várias pessoas.

Pelo contrário, os dois mitos, com toda a sombra da Rede Globo que os protege, tentam sobreviver à revelia dessa associação, explícita e verídica, porém dificilmente assumida pela sociedade. Pessoas que se declaram opositoras do poder midiático tentam aceitar e apreciar tais mitos como se eles estivessem fora desse contexto, o que não é verdade.

Afinal, tanto Chico Xavier e o "funk carioca" evocam um discurso paternalista em relação às classes pobres. É um discurso positivista, diferente do rancor verbal de veículos como Jornal Nacional ou de gente como Merval Pereira e um Arnaldo Jabor nas histerias anti-petistas. Só que esse discurso positivista é confundido por muitos como esquerdismo, como se tratar o povo pobre com paternalismo soasse algo progressista. Mas não é.

Nota-se que, por trás desse discurso "generoso", que evoca uma aparente felicidade que faz as elites dormirem tranquilas - a classe média alta "progressista", de vez em quando, mostra seus preconceitos elitistas de classe média alta - , há um conteúdo bastante conservador, latente em suas palavras "positivas".

Aparentemente, Chico Xavier e o "funk carioca" trafegam em mãos opostas, o primeiro com sua religiosidade associada a "valores morais elevados", o segundo com sua licensiosidade associada à "liberdade dos instintos". No entanto, a essência dos dois discursos é rigorosamente a mesma.

Ambos sutilmente apelam para a Teologia do Sofrimento, da resignação da inferioridade social. Chico Xavier dizia para os sofredores não reclamarem e aceitarem suas desgraças sob o pretexto de que isso trará as "bênçãos" prometidas. É como se Chico Xavier desenhasse a sociedade medieval em solo brasileiro, e o "funk" ficasse com os festejos pagãos (o "carne-vale") dessa sociedade.

Já o "funk" faz apologia da ignorância, glamouriza a pobreza, e trata as favelas de maneira espetacularizada, algo que seria facilmente contestado por Guy Debord e Jean Baudrillard, se eles fossem vivos e conhecessem o gênero, mas aqui é aceito até de maneira ferrenha por uma considerável parcela de intelectuais.

A reboque do "funk", temos um suposto feminismo feito com bases machistas. O erotismo obsessivo da Mulher Melão (Renata Frisson) e Mulher Melancia (Andressa Soares), adotado também de forma politicamente correta por Valesca Popozuda, segue as bases ideológicas da "mulher-objeto", trabalhada como um suposto rito de "libertação" da mulher-coisa do "jugo masculino".

Só que esse discurso é falso. A mulher-objeto continua sendo mulher-objeto, embora queira ser "gente". E, fora desse âmbito, observa-se que o "funk" trabalha estereótipos racistas travestidos de anti-racismo, tratando o povo negro de maneira estereotipada e caricatural.

Chico Xavier e o "funk" pegam desprevenida uma opinião pública que não conhece a realidade do povo pobre. A opinião pública é enganada pelas retóricas em que pobres sofredores têm que viver "felizes" e a ascensão social tem que ser feita mantendo os paradigmas de dominação, que ambos os discursos expressam consentimento e conivência.

Por trás de ambos os discursos, há a imposição dos papéis que os pobres são obrigados a desempenhar, muitas vezes de forma restritiva e opressiva, embora as retóricas apelem para um pretenso ufanismo, do "orgulho de ser pobre" e do sofrimento como "presente de Deus".

Musicalmente, o "funk" é considerado por especialistas como de ferrenho rigor estético, apenas nivelado por baixo. Seu mercado musical é tão perverso quanto o McDonalds, por trás da imagem "disneyficada" dos fetiches funqueiros. Há uma hierarquização nunca assumida oficialmente, entre os DJs e também empresários, "líderes" do processo, e os MCs e dançarinas, os "porta-vozes" do espetáculo.

BLINDAGEM FERRENHA

Outro aspecto é o coitadismo. Chico Xavier, quando era criticado, fazia pose de vítima, reagia em "silêncio", fazia-se de "perseguido" resignado, como que num ataque às avessas, tentando vencer o adversário se passando por um derrotado. Até quando intelectuais e cientistas estão com a razão, Chico tentava vencê-los pelo coitadismo que seduz os seguidores do "médium".

O "funk" também apela para o coitadismo se dizendo "discriminado" pelas elites, enfatizando no discurso a falsa postura de "vítima de preconceito" por ser "a expressão das periferias", "som de preto e pobre". É uma retórica verossímil mas dotada de muita hipocrisia.

O que também chama a atenção também é a blindagem ferrenha, quase inabalável, dos dois discursos. Não há uma denúncia oficial de irregularidades envolvendo Chico Xavier, da mesma forma que ninguém tem coragem de contestar o "funk", a não ser os detratores de sempre, movidos apenas por aspectos emocionais.

Os funqueiros são considerados "santos" e aceitos, em muitos casos por boa-fé, por uma parcela de intelectuais progressistas que, com uma certa ingenuidade, acreditam que o "funk" expressa uma nova etnografia similar a dos antigos grupos indígenas e africanos, ignorando que o ritmo carioca esconde uma severa lógica de mercado e um apetite midiático que anula seu alegado valor artístico-cultural.

O rigor estético se refere ao fato de que as músicas do "funk" são quase sempre iguais umas às outras. Muda apenas o "vocalista", pois até as sampleagens são iguais. O MC não pode compor melodias nem tocar instrumentos, tem que cantar mal e se limita apenas a segurar o microfone.

Os DJs é que combinam mudanças, seja para agradar turistas e antropólogos, seja para dizer que "o ritmo evolui artisticamente", dentro de uma série de demagogias conhecidas mas não assumidas como tais. Mudanças feitas somente de acordo com as demandas de mercado.

Como Chico Xavier, o "funk" tenta se passar por "futurista". Assim como Chico Xavier é visto como "profeta do futuro", sendo visto por muitos como o "único guia viável do futuro do Brasil", o "funk" tenta se vincular ao contexto da música eletrônica e das manifestações modernistas, de forma oportunista, tendenciosa e falsa.

Afinal, muitos dos valores que o "funk carioca" e seus congêneres (como o "funk ostentação") difundem são retrógrados e impõem medidas consideradas paliativas e emergenciais como "permanentes", como a prostituição e a residência em favelas, transmitindo a ideia latente e perversa de que o "pobre tem que ficar como está, ou se evoluir nos limites de suas condições".

É mais ou menos que diz a "bondade" de Chico Xavier, pregando uma caridade paliativa que, quando traz alguma mudança, é sempre evitando mexer no sistema de classes e nas injustiças e desigualdades sociais existentes.

Desse modo, a opinião pública deveria prestar atenção nesses dois discursos, o da "filosofia" de Chico Xavier e da "etnografia" do "funk". Por trás do discurso "positivo", conceitos bastante conservadores e retrógrados são difundidos sob a máscara do "progressismo", transformando o país em refém de ideias antiquadas fantasiadas de "modernas".

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...