terça-feira, 12 de abril de 2016

Procastinação, um princípio "espírita"?


O "espiritismo" despreza a vida material, porque acha que a encarnação é apenas uma relação simplória de conflitos, auxílios ou alianças, desconhecendo individualidades e contextos temporários. Acha que o espírito não precisa intervir na vida material, tornando-a mais proveitosa e justa, e crè que sacrifícios e infortúnios pesados podem ser suportados com prazo indefinido.

Há a desculpa de que, só porque a "verdadeira vida" está no mundo espiritual, tanto faz uma pessoa deixar de fazer uma coisa numa encarnação e adiá-la para a seguinte. A ideia de que, só porque existe reencarnação, toda encarnação pode ser igual a outra e as oportunidades permanecem as mesmas, o que não procede na prática.

Existe reencarnação, mas cada encarnação é única. Se a pessoa deixa de fazer uma coisa numa encarnação, terá dificuldades de fazê-la na encarnação seguinte. Mudam-se os contextos, os papéis sociais, os interesses.

Quando uma pessoa falece ("desencarna"), geralmente leva um tempo para reencarnar. Suponhamos uma média de dois anos. Quando reencarna, precisa de cerca de vinte anos para retomar o nível de consciência da vida que ficou latente na infância e adolescência.

Com isso, são pouco mais de vinte anos que a pessoa terá que recuperar da experiência encarnacional perdida. E se uma pessoa realizou uma grande tarefa e a deixou natimorta, ao falecer precocemente, não serão os cerca de vinte e cinco anos que terá que esperar para recobrar a consciência plena de seus potenciais que possibilitarão a façanha perdida.

Imaginemos Jimi Hendrix, o genial guitarrista estadunidense, que faleceu com 28 anos incompletos, em setembro de 1970, reencarnando por volta de 1975. É uma suposição, para facilitarmos a análise. O grande guitarrista, em tese, ganhou nova oportunidade para desenvolver o seu brilhante talento de músico, compositor e intérprete.

Todavia, o cenário que ele irá encontrar será outro. A única coisa é que as pessoas se vestirão quase de forma semelhante ao pessoal do final dos anos 1960, mais precisamente 1969. Mas a mentalidade não será a mesma. O niilismo grunge, o besteirol do poser metal, o rock transformado num grande negócio, músicos que mais parecem preocupados com a atitude do que a música.

O Hendrix reencarnado encontraria dificuldades até para procurar seus parceiros e seu meio social. Eles existem, mas têm muito menos espaço na mídia e no mercado do que em 1967, ano de ascensão do músico. E sua música excepcional pode até continuar em sua mente, mas infelizmente o pioneirismo se dissolveu diante de tantos arremedos do som hendrixiano que se produziu ao longo dos anos.

Isso é um grande drama, como tantos outros. O roqueiro que viveu os anos 1980 tinha um cenário cultural mais visceral, como o emepebista dos anos 1960. Se morrem no meio do caminho e reencarnam pouco depois, quando chegarem aos 20 anos verão as coisas diferentes e, no contexto social que conhecemos, bem piores.

Nos anos 80, havia a Fluminense FM, rádio especializada em rock, feita com pessoal especializado, locutores de estilo próprio e não tocava somente os "grandes sucessos". Três décadas depois, o que temos de "rádio rock" se chama Rádio Cidade, não tem pessoal especializado, seus locutores adotam o mesmo estilo irritante das FMs pop e o repertório se limita aos hits. Péssimo espaço para o músico de rock reencarnado divulgar seu diferenciado talento.

Nos anos 60, havia a Bossa Nova e o músico emepebista podia conviver com nomes como Elizeth Cardoso, Sérgio Mendes, Edu Lobo, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Oscar Castro Neves e outros. Se ele morre no meio do caminho e reencarna nos anos 80, tendo cerca de 30 anos hoje, quem serão os colegas de convívio?

Ele conviverá com Joelma, Luan Santana, Michel Teló, Thiaguinho, Belo e Zezé di Camargo. O mais próximo de Elizeth Cardoso que encontrará é Ivete Sangalo, que, sabe-se muito bem, está a anos-luz aquém da "Divina".

Ficamos imaginando alguns reencarnados. O que seria Newton Mendonça, reencarnando em 1965, com 51 anos atualmente, procurando um parceiro como tivera em Tom Jobim. O máximo que encontrará é um canastrão brega, pretensioso e oportunista como Michael Sullivan. Ou então, fora do mainstream, masturbadores pós-tropicalistas que são meras enciclopédias pop fajutas, como um Zeca Baleiro dos piores momentos.

E Anísio Teixeira, o grande mestre educador? Que projeto educacional ele poderá desenvolver para pessoas que veem a vida como um jogo de Minecraft e seu nível de leitura é estimulado com obras de "livros para colorir" (?!). E o que faria Leila Diniz num cenário de mulheres-frutas e outras siliconadas que confundem feminismo com livre-mercado das mulheres-objetos?

O adiamento das oportunidades, devido aos infortúnios sem controle, é um grande malefício que a moral "espírita" deixa passar. Talentos são desperdiçados pelas desgraças acumuladas, num contexto em que medíocres, estúpidos e facínoras levam a melhor e sofrem apenas provações leves, enquanto quem precisa de ajuda não tem como recorrer e é forçado a abrir mão de suas próprias habilidades.

A procastinação, que é o princípio oculto do "movimento espírita", é o ato de adiar sempre as coisas. Ignorando que os tempos se transformam e as coisas mudam, os "espíritas" pouco se preocupam em ver talentos desperdiçados pelos infortúnios e experiências adiadas para mais de vinte anos, em uma outra encarnação.

Esse é o estrago que a Teologia do Sofrimento, ideologia defendida na prática pelo "movimento espírita", mesmo que nunca seja assumida no discurso (eles costumam pregar, na teoria, o contrário), causa no seu "otimismo reencarnacional". Ignorando que existem várias vidas, mas cada uma delas é única, o "espiritismo" e seu projeto de vida "qualquer nota" se torna impotente para ajudar no crescimento dos indivíduos.

Afinal, a vida é muito mais do que uma relação de ajudas e conflitos, de paciência ou jogo de cintura, de angústias e esperanças. Na encarnação, a pessoa tem muito mais do que um simples processo de resolver divergências ou reforçar afinidades e solidariedades. As necessidades sociais tornaram a vida carnal muito complexa, e isso o "espiritismo" se recusa a compreender.

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