segunda-feira, 1 de junho de 2015

De repente, os anos 1990 no Brasil viraram "anos dourados"

FERNANDO COLLOR DE MELLO, DURANTE POSSE COMO PRESIDENTE DA REPÚBLICA ELEITO, EM 1990.

A década do confisco da poupança, das armações musicais, da desnacionalização da economia, da ditadura midiática, do consumismo exacerbado. A "década perdida" do Brasil, uma década estranha que não teve fim oficial, mesmo em virada de século e milênio, que "continuou" nos anos seguintes e ainda inspira uma nova onda de saudosismo de um "passado" que sempre foi presente.

O mais absurdo disso tudo é que a década passou a ser revista como "genial", e tudo de ruim ou de medíocre que aconteceu entre 1990 e 1999 - com reflexos nas décadas seguintes, até hoje - de repente passou a ser visto como "brilhante", como símbolo de uma "época dourada" que muitos vivem até os dias atuais.

Como explicar, por exemplo, que os nomes musicais considerados "mais geniais" da atualidade são os mesmos que eram símbolo de baixarias e pieguices: Só Pra Contrariar, Grupo Molejo, Beto Barbosa, Luiz Caldas, Michael Sullivan, MC Cidinho & MC Doca, É O Tchan, Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo.

Acredita-se que o mundo não mudou para que as percepções aguçadas de outrora se convertessem numa condescendência a ídolos musicais que não melhoraram seu som. E, o que é pior, mesmo os antigos sucessos da década noventista tornaram-se "clássicos", e o risível "funk carioca" de 1990 ganhou um pretenso status de "genial canção de protesto".

Mas não são só as músicas. Fernando Collor de Mello, o presidente que confiscou as poupanças dos brasileiros, investiu na desnacionalização da economia e ameaçou privatizar as universidades públicas. Quinze anos após ser tirado do poder, ele adquiriu status de "estadista" e recomeçou a trajetória política como senador exaltado pela mídia "independente" e respeitado até por seus antigos opositores.

Um apresentador de TV como Gugu Liberato, símbolo das piores baixarias televisivas, voltou ao ar como um pretenso ícone cult e até como "inimigo da Rede Globo", como festeja uma parcela de seus seguidores. Até o quadro da banheira, alvo de tantas queixas e protestos, voltou ao ar sob aplausos entusiasmados.

Mas o lugar ao Sol também foi dado pelo ex-ator Guilherme de Pádua, que, ao lado da ex-mulher Paula Thomaz, assassinou a atriz Daniela Perez, sua colega na novela Explode Coração, da Rede Globo, no final de 1992, ficou preso, foi entregue à impunidade da liberdade condicional, mas se reabilitou como não deveria ter ocorrido em suas condições.

Ele tornou-se arrogante, exigindo um tratamento respeitoso da mídia e chegou a ameaçar processar a mãe de sua vítima, a escritora Glória Perez, por causa dos comentários indignados que ela fez contra ele. E Guilherme, que hoje se faz de "vítima" (Daniela sofreu "reajustes espirituais"?) ainda foi ajudado por entrevistas recentes que aumentaram seu cachê de sub-celebridade ligada ao sensacionalismo criminal.

Cantores, grupos e duplas que representaram a decadência musical da época, como Chitãozinho & Xororó, Alexandre Pires, Belo, Bell Marques, MC Júnior e MC Leonardo e É O Tchan voltaram à mídia posando de "grandes artistas" a ponto de páginas sobre MPB, com uma certa ingenuidade condescendente, exaltarem vários deles.

Michael Sullivan, o antigo músico da Jovem Guarda que apostou na desnacionalização da música brasileira e na destruição da MPB através de fórmulas comerciais ligadas ao pop comercial mais canhestro, tentou voltar como "gênio injustiçado", usando a mesma MPB que ele quis destruir para retomar a carreira, falsamente conciliador.

Até mesmo as "rádios rock" 89 FM e Rádio Cidade, de desempenho constrangedor e com linguagem e estrutura de programação que nada têm a ver com a realidade e o perfil rock - elas se limitam a ser meros "vitrolões roqueiros" sob roupagem de FMs pop - , retomaram sob as bênçãos da mídia e vistas (erroneamente) como se fossem "rádios de rock sérias e autênticas".

Tudo isso, de repente, ficou "genial" e as percepções se rebaixaram de tal forma que as pessoas que tinham coragem para reprovar tudo isso passaram a elogiá-los. E quem ainda tem coragem de alertar contra a mediocridade dos anos 1990 não possui a visibilidade necessária para expressar suas análises sem sofrer o risco das violentas "patrulhas" que agem nas redes sociais da Internet.

O que se nota é que houve um grande retrocesso mas as pessoas passaram a se acostumar mal. O conformismo gradual do decorrer dos anos fez com que se criasse uma falsa impressão de que aquilo que era bem grotesco e estúpido, ao menos enjoativamente piegas ou caricato, seria algo "brilhante" só pelo fato de que "não" gerou grandes danos sociais ou manteve o sucesso acima de obstáculos.

Os fenômenos da mediocridade ou da futilidade sócio-cultural dos anos 1990 apenas prevaleceram por conta de uma ação organizada aqui e ali, da parte de empresários, juristas, políticos, em diversos âmbitos, que manobraram aqui e ali para que seus clientes ou amigos permanecessem em evidência ou mantivessem seu status social "sem" causar muitos prejuízos sociais.

Só que eles trazem prejuízo, na medida em que se tornam símbolos de valores deturpados, distorcidos, dilapidados, mas que, só porque foram beneficiados pelas conveniências, tornam-se "geniais" sem motivo nem mérito, mas apenas porque aparentemente sabem lidar com o circo da visibilidade e dos conchavos com relativa habilidade.

No entanto, se a década de 1990 - que teve também coisas boas, mas sem a frequência, a fartura e o impacto das décadas anteriores - , sobretudo no Brasil, é tratada como se fossem "os novos anos dourados", isso se deve mais a um arranjo da publicidade e do mercado midiático associado do que de um tardio reconhecimento de uma "genialidade mal compreendida".

Até porque a mediocridade de outrora continua medíocre. As pessoas também não melhoraram sua compreensão, apenas passaram a ter paciência para aguentar tudo isso ou alguma condescendência por conta de um sentimento paternalista ou de alguma perspectiva mercadológica.

Afinal, a mediocridade tornou-se vendável, e a perspectiva econômica criou a ilusão de que, com mais dinheiro, os mesmos ícones da mediocridade se tornarão "cidadãos" e "artistas" melhores. Isso, na verdade, não acontece.

E o que ocorreu mesmo é que as pessoas passaram a ser mais condescendentes com os retrocessos ocorridos no Brasil. O país se perdeu com a "década perdida" e as pessoas simplesmente precisam reencontrar seus critérios de questionamento e percepção aguçada, que a complacência fez perder com o tempo.

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