A emotividade também pode ser traiçoeira. A saudade pode permitir muitas armadilhas. Por isso, no "espiritismo" feito no Brasil, as famílias que perderam seus entes queridos são as mais enganadas e exploradas pelos seus líderes e supostos médiuns, da maneira mais leviana e perniciosa que houver.
Isso é preocupante. Nos processos fraudulentos feitos sob o rótulo de "mediunidade", mães e outros parentes são seduzidos pelo clima de comoção e, tomados pela saudade desesperada, admitem veracidade nas mensagens falsas que recebe, atribuídas a seus filhos ou entes falecidos, pela primeira semelhança que encontram pela frente.
Sem terem coragem de fazer o menor discernimento, as mães traem sua própria confiabilidade ao notarem autenticidade em mensagens atribuídas a seus filhos que apontam claras irregularidades, que podem ser observadas até mesmo sem muito esforço.
O que dizer de tantos exemplos? Por exemplo, o caso da mãe de Humberto de Campos, Ana de Campos Veras, que, de tanta saudade de seu filho, morto ainda relativamente jovem, aos 48 anos de idade, viu "coincidências de estilo" com a obra de seu filho nas supostas psicografias de Francisco Cândido Xavier.
Ana chegou mesmo a ler trechos de Crônicas de Além-Túmulo, primeiro livro atribuído à autoria espiritual de seu filho, além de mandar cartas cumprimentando Chico Xavier por "ter trazido Humberto" de volta com os "novos livros e artigos". A mãe de Humberto de Campos caiu na armadilha das "palavras de amor".
A atitude de Ana é completamente diferente daquela feita pela viúva e pelos filhos de Humberto, que estranharam o uso do nome do falecido marido e pai, em obras que se verificou irregulares e patéticas em comparação com o estilo que o escritor maranhense trabalhou em vida. Moveram um processo contra Chico e a FEB e constataram que o trabalho por estes feito é fraudulento.
A atitude de Ana de Campos não é exclusiva. Vários casos ocorrem ao longo do tempo e são muitos. Recentemente, familiares de algumas vítimas do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, cidade gaúcha, financiaram um livro de supostas psicografias de seus entes falecidos, intitulada Nossa Nova Caminhada.
São apontadas irregularidades diversas, não bastasse o panfletarismo religioso ser bastante carregado e até exagerado, mesmo quando se admite que os falecidos eram religiosos fervorosos. Mas, nas supostas mensagens "do além", eles exageram, mais preocupados em mendigar fraternidade do que dizer de que forma se recuperaram da morte repentina.
E as famílias vão aplaudindo, sem perceber certas nuances. E isso desafia os questionadores do "espiritismo" brasileiro, favorecendo Chico Xavier, Divaldo Franco e companhia, porque, em tese, os familiares são os que mais conhecem os entes falecidos, pelo fato de terem convivido intensamente com eles e conhecido seus hábitos mais peculiares.
Mas, numa observação bem cautelosa, uma questão vem à tona. Será que familiar é o mesmo que ser especialista? E até que ponto um familiar pode conhecer bem o seu ente, e até que ponto uma mãe, um pai, um irmão ou descendente pode reconhecer um falecido através de umas vagas semelhanças? E em que ponto eles podem se enganar ou serem enganados?
O CASO LEGIÃO URBANA
Um exemplo didático é o caso da Legião Urbana. Trava-se uma batalha judicial entre os dois músicos que integraram a banda, o guitarrista Dado Villa-Lobos e o baterista Marcelo Bonfá, que conviveram com o falecido vocalista Renato Russo, e o filho deste, Giuliano Manfredini.
Giuliano não vivenciou a trajetória da Legião Urbana, tendo nove anos de idade quando o pai faleceu. Seus referenciais culturais estão mais próximos de grupos como Charlie Brown Jr. e CPM 22, com perfis bastante divergentes da banda do seu pai. Mas hoje ele é o responsável pela marca Legião Urbana, podendo produzir tributos à banda da maneira que quiser.
Certa vez, Giuliano chamou Ivete Sangalo para cantar ao lado de uma montagem digital, um holograma de Renato Russo, sendo que a cantora baiana nada tem a ver com qualquer momento relativo à banda brasiliense.
Artistas mortos podem ser desviados de seus contextos, dependendo das conveniências. Vide o puxa-saquismo que Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano e a turma da axé-music deram a Raul Seixas, que não apreciava tais nomes musicais. Até os odiava, só para deixar o politicamente correto de lado.
Foi preciso Kika Seixas, que havia sido mulher mas, acima de tudo, parceira de Raul, entrar com processo judicial para barrar um tributo de axé-music a Raul Seixas, que, se vivo fosse, ele teria abominado tal "homenagem".
É uma questão controversa. Afinal, espera-se que familiares sejam "especialistas" e "profundos entendedores" de seus entes queridos. Nem sempre é assim, e isso ocorre quando a vida profissional afasta estas pessoas dos familiares, partindo para uma individualidade que nem aqueles que o acompanharam desde o berço são capazes de compreender.
É a partir dessas situações que os familiares e seus entes queridos se afastam, não pela afeição ou pela falta de convívio, mas pela falta de acompanhamento ou de identificação com as suas atividades profissionais.
FAMILIAR NÃO É ESPECIALISTA
É muito comum mães que, por mais afetuosas e íntimas que sejam de seus filhos, nem de longe consigam compreender as atividades artísticas deles. No caso de artes plásticas e de bandas de rock, os filhos costumam expressar aspectos secretos de sua individualidade, algo que pega seus familiares de surpresa.
É a partir das atividades artísticas ou profissionais que os entes queridos desenvolvem suas caraterísticas individuais, incompreendidas pelos seus familiares, por mais que suas afeições e seus sentimentos de amor e as relações de amizade sejam mantidos e efetivados.
Isso porque são outros contextos, outras intenções, e daí que os familiares muitas vezes deixam de ser "especialistas" de seus entes, de forma a que, quando estes morrem, não há afinidade suficiente para que haja uma herança que vá além dos laços afetivos e se estenda para a compreensão do que o ente representou ou foi.
Por essa falta de compreensão da individualidade dos entes queridos é que muitas famílias se enganam e são traídas por sua emotividade. E isso se torna claro quando se põem à prova eventos ou manifestações póstumas que nada têm a ver com as personalidades desses entes.
Semelhanças vagas se perdem em diferenças e nuances que a emotividade afetiva cega e ignora, e com isso se deixam passar assinaturas falsas que imitam muito mal as caligrafias dos falecidos, ou mesmo as "palavras de amor" por si só são tidas como "autênticas", seduzindo o parente saudoso em sua emotividade.
A exemplo de homenagens que mais constrangeriam os falecidos, se caso estivessem vivos, as atividades "mediúnicas" que evocam os nomes dos falecidos se tornam manifestações duvidosas, em que semelhanças vagas não escondem diferenças aberrantes, como num pastiche que busca imitar o verdadeiro mas não esconde suas diferenças falsificadoras.
Por isso a adesão das famílias às fraudes do "espiritismo" consiste num processo perigoso e traiçoeiro. Tomadas pela emoção e saudade extrema, as famílias atribuem veracidade à primeira mensagem que recebem em nome de cada ente falecido. Sem verificar irregularidades, acabam aceitando tudo traídas pela própria emoção e saudade.
Isso é muito ruim e pode fazer com que famílias sejam duramente enganadas e, sem saberem, causar uma grande tristeza para seus entes queridos, impossibilitados de se comunicarem porque outros já se "comunicam" usando os nomes dos falecidos.
É só comparar o que ocorreria se, vendo um parente nosso viajando bem longe, algum picareta forja uma carta em nome desse parente e envia para nós, dizendo coisas maravilhosas mesmo quando apresenta uma caligrafia diferente e alguns dados e aspectos incorretos. O parente ficaria triste se descobrisse essa manobra, e nós também.
Daí tomarmos muito cuidado com nossa própria emotividade. Antes de amar e acreditar, é preciso vigilância. Antes deixássemos de acreditar e confiar, quando algo de errado se apresenta. As piores traições acontecem por trás de "palavras doces e carinhosas".
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