segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Auta de Souza e a apropriação tendenciosa do "movimento espírita"


Lamentável o que ocorre no "movimento espírita", em que existe a glamourização das tragédias prematuras e a apropriação dos espíritos dos mortos para veicular mensagens religiosas supostamente atribuídas a eles.

Um claro exemplo de como é essa apropriação oportunista é o que se fez com gente como Irma de Castro, a Meimei (1922-1946), e a jovem poetisa Auta de Souza (1876-1901), em que a natural comoção por suas mortes prematuras foi aproveitada pelo "movimento espírita" para se apropriar de suas imagens e forjar um pretenso legado espiritual.

Explorando e faturando em cima das memórias das duas jovens, o "movimento espírita" as reduziu a meras propagandistas do Espiritolicismo, tornando-as escravas de uma missão meramente proselitista, estando associadas a meras mensagens piegas de "amor e luz", sujeitas a pregar sempre essa visão piegas e sentimentalista.

No caso de Auta de Souza, tornou-se pior. Esquecida poetisa potiguar, até por ter falecido muito jovem, antes de levar adiante sua ascensão - era apoiada por Olavo Bilac - , ela chegou até a ser relembrada, décadas depois, por Otto Maria Carpeaux, escritor e intelectual, mas depois passou a ser associada tendenciosamente ao anti-médium Francisco Cândido Xavier.

Ela foi associada meramente ao proselitismo religioso, em que mesmo poemas seus autênticos - publicados no seu único livro, Horto, lançado em 1900 - eram misturados a poemas atribuídos a seu espírito - divulgados sobretudo por Chico Xavier - , dentro de um contexto de sentimentalismo místico e apegado na fé.

Auta foi uma poetisa da segunda geração do Romantismo, gênero que teve, entre outros, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Junqueira Freire e Castro Alves. Havia o Romantismo, de temáticas amorosas ou sociais, e seu derivado mais melancólico, o Ultrarromantismo, inspirado nas leituras de Os sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang Goethe.

Para quem não sabe, Werther era um jovem apaixonado por Charlotte, uma bela mulher que no entanto estava comprometida e iria se casar. Os dois eram amigos e o noivo de Charlotte, Albert, de índole mais sisuda, era todavia cordial e educado com o jovem que, não suportando a paixão impossível, pede a Albert seu revólver emprestado e se mata disparando-o contra seu peito.

A melancolia inspirou a geração ultrarromântica, associada às frustrações amorosas, numa vida que, em uns, era marcada pela vida boêmia (Álvares de Azevedo) ou pela religiosidade (Auta de Souza) ou pela saudade da infância (Casimiro de Abreu) ou pelo pessimismo (Junqueira Freire e Fagundes Varela).

Auta surgiu já na fase do Simbolismo, que já mostrava as poesias de Augusto dos Anjos e Raul de Leoni, também vítimas da apropriação nominal de Parnaso de Além-Túmulo, que mais parece uma requentada obra anti-modernista (talvez o interiorano Chico Xavier não fosse com a cara do arrojado movimento da Semana de 1922) do que uma "avançada" antologia espiritual.

SONETO "ESPIRITUAL" PECA PELO PANFLETARISMO RELIGIOSO

Comparemos dois sonetos relacionados a Auta de Souza, um de sua autoria, "O Beija-flor", e datado de 1896 e outro, "Pensa", atribuído ao espírito da poetisa, divulgado por Francisco Cândido Xavier durante a reunião do Grupo Meimei, na cidade de Pedro Leopoldo (MG), em 31 de julho de 1954.

Nota-se que o poema de Auta é gracioso e de versos melodiosos, expressando um frescor de natureza, deslizando pelas métricas e rimas do soneto produzido pela jovem e um dos mais famosos de sua antologia poética.

Já o poema "espiritual" soa cansativo e, ainda que Auta pudesse produzir poemas melancólicos e religiosos, o estilo destoa do que a jovem seria capaz de escrever em vida, principalmente pela métrica cansativa.

Além disso, o poema em questão pelo proselitismo religioso que, em temática, coincide muito com os apelos de Chico Xavier em prol do conformismo ante o sofrimento, como se fosse a glamourização do sofrimento humano, já que é de praxe o "espiritismo" brasileiro se promover às custas das angústias alheias.

O BEIJA-FLOR

Auta de Souza - 1896 - Publicado no livro Horto

Acostumei-me a vê-lo todo o dia
De manhãzinha, alegre e prazenteiro,
Beijando as brancas flores de um canteiro
No meu jardim – a pátria da ambrosia.

Pequeno e lindo, só me parecia
Que era da noite o sonho derradeiro...
Vinha trazer às rosas o primeiro
Beijo do Sol, nessa manhã tão fria!

Um dia foi-se e não voltou... Mas quando
A suspirar me ponho, contemplando,
Sombria e triste, o meu jardim risonho...

Digo, a pensar no tempo já passado:
Talvez, ó coração amargurado,
Aquele beija-flor fosse o teu sonho!

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PENSA

Atribuído a Auta de Souza - Divulgado por Chico Xavier, em 31.07.1954

Antes de maldizer a própria sorte,
Pensa nos tristes de alma consumida,
Que vagueiam nas lágrimas da vida,
Sem migalha de amor que os reconforte.

Que a retaguarda escura nos exorte!
Contemplemos a noite indefinida
Dos que seguem sem pão e sem guarida
Entre a dor e a aflição, a treva e a morte!

Pensa e traze aos que choram no caminho
A fatia de luz do teu carinho,
Pelas mãos da bondade, terna e boa...

E encontrarás no pranto da amargura
A fonte cristalina que te apura
E a Presença do Céu que te abençoa.

Note-se que o estilo destoa completamente do original, sendo mais um daqueles apelos de Chico Xavier para aceitarmos os problemas e declínios da vida - quanto pior, "melhor", não é? - , dentro do ideal de glamourização do sofrimento humano.

Xavier já teve problemas em relação aos poemas que ele colocou como de autoria de Auta de Souza, tanto que, da segunda para a terceira edição de Parnaso de Além-Túmulo, respectivamente de 1935 e 1939, ele havia mudado alguns versos para "satisfazer a métrica", como foi obrigado a admitir o pesquisador Alexandre Caroli Rocha, quando analisou a antologia poética.

Uma amostra é o poema "Contrastes", do qual Chico Xavier alterou o 11o. verso do poema, conforme reproduzimos aqui, na concepção original:

CONTRASTES

Atribuído a Auta de Souza - Divulgado por Chico Xavier em Parnaso de Além-Túmulo, 2a. ed., 1935.

Existe tanta dor desconhecida
Ferindo as almas pelo mundo em fora,
Tanto amargor de espírito que chora
Em cansaços nas lutas pela vida;

E há também os reflexos da aurora
De ventura, que torna a alma florida,
A alegria fulgente e estremecida,
Aureolada de luz confortadora.

Há, porém, tanta dor em demasia,
Sobrepujando instantes de alegria,
Tanto desânimo e tantas desventuras,

Que o coração dormente, a pleno gozo,
Deve fugir das horas de repouso,
Minorando as alheias amarguras.

O poema foi originalmente publicado na segunda edição do livro xavieriano. Para a edição seguinte, valendo para as demais e para a última "definitiva" (a sexta edição, de 1955), o verso "Tanto desânimo e tantas desventuras" foi substituído por "Tal desalento e tantas desventuras".

A título de comparação, mostramos aqui um poema melancólico feito por Auta de Souza em vida, escrito em Utinga (RN) em outubro de 1898, que difere muito da "melancolia" dos poemas supostamente espirituais. O poema se intitula "Eterna Dor":

ETERNA DOR

Auta de Souza - Outubro de 1898

Alma de meu amor, lírio celeste, 
Sonho feito de um beijo e de um carinho, 
Criatura gentil, pomba de arminho, 
Arrulhando nas folhas de um cipreste. 

Ó minha mãe! Por que no mundo agreste, 
Rola formosa, abandonaste o ninho? 
Se as roseiras do Céu não têm espinhos, 
Quero ir contigo, ó lírio meu celeste! 

Ah! se soubesses como sofro, e tanto! 
Leva-me à terra onde não corre o pranto, 
Leva-me, santa, onde a ventura existe...

Aqui na vida - que tamanha mágoa! - 
O próprio olhar de Deus encheu-se d’água... 
Ó minha mãe, como este mundo é triste!

O poema passa uma fluência rítmica e um lirismo que os poemas "espirituais" trazidos por Chico Xavier não trazem. Agora, vamos mostrar um poema religioso, "No Jardim das Oliveiras", de 07 de abril de 1898, em que os versos, ainda que sugiram um recital mais lento, nem assim deixam de exprimir a musicalidade e uma religiosidade que não sucumbe ao panfletarismo proselitista.

NO JARDIM DAS OLIVEIRAS

Auta de Souza - 07.04.1898

“Minh’alma é triste até à morte...” Doce, 
Jesus falou... E o Nazareno santo 
Chorava, como se a su’alma fosse 
Um mar imenso de amargura e pranto. 

Depois, silencioso, ele afastou-se 
E foi rezar no mais sombrio canto. 
Seu grande olhar formoso iluminou-se 
Fitando o etéreo e estrelejado manto. 

“Pai, tem piedade...” E sua vez plangente 
Tremia, enquanto pelas trevas mudas 
Baixava manso o triste olhar dolente. 

Pobre Jesus! Como n’um sonho via: 
Em cada sombra a traição de Judas, 
Em cada estrela os olhos de Maria!

Como se vê, Auta de Souza não escreveu os poemas "espirituais" que aparecem sob a divulgação de Chico Xavier. O esforço de imitação encontra falhas sérias, como se observa na comparação dos poemas de Auta com aqueles divulgados por Chico usando o nome da poetisa potiguar.

RELIGIOSIDADE NÃO INFLUI NO PROSELITISMO DO ALÉM-TÚMULO

O fato de que Auta de Souza, a exemplo de Irma de Castro, ter sido religiosa em vida não garante que elas se disponham a ceder seus nomes para qualquer proselitismo religioso. Se elas eram católicas, isso não quer dizer que se possa apropriá-las para defender o religiosismo "espírita", mesmo quando sabemos que este tem matrizes claramente católicas.

Isso se justifica porque nenhum espírito é obrigado a ser necessariamente laico ou religioso no além-túmulo. As coisas "do lado de lá" funcionam de forma muito indiferente a questões dessa ordem. O mundo espiritual, sinceramente, não é uma igreja.

A apropriação indevida de espíritos do além, portanto, não se atenua quando há motivação de transmissão de mensagens religiosas. Se há plágio por parte de supostos médiuns, não são as "mensagens de amor" que possam inocentar quem pratica esse delito, até porque é uma apropriação indevida de toda forma.

Usa-se o nome de outrem e se promove pelo carisma do falecido. A autopromoção ocorre, por mais "iluminadas" que sejam essas mensagens. Daí, por exemplo, o caráter leviano das apropriações de Irma de Castro e Auta de Souza, entre tantos outros mortos pelo "espiritismo" brasileiro que, a partir de Chico Xavier, exerce um fascínio mórbido pelos jovens mortos...

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