terça-feira, 19 de setembro de 2017

A imagem "higienista" da mulher solteira no Brasil


Algo está muito estranho na divulgação da imagem da mulher solteira pela mídia. Uma imagem forçadamente hedonista, espetacularizada, e que se volta, praticamente, para apenas um lado da pirâmide social, o lado de baixo, nas classes populares, através de uma suposta liberdade difundida pelo mercado do entretenimento.

Recentemente, as rádios estão tocando "Tô Solteira de Novo", continuação de um antigo sucesso da funkeira Valesca Popozuda, "Agora Eu Tô Solteira", um estranho hino de solteirice que, sabemos, não cabe na vida das solteiras comuns, e é mais um exemplo de como a mídia trabalha uma imagem caricatural e espetacularizada da mulher solteira.

As pessoas deveriam parar para pensar e perguntar se uma solteira de verdade se preocuparia em ostentar este estado civil. A coisa é praticamente exclusiva no Brasil, mas não existe só no "funk", mas também no "sertanejo", onde existe o suposto empoderamento do "feminejo", com letras supostamente anti-machistas.

A imagem da solteira trabalhada por esses sucessos do entretenimento popular é tão caricata, voltada ao narcisismo, à curtição e à hipersexualização, que internautas com senso crítico muito afiado ficam perguntando se essas cantoras são realmente solteiras ou estão criando tipo para vender sensualidade.

Observa-se, também, que a imagem da mulher solteira só se dirige às classes populares, havendo um contraste entre as famosas que ficam solteiras com mais facilidade e outras que investem em casamentos estáveis, criando um duplo condicionamento do feminismo brasileiro aos valores machistas dominantes no Brasil onde feminicidas"nunca morrem".

ACORDO MACHISTA

Feminismo, no Brasil, tem que estabelecer um acordo com a ideologia machista, de forma que as conquistas da mulher brasileira sejam minimizadas, ou, quando muito, controladas pela figura masculina.

Observa-se um duplo acordo. Num deles, a mulher que não quer fazer o papel de objeto sexual e quer buscar experiências de vida que não dependam de apelos sensuais ou sexistas esteja sempre associada à figura de um marido ou namorado, geralmente um empresário ou um profissional liberal (médico, advogado, economista).

A mulher que quer "fugir" de sua imagem sexualizada, só se sensualizando conforme o contexto, mas podendo se desvincular dessa imagem a maior parte do tempo, transmitindo ideias e valores culturais mais relevantes, precisa ser "vigiada" pela figura do marido, geralmente um sisudo homem associado a um cargo de liderança e sucesso econômico.

Por outro lado, a mulher que permanece em valores machistas, seja a pobre coitada que só vê novelas, ouve "pagode romântico" e brinca de ser "mãe" com seu pequeno afilhado, ou a siliconada de glúteos avantajados que apela para um sensualismo obsessivo que, mesmo em outros assuntos, há o vínculo forçado do sexo e da sensualidade, a solteirice é permitida e o vínculo à figura do marido ou do namorado é simplesmente dispensado.

Observemos quem são as mulheres que tendem a ser casadas e as que tendem a ser solteiras com maior facilidade. A disparidade de discursos e condições é aberrante e mostra o quanto a ideia de ser solteira é desigual, pendendo mais para as classes populares, enquanto que, nas classes média e alta a ideia é enfatizar a vida de casada e a formação de uma família tradicional (marido, mulher e filhos).

No grupo das casadas, predominam atrizes de TV que se tornam referência para um público feminino de classe média. Há também modelos de grifes, sobretudo "supermodelos". Há também jornalistas de TV, ex-VJs da MTV, influenciadoras digitais ligadas à moda e outras famosas de perfil mais intelectualizado ou próximo disso e sem um apelo sensual obsessivo.

Já no grupo das solteiras, predominam subcelebridades vindas de reality shows, cantoras de gêneros popularescos, modelos siliconadas de marcas de menor expressão, musas fitness de apelo popularesco, dançarinas de ritmos como "funk" e "pagodão" e "musas" de times de futebol. Embora parte delas se autoproclame "feminista", elas são patrocinadas por empresários machistas do entretenimento "popular" ou até por dirigentes esportivos.

Essas solteiras usam um discurso pronto, previamente estabelecido e não raro contraditório. Num momento dizem que são "solteiríssimas" ou "solteiras e felizes", dizendo que "não arrumam namorado por causa do foco no trabalho (?!)", noutro se dizem "carentes" e usam o bordão surrado de que "os homens fogem de medo". Não conseguem se decidir se estão felizes solteiras ou se estão à procura de um "príncipe encantado".

DESIGUALDADE SOCIAL

A imagem "higienista" que está por trás desse mercado de sensualismo obsessivo, abordado por uma imagem caricatural da mulher solteira, emerge como um problema sério por trás dessa distribuição desigual da mídia do entretenimento entre solteiras e casadas.

Nem precisamos destacar a realidade irônica desse processo. No âmbito popularesco, mulheres que mantinham casamentos estáveis se divorciam de repente, com muita facilidade, em favor da "sensualidade". Já entre as mulheres "de elite", famosas mantém casamentos estáveis, mas aparecem quase sempre sozinhas nos eventos, sugerindo "vida de solteira" patrocinada pelos respectivos maridos.

O que está em jogo nesta distribuição desigual é que o "sistema", no qual se executa uma indústria do entretenimento difundida pela grande mídia, conservadora e mercenária, estabelece um "controle social" por trás dessa imagem da mulher solteira restrita apenas ao chamado "povão".

Há um jogo ideológico por trás, no qual o entretenimento "popular" desestimula a mulher a formar família e ter filhos, ou, tendo algum, se separa e não contrai mais novo matrimônio. A ideia é desestimular a renovação de gerações nas populações de origem negra, índia ou mestiça, criando um discurso de "liberdade" que "desobriga" as jovens mulheres que consomem música popularesca a serem mães.

Mas a perversidade não pára por aí. A ideia de evitar que casais heterossexuais se formem, combinando referências masculinas e femininas para as crianças (que praticamente crescem sem o convívio diário da figura paterna), longe de ser uma questão de "liberdade sexual", é na verdade uma forma de evitar com que a formação de casais seja uma referência nas classes pobres, evitando a solidariedade popular a partir do lar.

A imagem do homem é bombardeada pela mídia popularesca de maneira bastante negativa: bêbado, infiel, criminoso, violento, malandro, insensível. Isso é difundido largamente pela mídia policialesca, mas é reforçada pelas músicas de conflitos amorosos que são bombardeadas pelas rádios por meio dos sucessos populares.

O mais grave disso é que homens de etnia negra, índia e mestiça são alvos dessa exploração negativa de imagem, inserindo um racismo sutil nas próprias comunidades, fazendo mulheres igualmente negras, índias e mestiças se envolverem amorosamente com homens afins.

Novidades como a causa LGBT são bombardeadas nas classes populares que, pela baixa escolaridade e pela manipulação midiática e religiosa, não conseguem compreender sua natureza. Amestradas pelo cativeiro midiático de rádios e TVs e educada ideologicamente por seitas evangélicas e sua mídia associada (a Rede Record é a principal delas), as classes pobres não conseguem entender a causa LGBT que lhes chega de maneira exótica e espetacularizada.

O grande problema é que a união de pessoas do mesmo sexo, uma realidade melhor assimilada pelas classes médias, digerida de maneira confusa pelas classes populares, revela seu caráter "higiênico", porque é um amor que não gera filhos biológicos, "congelando" assim o crescimento populacional das classes pobres, não com o objetivo de evitar a superpopulação, mas antes fazer desaparecer, gradualmente, populações de origem negra e índia ou mestiças.

Isso é que está em jogo quando, nas classes mais abastadas, se estimula o casamento, até mesmo por conveniência, revelando, por outro lado, casais sem afinidade cujas esposas reclamam dos defeitos de seus maridos sisudos. Casais afins são desencorajados nas classes populares, mas, nas classes abastadas, há até o ato de "carregar casamento", desestimulando os divórcios de casais divergentes.

Diante disso, a desigual distribuição de solteiras e casadas no Brasil, uma realidade aberrante, pois, no Primeiro Mundo, isso não existe - as solteiras da Europa, por exemplo, se assemelham em perfil às casadas intelectualizadas do Brasil - e nem as solteiras dos países mais evoluídos ficam preocupadas em ostentar sua solteirice.

Lá fora, uma vez tornada solteira, a mulher toca a vida para a frente e busca novos campos de interesse, como História, Artes Plásticas, Viagens etc. Embora de vez em quando se sinta estimulada a se sensualizar, exibindo um decote no vestido durante os eventos sociais, a solteira do Primeiro Mundo não se preocupa o tempo todo em exibir uma imagem hipersexualizada.

A imagem caricatural da solteira brasileira esconde também preconceitos sociais, porque a abordagem hipersexualizada envergonha as mulheres mais abastadas. Também envolve preconceitos sociais, uma vez que a imagem da mulher solteira está associada a um lazer obsessivo e à busca do estereótipo de objeto sexual que intimida as mulheres realmente emancipadas, não só do machismo, mas da hipersexualização.

Enquanto as mulheres das classes pobres veem na solteirice trabalhada pela mídia "popular" um pretenso ideal de liberdade, as mulheres mais abastadas e instruídas se sentem constrangidas com tais abordagens, se apressando em se casarem com os primeiros homens poderosos e influentes que encontrarem em restaurantes e casas noturnas chiques.

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