quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Universidade e a cosmética acrítica das monografias


Ontem se realizou a sabatina que fez o ministro licenciado da Justiça, Alexandre de Moraes, assumir a vaga de Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal. Seu currículo irregular foi insuficiente para haver barreiras à sua chegada, diante das inúmeras conveniências sociais que refletem na vida política e econômica brasileira, cada vez mais mergulhada em retrocessos.

Recentemente, Alexandre de Moraes foi acusado de ter cometido plágios em seus livros. Num deles, Direitos Humanos Fundamentais, ele havia plagiado trechos do livro Derechos Fundamentales y Principios Constitucionales, do jurista espanhol Francisco Rubio Llorente (1930-2016). Pelo menos, neste caso, o Chico foi o plagiado, não o plagiador.

Mas o que vemos em Francisco Cândido Xavier é algo surreal. Chico Xavier cometeu inúmeros plágios em suas obras, e a sociedade brasileira lhe garantiu o céu que seu espírito, na verdade, nunca usufruiu e está longe de usufruir. Mas, para o bem das fantasias humanas movidos pelas paixões religiosas, Chico Xavier, mesmo com seus graves erros e confusões, está morando no Céu junto a Deus Pai Todo-Poderoso.

O Brasil é movido por vícios de sentimentos, abordagens, procedimentos e pontos de vista que começam a perder sentido. As pessoas presas nessa zona de conforto se revoltam de tal forma que, entre as elites, aumentam cada vez mais os surtos psicóticos e se reduzem ainda mais os escrúpulos em expressar visões e sentimentos de puro preconceito e discriminação social, dos mais graves.

Castramos ou cometemos abusos conforme as circunstâncias, quase sempre causando alguma grave injustiça. O apego ao status quo apresenta suas crises muito graves, e a sucessão de crimes, gafes e sérios erros cometidos por pessoas dotadas de algum privilégio social - do financeiro ao religioso, passando pelo poder político e até pelo porte de armas - , surpreende e já não cabe mais a complacência ou o consentimento das pessoas quanto a esses atos de gente "importante".

Afinal, as gafes e os erros graves não podem ser vistos como "erros pequenos" só porque são cometidos por pessoas dotadas de algum prestígio social. Ver os escândalos políticos do governo Temer, gravíssimos - a escolha de Alexandre de Moraes para o STF é um deles - , não pode ser visto como se fosse comédia da televisão, sob risadas da população de classe média.

Isso mexe com o país, isso pode trazer prejuízos sérios para a vida das pessoas e mesmo os mais abastados, que gracejam diante da corrupção de um Romero Jucá, Geddel Vieira Lima, Aécio Neves e José Serra porque pensam que isso é "divertido", pagarão caro pelas risadas dadas que nem de longe interrompem o sono tranquilo dos que não percebem a catástrofe em que vive o Brasil.

Temos que abandonar vícios de décadas, como o deslumbramento religioso, que também permite a divinização de ídolos religiosos que cometem erros graves (como a falsidade ideológica em pretensas psicografias). Erros graves de "gente importante" sempre são vistos como comédia, erros menores, ou deslizes miúdos sem importância. E a sociedade paga caro diante de tais complacências.

Afinal, com Michel Temer autorizando até a venda de terras brasileiras a estrangeiros, daqui a pouco a Praia de Copacabana será propriedade do mercado hoteleiro de Los Angeles, e aí vamos ver os jovens cariocas de elite tão felizes diante da catástrofe brasileira e rindo dos escândalos que deveriam causar aflição terem que pedir autorização e pagar ingresso para ficarem na areia tomando chope, jogando conversa fora ou ouvindo o "funk" e o "sertanejo" no seu celular.

MONOGRAFIAS ENFEITADAS

Um dos inúmeros vícios da sociedade brasileira se refere ao âmbito acadêmico. As universidades, infelizmente, não conseguem exercer com plenitude sua missão de transmitir Conhecimento e estimular a reflexão crítica sobre os vários fenômenos da vida humana.

Em vez disso, cria-se uma burocracia acadêmica, subordinada às verbas de pesquisas, nas quais a produção de teses de pós-graduação se resumem apenas a uma cosmética acrítica de monografias, que procuram, na forma, estabelecer a mais absoluta fidelidade ao discurso objetivo, com narrativas "imparciais" e um fingimento de que se está questionando um fenômeno, quando ele termina a monografia como sempre começou, um problema muito descrito e quase nunca questionado.

Especialistas começam a se preocupar, até porque a qualidade das monografias já começa a migrar do sofrível ao estúpido. Verdadeiras bobagens são aprovadas pelas bancas acadêmicas, porque as monografias seguem, na forma, o rigor do discurso científico, a narrativa objetiva. A título de exemplo, vamos supor um fictício caso de um antropólogo que quer provar o valor dos glúteos femininos no sucesso da Música Popular Brasileira:

"Os glúteos, considerados paixão de todo brasileiro, se configuram numa nova força da Música Popular Brasileira, onde se configuram imaginários e simbologias que envolvem uma rede de relações societárias, onde a ênfase na população pobre, que mais aprecia essa expressiva parte do corpo feminino, em que os homens estabelecem novos significados a partir desse controverso significante.

A evocação da negritude, trazida pela projeção dos glúteos em formato redondo, produzido pelo silicone, revela um paradigma que se reconfigura na sua complexidade, reconstruindo novas simbologias que em si não soam depreciativas, apenas criando novos elementos que requerem uma apreciação no sentido de repensar o modo de emancipação feminina da mulher pobre, negra ou não, nesses novos contextos em que o lúdico não sente o temor da provocatividade e da autoparódia da miséria humana.

Segundo Fulano (1982b), certas simbologias se reconstroem em novos elementos que permitem avaliar as coisas não somente pelos aspectos negativos ou socialmente depreciativos, mas se baseando num diálogo movido pela polêmica que reinventa hábitos e crenças que na Música Popular Brasileira estabelecem novos paradigmas de expressão, representando novos enfoques e uma nova abordagem das periferias onde os movimentos glúteos trazem uma linguagem própria, com seus significados inusitados, trazendo novas mensagens de expressividade social e reconstrução das relações societárias das comunidades".

Um texto desses é uma grande bobagem. Um verdadeiro asneirol. Mas ele é narrado dentro do padrão do discurso científico, é um texto que agrada às bancas acadêmicas porque traz uma abordagem inofensiva, falsamente objetiva, que faz com que muitas monografias vivam seus quinze minutos de fama nas exposições de pós-graduação, mas não têm a menor serventia para a transmissão de Conhecimento e sua utilidade para pesquisa é praticamente nula.

Alexandre de Moraes se projetou com vários livros sobre Direito Constitucional, que fizeram doutor (mas não pós-doutor, pois neste caso o título, inexistente, foi registrado por engano pela USP) e professor universitário, e, além dos plágios, seus textos seguem o padrão da cosmética textual, com uma narrativa "objetiva" de um conteúdo oco, quando muito apenas correto, porém superficial.

No "espiritismo", temos casos de Alexander Moreira-Almeida, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Alexandre Caroli Rocha, doutor pela Unicamp e, com mais sorte que seu xará ministro, com pós-doutorado em andamento na USP (pelo menos segundo dados de 2011).

Nos dois casos, há uma preocupação apenas em descrever as polêmicas em torno de Chico Xavier, sem que se pudesse adotar uma postura a respeito. As monografias, embora tecnicamente corretas, seguem no entanto uma neutralidade viciada, que nada contribui para a transmissão de Conhecimento nem de convite à análise, pois há uma posição bem mais apologista em relação ao problema estudado, como se a monografia se comprometesse apenas em descrever e não analisar.

Um exemplo disso é o texto de Alexandre Caroli Rocha, no seu texto "Complicações de uma estranha autoria (O que se comentou sobre textos que Chico Xavier atribuiu a Humberto de Campos)", publicado na revista Ipotesi, da mesma UFJF de Moreira-Almeida.

Nota-se que Caroli se autoproclama "especialista em análise textual", mas ele se mostra um tanto melindroso diante dos problemas da suposta psicografia de Chico Xavier, que revelam irregularidades fáceis de serem identificadas - não raro, havendo plágios e pastiches grosseiros - , preferindo rejeitar a análise do texto como fator para verificar a veracidade ou não das ditas mensagens espirituais:

"Este estudo permite a identificação de pontos importantes suscitados pela configuração autoral
sustentada por Chico Xavier e por seus editores, segundo a qual o médium é o autor empírico, mas não o autor intelectual dos textos. Vimos que não é pertinente a pressuposição de que, por meio apenas de fatores textuais, seja possível autenticar ou refutar a alegação do médium. Mostramos que os textos colocam à tona a discussão a respeito do post-mortem, tema que, nos ambientes acadêmicos, costuma ser relegado a domínios metafísicos ou religiosos. Concluímos, pois, que os veredictos taxativos para a identificação do autor são possíveis somente com a assunção de uma determinada teoria sobre o postmortem ou sobre o fenômeno mediúnico. Quando, no debate autoral, ignora-se a relação entre teoria e texto, percebemos que a apreensão deste é bastante escorregadia, mesmo entre leitores especialistas".

É o tipo do argumento que se resume a uma frase simplória: "não vou questionar isso", ou seja, o autor se recusa a fazer a análise textual. O mais engraçado é que Caroli apela para sugerir que a veracidade dos textos deva ser analisada sob o critério das pesquisas sobre vida espiritual e fenômenos mediúnicos, algo que, prestando bem atenção, soa muito risível.

Afinal, Caroli pede para que se faça o que os "espíritas" não querem fazer. Pior: o que temos como "mediunidade" são demonstrações de faz-de-conta, mensagens da mente dos supostos médiuns (fraude que não escapa sequer de Chico Xavier e Divaldo Franco) que não passam de propaganda religiosa e mostram problemas sérios quanto aos aspectos individuais dos autores mortos alegados.

Da mesma forma, também é problemática a abordagem da vida espiritual no "movimento espírita", na qual se repousam idealizações fantasiosas como as "colônias espirituais", refutadas por Allan Kardec, e que só servem para que se permita veicular a Teologia do Sofrimento (que faz apologia das desgraças humanas), corrente medieval da Igreja Católica que foi inserida no "espiritismo" brasileiro por iniciativa de Chico Xavier.

Em outras palavras, o "paraíso espiritual", simbolizado a partir da fictícia Nosso Lar - que lembra mais um belo condomínio de luxo com bosque, como nos comerciais de corretoras de imóveis - é usado para forçar as pessoas que sofrem muitas desgraças a se conformarem com isso em troca de uma "vida melhor" no "outro lado". Algo que parece lindo, mas, mediante uma análise cautelosa, soa um escárnio.

Caroli, então, recusa o modo mais simples de analisar as supostas psicografias pelo critério textual, conformado com uma polêmica que ele não é capaz de superar, até pela latente atração que ele sente por Chico Xavier. E pede um método mais complexo de analisar tais trabalhos, que no entanto é inviabilizado pela prática desonesta e fantasiosa que essa abordagem, sugerida por Caroli, é feita.

Com isso, mostra-se que o vício das monografias em permanecer com uma aparência tecnicamente correta, com uma mera apresentação formal de palavras e narrativas dentro do padrão de suposto rigor científico e suposta análise objetiva, mas cujo conteúdo nada diz e nada interfere na problemática adotada. A problemática deixa de ser problemática não por ser resolvida pelo questionamento crítico e encerra a monografia tão problemática e inquestionada como no começo.

E é isso que cria um monte de aberrações intelectuais. Cientistas sociais e jornalistas culturais que defendem a bregalização da cultura popular. Catedráticos cheios de discurso empolado, belo na forma, oco no conteúdo (Divaldo Franco deve adorar). Acadêmicos que fingem analisar criticamente o assunto e encerram o tema sem fazer a menor contestação.

No meio do caminho, plágios, pastiches e muito "enchimento de linguiça". Muita tese, muita monografia e muito artigo que nunca traz uma verdadeira transmissão de Conhecimento, recusando-se a intervir nas problemáticas abordadas. Daí a ascensão de um Alexandre de Morais no Judiciário brasileiro.

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