domingo, 19 de fevereiro de 2017

Brasil paga caro por seus próprios vícios


Os últimos dez meses no Brasil comprovaram o quanto o país torna-se refém de suas próprias teimosias, pagando um preço muito caro pelos próprios vícios, vários deles mantidos desde décadas e até séculos, e cujos prejuízos são enormes, mas também ignorados pelos próprios prejudicados.

Do clientelismo ao deslumbramento religioso, o Brasil acreditava num suposto progresso mantendo desigualdades que eram justificáveis por alegações que parecem até argumentos lógicos, mas são, na verdade, desculpas esfarrapadas sob alguma roupagem intelectual, por mais simplória que esta se expresse.

A retomada de preconceitos sociais, seja pela manifestação de preconceitos racistas e machistas nas redes sociais, seja pelos apelos elitistas de gente antes prestigiada mas que passou a defender a degradação do mercado de trabalho e a redução dos salários, ignorando que nas classes trabalhadoras existem famílias numerosas, voltou à tona por conta de uma sociedade moralista, elitista e patrimonialista.

Coisas aberrantes ocorrem. Como no caso da violência contra a mulher, mais chocante do que ver mulheres assassinadas por seus cônjuges e eles ainda por cima saírem impunes, é o apego de uma sociedade moralista a eles e a ignorância do fato de que um homicídio, sobretudo por motivos fúteis de obsessão amorosa, pelos efeitos sociais que gera também traz efeitos trágicos ou dramáticos para seus autores.

Mencionar a tragédia dos feminicidas não é desejar morte a eles. Se eles viverem longamente, tudo bem. Mas o problema é que muitos desses crimes são motivados por distúrbios psicológicos ou descuidos à saúde, que faz homens que praticam esse crime vulneráveis a doenças fatais e acidentes de trânsito, mesmo na faixa dos 40 e 50 anos, pelas pressões causadas pelos seus próprios atos.

Os próprios amigos de homens assim já relataram indícios de fragilidade ou descuido à saúde. Em 1977, amigos de Doca Street, que assassinou a socialite Ângela Diniz no final do ano anterior, relatavam estarem preocupados com o tabagismo dele, que ainda teve passado de uso de cocaína. Da mesma forma que amigos do promotor Igor Ferreira, que mandou assassinar a esposa Patrícia Aggio Longo em 1998, também apresentava profunda fraqueza e abatimento quando estava foragido.

Nos últimos anos, uma página de "mídia independente" declarou "preconceituoso" um texto que informava que Doca estaria doente de câncer. Um texto nada demais, alertando que feminicidas também adoecem, mas isso seria expor a fraqueza de machistas que, num dado momento, se acharam no "direito de vida e morte" sobre suas companheiras. Um contexto oriundo da ditadura, pois outro feminicida, Leopoldo Heitor, que matou a socialite Dana de Teffé em 1961, faleceu aos 79 anos em 2001 sem qualquer problema, com o óbito creditado até no Wikipedia.

Para completar o quadro, de dimensões kafkianas, páginas da mídia como O Globo, Folha de São Paulo e a coluna Glamurama de Joyce Pascovitch, relembraram o crime sem informar se Doca estava vivo ou não. Por sorte dele, a última aparição de Doca foi aos 72 anos, em 2006, quando lançava seu livro autobiográfico Mea Culpa. Pelo currículo de cocaína e tabagismo, se esperava que o assassino de Ângela Diniz teria falecido no começo dos anos 1990, entre 55 e 59 anos.

É estranha a inquietação da sociedade diante das tragédias de feminicidas ricos. Se todos nós morremos um dia, por que homens que assassinaram mulheres também não morrem? Será que o apego aos feminicidas e o medo de ver seus nomes num obituário de jornal ou site não tem a ver com o apego a uma simbologia machista, patriarcal ou ao "livre posse" de armas?

Feminicidas conjugais muitas vezes fumam, usam drogas, perdem a cabeça quando estão no volante e hoje, em tempos de convulsões sociais, são ameaçados de morte por estranhos de qualquer canto do mundo, se expõem muito mais a tragédias do que nós, que admitimos nossa vulnerabilidade e, entre outras coisas, evitamos sair na calada da noite. Mas poucos se esquecem que um feminicida conjugal tem alto risco de infarto até se ouvir, no rádio, a canção de tema romântico de quando ele e sua vítima eram namorados.

Mas essa sociedade que tem medo de ver homicidas ricos, sobretudo feminicidas, adoecerem gravemente, é a mesma que tem neuroses muito mais graves. Ver que existem médicos que podem matar integrantes do Partido dos Trabalhadores por envenenamento é algo que parece paranoia, mas é uma realidade. Os próprios feminicidas conjugais já expressavam essa sociedade doentia no passado, tais como fazendeiros que contratam pistoleiros para matar trabalhadores, sindicalistas e missionários.

Isso é um ato extremo de uma sociedade marcada pelo status quo e que acha que pode fazer o que quer sem enfrentar os efeitos naturais de seus atos. E isso transforma a sociedade brasileira num "pântano" onde o prestígio e o poder sociais escondem aspectos que variam de fraudes e atrocidades, revelando o quanto a sordidez ainda é protegida pelos privilégios mais diversos.

PAIXÕES RELIGIOSAS

A religião não escapa disso e o "espiritismo" choca pela sua desonestidade diversa, seja doutrinária, como a traição aos postulados originais de Allan Kardec enquanto seus praticantes supõem "sentir respeito rigoroso" à Doutrina Espírita, seja em sua prática, com "mediunidade" de faz-de-conta que não passa de mero marketing religioso, com claro apelo igrejista.

O "espiritismo" foi invadido de tantos valores retrógrados descartados pelo Catolicismo, valores que eram originários da Idade Média e vigentes no Brasil colonial, que até a Teologia do Sofrimento tornou-se, hoje, mais um postulado "espírita" do que católico, defendido abertamente, mas não com esse "rótulo", por ninguém menos que Francisco Cândido Xavier.

O apego doentio que se dá a Chico Xavier também revela muitos preconceitos e vícios sociais. Sem que ele fosse realmente uma pessoa virtuosa, já que uma pesquisa minuciosa revela que ele não foi mais do que um arrivista que queria se promover como ídolo religioso (em um país menos imperfeito, isso daria cadeia e processos por charlatanismo), ele passou a simbolizar as fantasias idealizadoras das paixões religiosas, tão perigosas quanto as chamadas "tentações da carne".

O medo paranoico que os "espíritas" têm em ver os livros de Chico Xavier como fraudes é muito grande, que existe até o descaso diante das constatações, com provas documentais, de que muitos dos textos atribuídos a Humberto de Campos, Auta de Souza, Olavo Bilac e Casimiro de Abreu, por exemplo, se revelam sérios pastiches e que o "dr. André Luiz" nunca passou de personagem de ficção.

Provas consistentes revelam isso, mas os chiquistas, tão apegados e obsediados em suas paixões religiosas pelo "bondoso médium", preferem inventar, usando de roupagem "intelectual", que as análises textuais "são insuficientes" para atestar veracidade ou não porque "carecem de bases teóricas".

Carecem como assim? Elas se baseiam na ideia de que um texto revela traços pessoais de quem o escreve. Se, por exemplo, um livro é atribuído a um escritor, e por mais que haja semelhanças estilísticas, uma diferença grave a compromete, já é possível identificar uma fraude. O próprio Kardec alertava: identificou um grave erro, descarta.

Em vez de descartar, as paixões religiosas do "espiritismo", lançando mão do verniz "intelectual" desta doutrina, que no fundo sempre condena o pensamento científico quando se intromete nos dogmas da fé, cria discursos "científicos" para dizer que "não dá" para identificar irregularidades pela análise textual por causa de "aspectos mais complexos" e que temos que aceitar como "verídica" ou, quando muito, como "cogitável", a "autenticidade" de uma suposta Auta de Souza que escreve e pensa parecido com Chico Xavier.

Os inúmeros vícios prevalescentes no Brasil criam aberrações emotivas, morais, ideológicas e práticas que sempre comprometeram o real progresso brasileiro. Até a cultura popular é afetada por esses preconceitos. Afinal, que "combate ao preconceito" está em aceitar a bregalização cultural se ela já traz uma imagem preconceituosa do povo pobre e uma abordagem entreguista de uma cultura brasileira forçada a moldar os valores no imaginário pop comercial dos EUA?

O próprio brega, sobretudo sua expressão mais "arrojada", o "funk", é um conjunto de valores preconceituosos nos quais o povo pobre é confuso em seus desejos e na sua autoafirmação, diferente da cultura popular autêntica que revela uma solidez no desenvolvimento de valores, crenças e hábitos das comunidades. O "popular demais" das "periferias" revela valores ainda mais preconceituosos quando faz apologia à ignorância e a pobreza e submete a "emancipação popular" às regras do mercado e ao paternalismo das elites.

Esse imaginário, mesmo empurrado para os círculos esquerdistas - traídos pelo rótulo "popular" de certos ideólogos da bregalização - , caminha na mesma direção dos tecnocratas econômicos, que prometem o "paraíso" se conseguirem vender nossas riquezas ao exterior, Tão tolamente as pessoas que acham o "funk" o "primor do socialismo" se esquecem de que ele é apenas um braço musical de uma mesma indústria que agora quer ver o pré-sal nas mãos das corporações estrangeiras.

Também pudera, o "funk" é apenas uma macaqueação do som da Flórida, reduto das elites latinas e anti-esquerdistas dos EUA, e que foi inserido no Brasil para evitar a emancipação social do povo fora do controle midiático. Como produto de mídia e do mercado, o "funk" também envolve um emaranhado de preconceitos, que vão da glamourização da miséria ao machismo dos funkeiros, mas também ao preconceito de esquerdas de classe média sobre o que pensam ser o "verdadeiro popular".

O Brasil chegou ao governo desastrado de Michel Temer, com sua "equipe de notáveis" que simbolizava antigos prestígios sociais, políticos, econômicos e tecnocráticos, prometendo uma atuação ao mesmo tempo "técnica e moderada", "austera mas benéfica" e só desenvolveram um cenário de crises e escândalos muito graves, por causa dessa combinação de tantos e tantos preconceitos sociais.

São preconceitos que criam uma moral desigual, que faz com que se pense até numa Internet que censure páginas investigativas ou de questionamentos mais aprofundados sobre determinados assuntos, enquanto dão livre direito a valentões das redes sociais criarem páginas ofensivas de quem apenas discorda do "estabelecido", num país que não consegue resolver suas neuroses e paranoias senão botando a sujeira debaixo do tapete e apelando para a "memória curta" ou o "jeitinho".

São preconceitos que fazem as pessoas pouco se incomodarem em ver nossas riquezas entregues aos estrangeiros ou uma figura confusa e truculenta como Alexandre de Moraes na corte suprema do Judiciário. Pessoas capazes de festejar morte de petistas mas têm muito medo de ver o nome de um feminicida conjugal no obituário da imprensa. Pessoas que aceitam perder direitos trabalhistas sob a desculpa de "botar o país pra frente" ou acham possível uma "cultura popular" subordinada ao "deus mercado".

E aí, quando o país sofrer mais efeitos violentos de sua crise, as pessoas vão correndo logo para ler a Bíblia ou um livro de Chico Xavier. Se a paixão religiosa resolvesse as coisas, não teríamos chegado ao estado catastrófico em que chegamos. Se reza demais e se ouve estórias lindas, como as crianças ouvindo contos de fadas enquanto o mundo explode por aí fora.

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