sábado, 22 de outubro de 2016

"Meter a cara" e a vaidade moralista


No moralismo religioso, existe uma tendência de exaltar aqueles que realizam conquistas às custas de muitos sacrifícios. Mas isso cria uma ilusão perigosa, em que o mérito sempre é medido pelo grau da dificuldade vivida.

A ideia de "meter a cara", "ter garra", de sacrificar acima das próprias forças e tentar superar dificuldades intransponíveis, é sempre um discurso que o marketing da superação enfatiza, alimentando a vaidade dos confortáveis, que aplaudem exemplos de quem "ralou demais" para chegar "onde chegou".

Temos que desconstruir esse discurso que alegra muita gente, que cria comoções delirantes de gente que parece teleguiada com certos exemplos de "superação", e que só serve para ídolos religiosos se autopromoverem e ganharem medalhas e condecorações com palestras hipócritas.

Enfrentar dificuldades pesadas não é bom. Não é confortável ouvir de outrem o conselho para "meter a cara" e "abrir mão de tudo" a ponto de "sentir desprezo de si" para "vencer na vida", e sair à luta diante de iniciativas quase sempre fracassadas.

Não é digno de alegria ver que pessoas demoram para obter alguma conquista, encontram barreiras graves, sérias, quase impossíveis, são humilhadas no meio do caminho, sofrem horrores, e só depois de muita luta conseguem atingir seus objetivos de subir na vida.

Os "exemplos de superação" são servidos para o entretenimento de pessoas supostamente solidárias aos princípios de ajuda ao próximo, O "belo exemplo" acaba servindo para alimentar as vaidades das pessoas que, mesmo sem querer, acabam se servindo a uma publicidade hipócrita, a uma crueldade travestida de bondade.

Nem todos passam pelas mesmas dificuldades que os vitoriosos das dificuldades extremas sofreram. E, mesmo assim, recomendam que sempre sofram demais para obter alguma vantagem na vida. E é aí que os juízos de valor demonstram sua severidade dolorosa.

A ideia de que fulano "tem que meter a cara, ralar mesmo", com argumentos do tipo "deixar tudo para lá", "renunciar a si mesmo", abandoando a individualidade e deixando as necessidades pessoais mais essenciais para lá - se der para respirar, já é bom, mas num Rio de Janeiro cheio de fumantes até isso tem que ser abandonado - para "vencer na vida".

Quem fala assim leva mais em conta as dificuldades do que a finalidade. Pouco importa o objetivo, importa é que a forma de atingi-lo tenha que ser a mais dolorosa, a mais difícil e a mais demorada para se obter.

Daí a crueldade: para se dar bem na vida, tem que se dar mal. E isso, num país marcado pela Teologia do Sofrimento "espírita" e pelo fundamentalismo neopentecostal, que fazem com que o Brasil mergulhe num resgate desesperado de valores ultraconservadores de um moralismo envaidecido.

É muito cruel acreditar que a pessoa seja obrigada a passar pelo caminho da dor para obter algum benefício, diante de uma ideologia que só valoriza um beneficiado se ele passou por sérios prejuízos. Ver a superação desta forma nada tem a ver com amor ao próximo.

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