segunda-feira, 21 de agosto de 2017

"Espiritismo" se vale de confusão antiga para tentar se salvar


O "espiritismo" brasileiro resgatou uma confusão antiga, que antes incomodava seus membros, como recurso para tentar se salvar da crise aguda que sofre, quando são reveladas irregularidades graves da doutrina igrejeira brasileira.

Observando os episódios de intolerância religiosa que atingem os movimentos afro-brasileiros, que a mídia empresarial confunde com "movimentos espíritas", o antigo preconceito que causava mal-estar entre os "espíritas" brasileiros tornou-se, por ironia, a sua tábua de salvação.

O episódio de uma casa de umbanda no bairro de Humaitá, Zona Sul do Rio de Janeiro, é ilustrativo. Os noticiários mais comuns definem a casa como um "centro espírita", que há poucos dias sofreu uma tentativa de incêndio e também sofreu, antes disso, outras invasões. O episódio foi definido como um dos principais casos de intolerância religiosa existentes no Brasil.

No passado, as religiões afro-brasileiras eram confundidas com "espiritismo" pelo aparente tratamento com o sobrenatural. Num dado sentido, a umbanda assimilou valores do "kardecismo" sob a mesma lógica que o próprio "espiritismo" brasileiro assimilou valores católicos no passado, visando sobrevivência institucional e se protegendo contra a repressão policial.

Hoje o "espiritismo" brasileiro tenta dar a falsa impressão de que está sofrendo todo tipo de intolerância religiosa. Até um assalto ocorrido numa "casa espírita" em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, no mês passado, é interpretado como "intolerância religiosa" por alguns "espíritas" mais apressados. Sem falar da choradeira que muitos expositores "espíritas" fazem diante das críticas duras que a doutrina igrejeira recebe.

Observando bem a situação, porém, o que se vê é que o "espiritismo" brasileiro, aquele que jura ser "rigorosamente fiel" com os ensinamentos de Allan Kardec mas pratica abertamente o igrejismo de Jean-Baptiste Roustaing, é uma das religiões mais toleradas do país, sendo até mais do que as seitas neopentecostais que se aglutinaram para formar a "bancada da Bíblia" no Congresso Nacional.

Embora não tenha a popularidade da Igreja Universal do Reino de Deus (dona da Record TV) nem a visibilidade de concorrentes que alugam horários na Band, CNT e Rede TV!, o "espiritismo" brasileiro é blindado pela mais poderosa rede de televisão do Brasil, a Rede Globo, surgida com uma ajudinha de fora da empresa Time-Life, três anos antes de 1965, ano de sua inauguração.

A Globo vestiu a camisa do "espiritismo" porque usa uma religião que se comporta igualzinho à Igreja Católica - embora os "espíritas" apresentem um conteúdo mais medieval, em que pese a embalagem "mais moderna" - , mas não possui aparatos pomposos, podendo se passar até por uma "não-religião", pela embalagem "limpa" e pelo verniz de "simplicidade" e "despretensão" que apresenta.

A tolerância é tanta que obras comprovadamente fake relacionadas à psicografia e pinturas mediúnicas são publicadas livremente, sendo os livros disponíveis até gratuitamente na Internet. Mesmo irregularidades reconhecidas e provadas não fazem a Justiça se mexer um dedo contra os farsantes, e isso num país em que petistas são condenados se uma simples fofoca supor alguma atitude negativa de um membro do Partido dos Trabalhadores.

Obras com diferenças estilísticas bastante grosseiras, como a de Francisco Cândido Xavier creditada ao "espírito Humberto de Campos", e o quadro "São Francisco de Assis" que José Medrado atribuiu ao pintor Cândido Portinari, que apresenta diferenças aberrantes ao similar que o falecido pintor deixou em vida, são aceitas até com certo entusiasmo, porque são obras, tendenciosa mas oficialmente, associadas ao "trabalho do bem".

O "espiritismo" brasileiro, de forma comprovada, em que pese todo discurso de "fidelidade absoluta" e "respeito rigoroso" aos postulados kardecianos, comprova assumir práticas contrárias aos mesmos. É só perceber o que os textos de O Livro dos Médiuns esclarecem e observa-se que muitas das práticas e ideias reprovadas por Allan Kardec são abertamente seguidas por Chico Xavier, Divaldo Franco e companhia.

Sem ter uma postura realmente autocrítica - os "espíritas" apenas "admitem" que "são falíveis", como quem tenta "assumir que errou" para se livrar de uma punição - , o "espiritismo" brasileiro agora deve ter passado a gostar de ser confundido com a umbanda, que voltou a ser vítima de intolerância no contexto de retomadas ultraconservadoras que se consolidaram em maio de 2016.

Mas uma coisa é condenar a intolerância contra as religiões afro-brasileiras, que não apelam para a desonestidade doutrinária e possuem um rico repertório cultural, tendo servido, no passado, como meio de expressão cultural e proteção social dos antigos escravos, que nem cidadania possuíam. Eram os cultos afro-brasileiros, neste caso, formas de socialização e integração humana naqueles momentos muito difíceis de violento preconceito social manifesto pelas elites.

Outra coisa, porém, é a intolerância à mentira e à traição. Está cada vez mais claro que os "espíritas" se revelam traidores de Allan Kardec, constatação que não isenta sequer os "renomados" Chico e Divaldo, eles mesmos tendo lançado em livros e, durante muitos anos, ideias que contrariam frontalmente os postulados espíritas originais.

É inútil que palestrantes "espíritas" fiquem por aí bajulando Kardec e até Erasto, fazendo falsos comentários contra a vaticanização espírita que no fundo adoram praticar, e até fazer apelos tendenciosos para "não só entender Kardec, mas viver Kardec". De que adianta expor corretamente a teoria espírita, se na prática se cometem traições das mais aberrantes? Será que temos que tolerar isso?

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