sexta-feira, 24 de novembro de 2017

"Lata Velha", "padronizetes" e o apego a uma medida retrógrada e anti-popular


As denúncias sobre corrupção no sistema de ônibus do Rio de Janeiro - embora casos similares ocorram em cidades como São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre e Brasília, mas eles tentam ser abafados - revela o fracasso do modelo implantado em 2010 e um estranho apego a uma medida aparentemente estética, mas que mostra sua falta de funcionalidade e ilegalidade.

O apego doentio à medida da padronização visual dos ônibus, que faz com que até simples busólogos se comportem de maneira autoritária ou até neurótica - um busólogo da Baixada Fluminense "surtou" e foi praticar cyberbullying nas redes sociais, criar blog de difamação contra desafetos e até viajar para a cidade deles na tentativa de intimidá-los - e autoridades tentem trocar "seis por meia-dúzia" para resolver problemas sem combatê-los de fato, mostra a que ponto chegou o Brasil.

A pintura padronizada, uma atitude oriunda da ditadura militar e implantada pelo arquiteto e então prefeito-biônico de Curitiba, Jaime Lerner, inspirado nos ônibus militares, havia sido relançada no Rio de Janeiro sob as desculpas de "disciplinar" o sistema de ônibus, com um visual único que sugeria, supostamente, que as empresas de ônibus eram monitoradas pela prefeitura municipal.

Grande engano. A medida, que coloca diferentes empresas de ônibus sob uma mesma pintura, sob o aparato de "consórcios", "zonas de bairros" e "tipos de ônibus", confunde os passageiros na hora de ir e vir - por exemplo, torna-se impossível identificar um ônibus ao longe, por mais que se tente colocar em destaque o logotipo da empresa, como se faz em São Gonçalo - e já foi identificada como contrária a leis como a Lei de Licitação e o Código de Defesa do Consumidor.

Entre as infrações legais causadas pela pintura padronizada, estão os artigos 11 (natureza do serviço) e 12, inciso II (funcionalidade e adequação ao interesse público) da Lei de Licitações (Lei 8.666, de 1993) e o artigo 39, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 2.078, de 1990).

No caso da Lei de Licitações, a pintura padronizada, que expressa um visual imposto pelo poder público, contraria a natureza do processo, no caso concessão do serviço de ônibus a empresas particulares. O poder público concede o serviço, mas "fica" com a imagem, proibindo as respectivas empresas, beneficiárias da concessão, de apresentar ao público a própria identidade visual.

Além disso, a medida da pintura padronizada não traz funcionalidade, pois não há vantagem técnica em colocar diferentes empresas de ônibus para exibir a mesma pintura. Nem mesmo o crédito do nome da empresa em letreiros digitais ou em logotipos expostos nos ônibus garante funcionalidade, pois são detalhes que se perdem facilmente à vista de qualquer um.

Outro aspecto é a forma deturpada com que se interpreta a "adequação ao interesse público". De modo cafajeste, autoridades usavam como "adequação" a promessa de adquirir ônibus com ar condicionado ou veículos especializados, no caso BRTs (articulados). São coisas diferentes, não há lógica em usar ônibus refrigerados para justificar a pintura padronizada como "medida de interesse público". É como usar os parques de diversões para promover o reflorestamento de um lugar.

Aliás, isso também remete ao inciso IV do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor. Nele se fala que é vedado prevalecer-se da fraqueza, ignorância ou condição social do consumidor para impor um produto ou serviço. A pintura padronizada foi imposta pelo prefeito Eduardo Paes se aproveitando do desconhecimento da população, portanto cometendo claramente a infração prevista no referido artigo e correspondente inciso.

Ainda sobre o artigo 39, inciso IV, Eduardo Paes usou os ônibus com ar condicionado e os BRTs como "moeda de troca" para forçar o apoio da população aos ônibus padronizados, o mesmo "desvio de foco" que se fala do pretexto da "adequação ao interesse público". São coisas que nada têm a ver, e revelam o cinismo de Paes, que, para defender a pintura padronizada, chegou a ofender imigrantes portugueses, ao definir, pejorativamente, a diversidade visual dos ônibus cariocas antes de 2010 como "embalagem de azeite português".

"LATA VELHA" E "PADRONIZETES"

O caráter autoritário dos defensores da pintura padronizada se mostrou quando a medida foi divulgada, ainda em 2009, pelo então prefeito carioca. Busólogos que defenderam a medida usavam as mesmas alegações de "disciplina" que militares do Exército usam para defender a instalação de uma ditadura no Brasil.

Segundo denúncias de outros busólogos, havia uma articulação de uma minoria de busólogos para formar um "gabinete" da Secretaria Municipal de Transportes, quando o titular era o tecnocrata Alexandre Sansão. Com isso, surgiu, de repente, uma "luta fratricida" nas redes sociais, nas quais busólogos que defendiam a pintura padronizada passaram a agir com arrogância, intolerância e muita agressividade.

Os mais jocosos falavam dos opositores da pintura padronizada como "viúvas de lata de tinta". Diante de tantas discordâncias, os defensores da "PP", como era definida a "pintura padronizada", ainda chamavam os interlocutores de "seu m****".

Pelo menos dois busólogos estavam associados a atitudes típicas de haters e ciberbullies. O mais ambicioso, de uma cidade da Baixada Fluminense, então recém-saído de uma equipe de busólogos local, passou a fazer mensagens ofensivas nas redes sociais, ainda nos tempos do Orkut e dos primórdios do Facebook, com o objetivo de destruir reputações de busólogos emergentes. Também usava pseudônimos - que ele chamava de "fakes do bem", para divulgar ofensas no Fotopages.

Outro busólogo teria sido um rapaz que teria sido menor de idade em 2010 e também participou de mensagens ofensivas nas redes sociais, nos fóruns digitais e outros espaços similares. Este rapaz tinha como tática usar pseudônimos diversos, geralmente de desafetos ou de gente famosa, para paródias relacionadas ao homossexualismo ou à pornografia.

Em seguida, o busólogo mais velho empastelou uma petição digital feita contra a pintura padronizada com divulgação de mensagens jocosas de caráter ofensivo. Chamava outros busólogos, inclusive o encrenqueiro mais novo, para "zoar" na petição, rebaixando o espaço de abaixo-assinado a um falso chat de mensagens ofensivas e violentas. O busólogo mais velho chegou a falar que um desafeto iria "acordar com a boca cheia de formiga" (metáfora para ameaça de morte).

O busólogo da Baixada Fluminense havia também criado um blog de ofensas, o Comentários Críticos, que segundo várias fontes já foi denunciado para o SaferNet (serviço de denúncias sobre crimes digitais de qualquer natureza). Aparentemente o busólogo só copiava, para fins de difamação, textos e imagens de dois busólogos emergentes, mas a ideia dele havia sido esculhambar a busologia como um todo, inclusive aqueles que o busólogo da Baixada fingia ser grande amigo.

O objetivo é criar uma "derrubada de reputações" nas quais só sobrava o busólogo da Baixada, seu amiguinho mais novo e aquele que "aceitar engraxar os sapatos" dos dois. Mais tarde, o busólogo da Baixada foi denunciado pelos amigos, que revelaram a identidade do blogueiro "crítico" (dos Comentários Criticos).

Não bastasse o Comentários Críticos ter sido denunciado pela SaferNet, tornando-se de conhecimento da Polícia Federal, que recebe as denúncias, o busólogo da Baixada, ao fazer constantes visitas a Niterói para intimidar desafetos, chamava a atenção, tanto pela sua aparência robusta quanto pelo olhar "atento demais" na hora de tirar fotos, de milicianos que fazem ponto na área do antigo Carrefour, ao lado do Terminal João Goulart. Ligados à "máfia das vans", os milicianos pensavam que o busólogo era um miliciano rival querendo "dominar a área".

Com as denúncias - que incluem até mesmo ofensas pessoais quanto ao estado civil de alguns busólogos (ser solteiro durante muito tempo, por exemplo, era xingado de "virgem"; se divorciar, mesmo de forma amigável, seria "corno") - , os busólogos valentões saíram desmoralizados e o episódio repercutiu nacionalmente, com busólogos de outras partes do país acreditando que os busólogos do Rio de Janeiro "só vivem brigando".

Com o aumento dos acidentes de ônibus e da corrupção no setor, um triste espetáculo no qual a pintura padronizada serviu de lona, os busólogos que defendiam a "PP" passaram a perder a "moral" que se julgavam ter. Alguns discordantes que haviam sido antes alvos de humilhação passaram a definir os defensores da "PP" como "beatas de carimbo de prefeitura", "padronizetes" e "lambedores de gravatas".

A crise dos ônibus padronizados também se define pelo sucateamento do setor e por muitas irregularidades. Os ônibus padronizados - chamados pejorativamente de "ônibus iguaizinhos" - passaram a ser apelidados de "lata velha", de tão sucateados e sujos. Empresas de ônibus eram extintas, mudavam de nome ou trocavam de linha sem que a população soubesse de imediato. Os cidadãos eram os últimos a saber de tais imprevistos.

Situações assim também acontecem em outras capitais. Em Belo Horizonte, a pintura padronizada que faz uma mesma empresa tivesse mais de cinco pinturas diferentes, os custos de transferência de veículos de um sistema de linhas para outro é maior, o que faz com que, em situações de emergência, ônibus de um consórcio circulassem em linhas de outro com a pintura do consórcio anterior.

Em Brasília, empresas piratas facilmente utilizam as mesmas cores dos ônibus padronizados, se aproveitando da aquisição de carros vendidos pelas empresas oficiais. Em Florianópolis, onde diferentes empresas municipais passaram a ter uma mesma pintura sob o risível nome de "Consórcio Fênix", há denúncias de corrupção similares às do Rio de Janeiro. Em Curitiba, a corrupção é mais antiga, mas os grandes empresários tentam abafar as denúncias pressionando a imprensa a ignorar ou minimizar o assunto.

No Rio de Janeiro, o atual secretário de Transportes e vice-prefeito Fernando MacDowell, também engenheiro urbanista, garantiu que a pintura padronizada será cancelada nos ônibus municipais, o que, se realizado, refletirá no resto do Brasil. Mas a medida está demorando a acontecer devido aos escândalos de corrupção que impedem que o secretário mexa no sistema sem que se resolva a situação dos empresários envolvidos em diversas acusações.

O desgaste da pintura padronizada nos ônibus é notório, apesar da resistência desesperada de várias prefeituras, que andam trocando o design dos ônibus padronizados, como forma de "mudar a embalagem" em prol de uma falsa novidade.

Há também vários busólogos e políticos que andam assustados em ver que os ônibus deixarão de ser conhecidos pelo logotipo de prefeituras ou governos estaduais, num apego completamente desesperado e paranoico. Para eles, pouco importa o direito de ir e vir das pessoas que, com tantas coisas a fazer, precisam prestar atenção em ônibus com pintura igualzinha para não embarcarem no veículo errado. Daí que a pintura padronizada simboliza o egoísmo humano sobre rodas.

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